Biotecnologia e biossegurança: construindo a confiança pública no Brasil

Idioma Portugués
País Brasil

Durante o processo de formulação e aprovação da Política Nacional de Biossegurança brasileira os deputados Aldo Rebelo e Luizinho afirmaram que se tratava de “uma questão de Estado”. Realmente trata-se de uma questão de Estado pelo poder que as modernas biotecnologias têm de afetar o modo de vida das presentes e das futuras gerações do Brasil. Afinal de contas estão envolvidos: incentivo ao avanço da ciência e da tecnologia e incerteza científica; produção de grãos e poder econômico; proteção do meio ambiente e risco para a biodiversidade; segurança alimentar e comércio internacional; desenvolvimento de novas terapias e dilemas éticos e morais

A opinião pública está completamente perplexa diante deste debate. Como alguém poder ser contra a possibilidade de desenvolvimento de terapias para enfermidades tidas como incuráveis e que causam profundo sofrimento? Quem pode ser contra a aplicação de processos tecnológicos que podem reduzir os custos da produção agrícola, expandir o agronegócio e ainda contribuir para a redução da desnutrição no mundo? Mas... Existem riscos de contaminação genética de lavouras vizinhas? A transferência horizontal de genes representa um risco para a biodiversidade? Podem surgir novas alergias? A resistência antibiótica pode ser afetada? A segurança dos testes com novas formas de vida em ambientes restritos pode ser afirmada para ambiente natural? Quem seria o responsável por eventuais imprevistos? A quem cabe a tarefa de provar a segurança ou insegurança dos organismos geneticamente modificados? Dizer que nunca houve nenhum problema até agora é suficiente? Alguns efeitos podem ser irreversíveis? Que tipo de impactos serão gerados na estrutura e nas propriedades dos sistemas de produção de alimentos? Como os pequenos proprietários serão afetados? As possibilidades de transposição de fronteiras entre espécies, de patenteamento de certos aspectos da vida, de clonagem representam riscos de que natureza? E last but not least, por que tanta resistência aos estudos de impacto ambiental?

O bem e o mal estão simetricamente alinhados ao supostamente previsível e imprevisível. E para complicar a coisa, os argumentos pró e contra a biotecnologia são defendidos por doutores de renomadas universidades. A sociedade está entre os prometeicos e os fáusticos, para usar a terminologia de Hermínio Martins.

As preocupações com relação aos possíveis impactos na saúde humana, no meio ambiente, nas relações econômicas, na dignidade humana, são geralmente acusadas de ideológicas. Algo como se estas preocupações não passassem de especulação filosófica sem fundamento científico. Como disse um importante membro da CTNBio: “A ideologia é importante, mas, neste tema, tem pouco espaço para isto se definir com base em filosofia e ideologia".

Vejo que o estímulo ao avanço científico tem um apelo mais eficaz que o do princípio de precaução. Teria isto haver com o fato de a CTNBio estar vinculada ao Ministério de Ciência e tecnologia, cuja missão é impulsionar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia? Curiosamente, quando se optou por estabelecer esta forma de regulação como a CTNBio o exemplo era a Europa e a ênfase estava no princípio de precaução. Para atenuar este viés cientificista, foi criado o Conselho Nacional de Biossegurança que vai dar a última palavra sobre a conveniência política, social e econômica dos produtos da biotecnologia. A desprezada filosofia (e aqui cito Hannah Arendt de 1958, em referência ao poder da tecnologia) diria que a biotecnologia “é uma questão política de primeira grandeza e, portanto, não deve ser decidida por cientistas profissionais, nem por políticos profissionais”.

Um dos principais temas que ocupam o cenário internacional deste início de século XXI refere-se à participação pública na promoção e adoção das novas biotecnologias. Já sabemos que pertencemos a uma civilização onde o risco é imanente e estamos nos acostumando com um estado de permanente tensão. Desde os riscos de viver em megalópoles do terceiro mundo ou de ser cidadão de nações beligerantes do primeiro, até os riscos impostos pelas tecnologias mais softs (lembrem dos agrotóxicos), passando pelas nucleares (lembrem Chernobyl) e agora pelas genéticas.

Nesta corrida tecnológica que a dinâmica global do capital impõe, os riscos são inevitáveis. Este é o ponto que a discórdia se pronuncia, pois somente admitimos correr riscos por causas nobres. É nobre salvar milhões de seres humanos de doenças incuráveis, nem que por isto corramos o risco de modificar a natureza humana ao manipularmos o genoma humano. Mas como podemos admitir os riscos da biotecnologia agrícola se a fome e subnutrição que existe no mundo não são causadas pela falta de alimentos?

A inovação biotecnológica será sempre fonte de conflito social, com profundas implicações morais, caso não seja discutida como questão de Estado, como um dos elementos fundamentais de um projeto de nação do século XXI. A legitimação social do processo de desenvolvimento das modernas biotecnologias passa pela explicitação unívoca dos benefícios e dos riscos. É uma tarefa complexa, mas não impossível. Dois princípios são basilares: a transparência do processo decisório e o acesso às informações. É isto que toda a sociedade espera de nossa ilustre elite de cientistas e representantes políticos. Mais que isto, esperamos que sejam iniciados trabalhos para a construção de um Código de Ética em Manipulação Genética que defina as linhas mestras de orientação das pesquisas para a efetivação do bem comum.

Valério Igor P. Victorino
Professor da Universidade do Vale do Itajaí – SC
E-mail: rb.psu@civrogi

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