Brasil: muitas histórias e tantas paisagens sobre a destruição e a resistência no cerrado

Idioma Portugués
País Brasil

Hoje, o cerrado é oferecido em holocausto, em troca da Amazônia, por uma política que ignora as suas populações. A partir dos anos 70, o agronegócio tem como sócio majoritário a soja

Liderança entre os trabalhadores rurais do cerrado, Manuel da Conceição, assim como a terra em que vive, teve o corpo devastado pelas torturas da ditadura. Uma de suas pernas secou, como secaram tantos brejos, veredas, igarapés e pântanos. O cerrado, a partir de seu coração, no centro do Brasil, se mistura com o pantanal; a mata de araucária, no sul do país; a mata atlântica; a caatinga, no Nordeste; a zona dos cocais e babaçuais, no Maranhão e Piauí; e a Floresta Amazônica. Hoje, o cerrado é oferecido em holocausto, em troca da Amazônia, por uma política que ignora as suas populações. A partir dos anos 70, o agronegócio tem como sócio majoritário a soja. Há tratores de 230 mil dólares, mas a monocultura significa não produzir para o próprio povo e não contemplar quem produz nem suas famílias. Quantas sementes têm que ser plantadas para dar retorno a esse investimento? Que quantidade de terra é necessária pra tanta semente ser cultivada? Quantos chapadões são sacrificados e deixam de gerar agricultura diversificada, extrativismo e caça para os povos do cerrado? Além da soja, tem a cana-deaçúcar, os eucaliptos e sua produção de carvão vegetal com utilização de mão-de-obra escrava, tudo sugando as chapadas, chupando água do lençol freático que sempre foi a garantia de vida das veredas, das matas ciliares, dos pântanos, igarapés, rios.

Manuel teve o corpo e o coração muito machucados pelos militares, mas não perdeu a beleza, pois sua dignidade é perene, límpida, transparece e aparece em tantos outros homens e mulheres que povoam o cerrado brasileiro. Disse um índio no Fórum Social Mundial: "Indiscutivelmente, a expansão do agronegócio está matando as culturas dos povos do cerrado. Existe um conhecimento sobre o cerrado que está inscrito na prática das populações. Com toda certeza, quando seca um pântano, um igarapé, um rio, ou quando migra um camponês, um indígena, um quilombola, a humanidade fica mais pobre".

DESTRUIÇÃO

Os camponeses, habitantes originários do cerrado, sempre trabalharam com paisagens diversificadas. Nas baixadas, a agricultura; nas chapadas, o gado à solta, a caça e coleta de ervas medicinais e de frutos, como o pequi; nas encostas, uma mistura de agricultura, extrativismo, um pouco de pecuária. Os chapadões foram um grande achado para o agronegócio. Que consegue, hoje, captar água a até 150 metros de profundidade, trazendo para a superfície a água do lençol freático, num local onde a água já é escassa por seis meses. Essa operação provoca um desequilíbrio hídrico de tal porte que rios, córregos e lagoas, antes perenes, tornam-se intermitentes e até deixam de existir. Com a falta d'água, antes de o agronegócio produzir grãos para exportação, produz a sede, a fome e a expulsão de milhares de habitantes. O problema afeta as bacias do Prata e Amazônica.

EM COMUNHÃO

Manuel da Conceição trabalha desde os seis anos, quando tomava conta dos irmãos menores, enquanto os pais iam para a roça. "Me fiz grande, analfabeto de pai e mãe. Com nove anos, acordava às quatro da madrugada, ia com meu pai na sua oficina de ferreiro fazer ferramentas para os outros agricultores". No povoado, não tinha escola e ele não tinha tempo. Já com 18 ou 20 anos, Manuel conta que comprou uma carta de ABC e saiu pelas casas pedindo lição para um e para outro. Foi aprendendo a soletrar. Manuel tem quatro filhos. Manoel é pedagogo; Raquel é líder rural no Piauí. Mariana, que acaba de ser formar em agronomia , é filha da companheira com quem vive desde 1986. A outra filha é Rosa, que estuda antropologia em Alagoas.

Em 1963, o MEB, Movimento de Educação de Base, fez um encontro no Maranhão. Manuel participou, e lá, ouviu falar, pela primeira vez, em sindicalismo, cooperativismo e política. Também em 1963, ele participou da fundação do primeiro sindicato dos trabalhadores rurais do Maranhão, em Pindaré Mirim, com a presença de mais de mil trabalhadoras e trabalhadores. No dia da fundação do sindicato, os trabalhadores decidiram lutar em três frentes: obrigar os fazendeiros a prender seus gados, que destruíam as roças dos trabalhadores; derrubar as cercas dos fazendeiros, que avançavam pelas terras onde os trabalhadores já tinham plantado; e começar a organizar trabalhadoras e trabalhadores para controlar a produção, armazenar, não entregar aos grandes comerciantes como pagamento de dívidas e esperar a alta das safras. O sindicato chegou a mobilizar 50 mil trabalhadores. "Quando estávamos no auge da organização e da luta, em 1º de abril de 1964, nosso município foi cercado pela Polícia Militar e pelo Exército. Eles proibiram todas as reuniões. Fomos acusados de comunistas e subversão. Criaram muitos grupos paramilitares e implantaram o terror", conta Manuel.

RIOS MORTOS

O líder rural lamenta que os rios da região estejam sendo devastados, aterrados por areia, envenenados por adubos químicos. "Os rios só têm água roxa e preta. Acabou a fartura de peixes, pássaros, cutia, tatu, anta, veado. O que tem agora é eucalipto, capim pra criar gado. Não tem mais mata ciliar. Os tratores devastam as florestas e as terras. Nas chuvas tudo é arrastado, entupindo os rios". Manuel diz que estão desertificando o Maranhão. Mais: "Quando falarmos dos seres humanos, a coisa é ainda mais grave. Quero ver qual é o governo que vai conseguir segurar a violência no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, São Luís com essa grande quantidade de trabalhadores pobres que são expulsos, com fome e sem trabalho".Os pobres viram marginais, diz, e não vai ter governo que dê conta de atender esses milhões de brasileiros que, sem querer, caem na marginalidade para sobreviver."

RESISTÊNCIA
Para fazer frente a tudo isso foram criados, há 18 anos, o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural e, mais recentemente, a Central de Cooperativas Agroextrativistas do Maranhão (CCAMA), em Imperatriz. Antes de se organizar, esses trabalhadores não tinham nem terra e nem ferramentas. Hoje, são mais de 30 mil trabalhadores assentados em Buriticupu, onde 38 grandes fazendas foram ocupadas. "Eles ainda estão muito pobres, mas pelo menos já têm o que comer" - conta Manuel. Declarando seu amor pelo cerrado, ele lembra que nele deixou sua família quando foi preso e depois se refugiou a Suíça. "Aqui fiz a minha roça, colhi meu babaçu. Eu tenho todo interesse de dizer que o que faço hoje é tentar levantar as vozes adormecidas dos povos do cerrado".

MARIAS

Maria Querobina da Silva Neta, 58 anos, é outra líder do cerrado e da zona dos cocais e babaçuais no Maranhão. Baixa, forte, olhar firme, ela não estudou quando criança. Aos cinco anos, ajudava a tomar conta dos irmãos e se encarregava das tarefas da casa. Com oito, ia para a roça levar comida para os pais e os irmãos e, com dez, colhia arroz, feijão, algodão, fava, mandioca e cuidava da casa de farinha do pai. "Quebrava coco de babaçu pra fazer azeite, sabão; nessa idade a gente começava a fazer de tudo lá no Olho D`água do Tolentino, no município de Peixeira, no Maranhão. Me casei com 18 anos e tive quatro filhas. Duas se formaram no magistério e hoje eu estou estudando no Mobral, no projeto Vamos ler. Já leio bastante, posso ler essa reportagem, mas escrevo com muita dificuldade." Faz tempo que os problemas de terra são grandes. Antigamente, a maioria era terra devoluta e, quando o Sarney era governador, "se vendia terra até por telefone". "A gente colocava uma roça e logo depois chegava alguém se dizendo dono da terra e querendo cobrar renda da nossa produção". Ela fez parte do Conselho da Igreja, foi catequista de adultos e ajudou a criar um novo sindicalismo. Em 1978, com outros companheiros, ganhou a diretoria do Sindicato de Imperatriz. As filhas seguiram os passos da mãe. Hoje, uma é líder no assentamento Sol Brilhante, outra é diretora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e vice-presidente da Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Imperatriz Ltda. Eleita presidente do sindicato em 1985, Maria conseguiu promover várias ocupações com proposta extrativista. Organizou um grupo de mulheres e conquistaram a Fazenda Taiguara. "Aí começamos a conquistar várias fazendas. As mulheres foram o esteio da guerra. Nossa missão era quebrar coco de babaçu, fazer muita denúncia de devastação e ocupar terras pra garantir extrativismo, agricultura de subsistência e recuperação do cerrado", conta.

Fonte: Jornal Brasil de Fato

Comentarios