Os agrotóxicos e a nova ordem

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Agrotóxicos e certificação de alimentos orgânicos seguem normas internacionais, estabelecidas pelo poder industrial exógeno. O Dogma do Livre Comércio impede os governos periféricos de intervir para disciplinar as questões de agrotóxicos ou criar custos, impondo vontades privativas até nas propagandas e publicidades dos produtos

Recebi um convite para uma proferir conferência sobre agrotóxicos em evento oficial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a realizar-se em Recife. O mesmo foi confirmado telefonicamente duas vezes, mas recebi a formalização após o prazo derradeiro, que fiz constar na resposta de aceitação. Obrigavam-me a fazer uma reserva aérea de minha escolha. Cumpri e mandei cópia da mesma para os anfitriões. Fiz reserva no hotel indicado no convite, ressaltando que aceitava ficar em quarto duplo, pois o valor era muito alto para um funcionário público.

No dia e hora combinado fui para o aeroporto e, qual não foi a surpresa, não existia bilhete autorizado pela agência governamental. Contatada, as respostas evasivas me fizeram perder o vôo, a viagem e compromissos em Salvador, que iria atender na volta. Nada demais, apenas incompetência ou má-fé. Imediatamente remeti um correio eletrônico a todos os que me envolveram nesta situação esdrúxula, com cópia aos de Salvador, uma autarquia federal.

Interessante, no dia seguinte recebi um telefonema da encarregada do setor de eventos da Anvisa desculpando-se e perguntando se eu ainda tinha interesse de ir a Salvador, pois ela poderia remeter uma passagem. Que sejam incompetentes ou ajam de má-fé não me merece um juízo de valor, mas quererem me corromper com dinheiro público, não aceito, nem permito. Mantenho minha coerência ou intolerância. Este é o tema que abordaria.

O sábio Albert Einstein, no artigo "Por que o Socialismo?", publicado no primeiro número da Monthly Review, em maio de 1949, diz: - Poderia parecer que não existem diferenças metodológicas essenciais entre a astronomia e a economia: o objetivo dos cientistas é, em ambos campos, descobrir leis de validade universal para um grupo limitado de fenômenos, a fim de mostrar, o mais claramente possível, sua interrelação. Mas é indiscutível a existência de tal tipo de diferenças metodológicas. Não é fácil descobrir leis gerais no campo da economia dado que os fenômenos econômicos observáveis estão amiúde influenciados por diversos fatores que são muito difíceis de avaliar em separado. Por outra parte, a experiência acumulada desde o começo do chamado período civilizado da história humana, como bem se sabe, foi sempre amplamente influenciado e condicionado por causas que de modo algum são de natureza exclusivamente econômica. Por exemplo, ao longo da história, a maioria dos principais estados deveu sua existência à conquista. Os conquistadores estabeleceram-se, legal e economicamente, como a classe privilegiada do país conquistado. Monopolizaram a propriedade da terra e designaram, entre os seus, aos membros do clero. Estes sacerdotes, que controlavam a educação, converteram a divisão classista da sociedade em uma instituição permanente e criaram um sistema de valores através do qual, desde então, pode guiar-se, em grande medida inconscientemente, a conduta social dos homens.

Entretanto, a tradição histórica pertence, por assim dizê-lo, ao passado: em nenhuma parte se superou ao que Thorstein Veblen denominava de “fase depredatória” do desenvolvimento humano. Os fatos econômicos observáveis correspondem a esta fase; as leis que podem inferir-se dos mesmos nem são verificáveis nem válidas em outras fases.

A situação dos agrotóxicos tem um paralelo com a certificação de alimentos orgânicos: são normas internacionais, estabelecidas pelo poder industrial exógeno. Os primeiros, como instrumentos messiânicos contra a fome, miséria e epidemias, almejando lucros; e os últimos, garantia de qualidade, saúde diferenciada e status, satisfazendo cobiça.
De tal sorte que se constituem em dogma, ideologia, doutrina e tecnociência, construindo sua Igreja e Ordem, por meio dos governos, universidades, institutos de tecnologias, organismos multilaterais (FAO, OMS, Codex Alimentarius e outros) com suas políticas e campanhas oficiais. Imprescindíveis por serem economicamente muito lucrativos.

Internamente, a indústria de agrotóxicos sob tutela do Estado nacional democrático foi obrigada a desenvolver, mesmo que convencionalmente, critérios e parâmetros de saúde (educação e meio ambiente) para preservação dos cidadãos. Mas isso nos países pobres, periféricos e não democráticos passou a ser "fantasia ou disfarce de regulamentos", para impedir questionamentos sobre a inexistência de rigor e controle que eram necessários.

Os agrotóxicos mudaram a fisionomia da agricultura mundial com desastrosos impactos socioculturais. Por isso, a agricultura contra os agrotóxicos era chamada de "alternativa", enquanto as autoridades os chamavam de "defensivos agrícolas" ou "remédios das plantas", para fascinação e consumismo.

Neste universo, os agrotóxicos adquirem forma inconsciente, virtual, e passam a ser o sujeito (público) das políticas nacionais (de interesse privado). Ser crítico a eles é subversão e até antipátria. Na evolução de sua convivência no tempo e espaço da luta entre os favoráveis e contrários, os governos atravessam da conivência à cumplicidade, chegando à incompetência ou inépcia, pois não há lucidez do poder para impedir ou contrariar os interesses das empresas na evolução tecnológica de sujeito e objeto.

Seus impactos negativos provocam reações sociais que não superam o status quo, e os escândalos esporádicos chegam como medo e mobilização, por geral contidos ou afogados por mecanismos tecnocientíficos pouco ou quase nada conhecidos. Não há nada de consciência, pois o saber contrário aos agrotóxicos se dá sobre uma desconstrução do saber industrial e reconstrução "alternativa" ao mesmo, pela maioria das vezes no próprio interesse da mesma empresa. Quando não, as disputas se dão no plano das estratégias de apagar as denúncias ou escândalos com mídia e sofismas, por isso para entabular uma disputa contra agrotóxicos é necessária uma organização ou conjunto de entidades preparadas para tal, sem o qual não há ambiente para sucesso e alcance da conscientização.

A maior preocupação do "lobby" das empresas, a Gifap, é impedir que sua derrota seja rápida com maior impacto sobre o comércio de seus agrotóxicos. Suas projeções são feitas em cada estado nacional, extraindo as resultantes sociais para aplicar nas gestões de diferentes circunstâncias e no interesse das empresas.

Nos últimos setenta anos, a principal indústria foi a química derivada do petróleo, onde a farmacêutica, bélica e agrícola são uma só coisa. Por isso, o dogma econômico se consolidou com subsídios de dinheiro público das nações pobres para indústrias multinacionais de forma direta ou por meio de créditos com parcelas pagas com quantidades de agrotóxicos.

Eles gestionam junto aos organismos multilaterais e impõem aos governos campanhas de contenção (exemplos): - "Uma boa Prática Agrícola no uso de agrotóxicos" (isso mantém os resíduos de agrotóxicos dentro das normas conveniadas pelas empresas e organismos multilaterais, o que evita a lucidez social questionando o uso); mais tarde, "Instalação de Laboratórios de Análises de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos" (criando a necessidade e uma solução da indústria); depois, "Manejo Integrado de Pragas" (para evitar que se chegue à percepção que os produtos fazem dano à natureza e meio ambiente); "Lavado e Coleta de Embalagens Vazias de Agrotóxicos" (para impedir o uso da imagem da embalagem e nome da empresa com repercussão comercial); "Liberação de Taxas e Registros para baratear os custos e dar maior margens de competitividade aos agricultores" (adoção de custos de produção internacionais, pressionando e impondo a escala e norma do livre comércio dentro das propriedades rurais nacionais); e "Criação de Regras duras para a Agricultura Orgânica" (como forma de impedir a desorganização moral do setor de agrotóxicos nas periferias do mundo).

Muitas das campanhas acima não podem ser executadas pelo governo, logo algumas ONGs são articuladas para campanhas de interesses das empresas de venenos, como por exemplo: "A dúzia suja" (proposta de proibição nos países em desenvolvimento, depois de vinte anos proibidos nos países industrializados); M.I.P (onanismo intelectual dentro de universidades e institutos).

Essas e outras campanhas são elaboradas pelas empresas em consonância com os organismos multilaterais para as entidades ambientalistas ou não, técnicos, pessoas, muitas vezes, como ação de "inteligência" das empresas para manter o controle inconsciente ou virtual dos alcances e evolução dos controles. E muitos servem a isso por ingenuidade, desinformação, carreirismo, dinheiro, vaidade e outras. Estas campanhas podem ser encontradas em todos os continentes, e seus relatórios e resultados servem para as empresas montarem suas estratégias implementadas por programas oficiais de ajuda e créditos internacionais.

A indústria química contínua forte e com muita saúde; entretanto, muda a sua praça fabril, que deixa os países industrializados e se transporta para China, Indonésia, Brasil, México e Argentina, sob forte influência e apoio do Estado nacional. Isso ocorre, pois ela também vai transformar sua matriz tecnológica, que deixa a química e passa à biotecnologia, mas isso é organizado no plano político internacional com a troca do bilateralismo de Yalta pelo unilateralismo da Organização Mundial do Comércio.

Assim, a Rodada Uruguai do GATT re-situa e reorganiza a indústria transnacional de agrotóxicos para seu último ato: "O Livre Comércio de Agrotóxicos". Nos últimos trinta anos, o surgimento crescente do "fator ambiental" criou muitos problemas para as empresas, sendo o principal deles a consciência cidadã para as questões do ambiente e natureza. As poucas empresas de agrotóxicos passam a se fusionar para entrar em disputa pelo mercado das biotecnologias. Nisso, as marcas são importantes e a parte vulnerável das mesmas.

O Dogma do Livre Comércio impede os governos periféricos de intervir para disciplinar as questões de agrotóxicos ou criar custos, impondo vontades privativas até nas propagandas e publicidades dos produtos, ou passa a fazer o contrário: O exemplo do Brasil no governo Lula é clarividente, onde a maior questão atual é: liberação dos agrotóxicos internacionais, retirando os ministérios da Saúde e Meio Ambiente de suas decisões (Lei 7802/89). A justificativa governamental é a de baixar os custos de produção para as commodities e matérias-primas nacionais.

O governo "ingênuo" busca atender o "consumidor" com políticas públicas de interesse privativo e não os cidadãos em relação absoluta. Esta é a grande vitória da nova ordem da OMC. Um dos feitos inconfessáveis, por trás disso, é o de permitir, como já foi feito na Argentina, o uso de Atrazinas, proibidas no Brasil, para controle de soja transgênica em áreas-problemas, o que vale mais de oito bilhões de dólares/ano, principalmente nas áreas de Cerrado, Pantanal e Amazônia. A Syngenta sequer necessita defender seu produto, pois o governo e Estado, por meio das firmas oficiais, determinam isto como a "Livre Iniciativa" ou "Parceria Público Privado".

O mesmo se passa com os órgãos públicos, onde todos perderam a noção de sua função de controle dos agrotóxicos e passam a defender o Código de Defesa do Consumidor, pois os produtos chineses, paraguaios, argentinos e mexicanos são de má qualidade e necessitam ser controlados, por isso ou pela indústria "nacional", que devemos "patrioticamente" proteger.

As consciências contra os agrotóxicos se dispersam e fixam suas metas na agricultura "alternativa", que se transforma en "orgânica" ou "agroecológica". Há uma contradição invisível, pois a "consciência" antiagrotóxicos que migra para a nova Meca da Agricultura Orgânica (agroecológica) se desvanece em sua essência, pois não pode existir onde a utopia é o não-agrotóxico. E essa é a grande vitória da indústria química de venenos. De outra parte, na América Latina não-homogênea, a cadeia de agrobusiness impõe uma certificação ou "fair trade" em nichos de mercado ideológico e dogmático, para roubar mais-valia.

Mas isto é induzido como prestação de serviços locais, quando as empresas do tipo Tradax e Innovasure têm tudo pensado para no futuro existir somente uma prestadora desses serviços internacionais por meio de normas, escalas, Lei de Inocuidade, cumprindo a Legislação de Bioterrorismo Alimentar do governo dos Estados Unidos da América.

Sebastião Pinheiro é engenheiro agrônomo e florestal, autor de vários livros, entre os quais "Agricultura Ecológica e a Máfia dos Agrotóxicos" e "Cartilha Sobre Transgênicos".
Fuente: Ecoagencia

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