Protocolo de Cartagena: a hora da decisão

Idioma Portugués

A 3ª reunião dos países membros do Protocolo de Cartagena, que se realizará em março do próximo ano em Curitiba, está cercada de expectativas, e o pivô de tanto suspense é a posição brasileira. Até junho deste ano, em Montreal, quando ocorreu a 2ª reunião dos países membros do Protocolo, o Brasil ainda era visto como um dos países do 3º Mundo que batalharam ao longo dos últimos 11 anos para que a transferência, a manipulação e a utilização seguras de transgênicos pudesse ser feita sem trazer danos ao meio ambiente e à saúde pública

Esses países do 3º Mundo, particularmente aqueles megadiversos como o Brasil, temiam com razão que o transporte de transgênicos entre países acabasse levando à disseminação e contaminação dos nossos ecossistemas com organismos geneticamente modificados, os quais poderiam trazer danos ao meio ambiente e à saúde pública. Foi por reconhecer esses perigos que a Convenção sobre a Diversidade Biológica, convenção assinada durante a Eco-92, começou a negociar ainda em 1994 um protocolo de biossegurança, que seis anos depois, em janeiro de 2000, em Montreal, seria aprovado e passaria a ser conhecido como o Protocolo de Cartagena.

As negociações foram muito penosas devido principalmente à resistência do chamado “Grupo de Miami”, que incluía os maiores países exportadores de transgênicos, como os EUA e a Argentina. Esses países se opunham ao principal mecanismo de funcionamento do Protocolo que era o “consentimento prévio informado”, ou seja, o direito de países importadores a só receberem transgênicos em seu território caso manifestassem seu consentimento, e após serem plenamente informados da intenção dos eventuais exportadores.

Já esses últimos defendiam que bastava que toda a informação a respeito de transgênicos – cultivados, comercializados e beneficiados – constasse de um banco de dados internacional, e os países importadores é que buscassem descobrir o que poderia estar vindo dentro de contâiners. Mas, como se tratava de um grupo de apenas seis países, eles tiveram que se dobrar à pressão da comunidade internacional há cinco anos atrás, em Montreal, e aceitaram assinar o texto final, não sem antes forçarem o outro lado a ceder em alguns pontos. O mais importante deles era o dispositivo que se referia aos requisitos para a manipulação, embalagem e identificação de transgênicos.

No texto original havia a exigência de que cada carga de transgênicos exportada contivesse uma clara identificação do tipo de organismo vivo modificado ali contido, explicitando o gene ou genes introduzidos, as empresas responsáveis e outras informações pertinentes. Porém, para obter o apoio do Grupo de Miami, todos os demais países aceitaram estabelecer um prazo de até dois anos após a entrada em vigor do Protocolo de Cartagena, quando então se adotariam critérios claros para a identificação de transgênicos exportados. Até lá, bastaria aos países exportadores de transgênicos rotular as suas cargas com os dizeres: “pode conter transgênicos”.

Mas, o tempo passou, o Protocolo de Cartagena entrou em vigor, e em junho deste ano, em Montreal, esgotava-se o prazo dado aos seus países membros para que tomassem uma decisão sobre os requisitos pormenorizados para a manipulação, transporte, embalagem e identificação de transgênicos. E foi aí que o Brasil surpreendeu a todos, ao declarar que era “muito cedo e seria precipitado” ter que decidir-se sobre como identificar cargas de transgênicos. Junto com a Nova Zelândia – pois o grupo de Miami havia se desfeito já há muito tempo– o Brasil se recusou a apoiar uma proposta de consenso, fazendo com que fracassem as negociações de cinco anos!

A intolerância e a má fé brasileiras provocaram protestos de todas as partes, desde a Organização da União Africana, até a União Européia, sem falar no repúdio de ONGs e movimentos sociais de todo o mundo. Mas não sabemos se isso terá sido suficiente para demover o governo brasileiro de sua posição pró “liberou geral” do comércio de transgênicos, na próxima reunião, em março de 2006, em Curitiba. O lobby ruralista é o grande interessado no tema, pois depois de plantar ilegalmente soja e obter a sua “legalização” do governo Lula, agora quer vender sem ser obrigado a identificar o que está vendendo.

Segundo se tem transpirado no Planalto, não há acordo entre o Ministério do Meio Ambiente e Saúde, de um lado e o Itamaraty, o Ministério da Agricultura e o Ministério de Ciência e Tecnologia de outro. Isso é mal sinal, pois sempre que há uma disputa interna no governo Lula sobre questões ambientais, quem perde é a ministra Marina. Mas, dessa vez não será tão fácil para o Brasil representar o seu papel de vilão, pois em Curitiba vão se reunir também centenas de ambientalistas de todo o país e do mundo, movimentos sociais como o MST, povos indígenas e consumidores entre outros.

Em março de 2006, em Curitiba, o governo Lula vai ter que dizer claramente de que lado está: se preocupado em proteger o meio ambiente, a saúde pública, o direito do consumidor, a soberania alimentar, e a agricultura familiar como prometia o programa político em cima do qual foi eleito, ou do lado dos ruralistas, das multinacionais como a Monsanto e de países como os EUA e o Canadá, que em nome do “livre comércio” querem obrigar o mundo a aceitar os seus transgênicos.
Marijane Lisboa é professora doutora em Sociologia da PUC-SP, integrante da Diretoria da Associação de Agricultura Orgânica (AAO), entidade filiada ao Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS).

Artigo publicado originalmente no site Agência Carta Maior

Fonte: Estação Vida

Comentarios