"Primeiro a população brasileira precisa compreender sobre educação financeira para depois discutir finanças ambientais", diz a economista Amyra El Khalili

Idioma Portugués
País Brasil

"Construímos coletivamente a economia socioambiental, diferentemente da economia verde. A economia socioambiental passa por um processo de consulta aos povos e é lento. É de baixo para cima e de dentro para fora... Todo trabalho de consulta e construção coletiva demora anos, dada as dificuldades de chegar onde poucos conseguem em regiões afastadas e sem acesso à comunicação."

27/02/2015 | Susana Sarmiento

“Há um confronto com economia verde. Nós vimos como algo que vem de cima para baixo, como uma implementação de uma agenda de venda rápida, para legislar, dar números e estatísticas”, pontuou a economista Amyra El Khalili, que atuou por quase duas décadas no mercado financeiro e é fundadora do Movimento Mulheres pela P@Z! e editora da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras).

Para a professora de cursos de extensão e MBAs em diversas universidades, Amyra defende a economia socioambiental, que é construída com o tempo e inclui diferentes atores sociais. “A economia verde está atrelada à agenda política, transitória e depende da agenda de governo”.

Autora do e-book gratuito Commodities Ambientais em missão de paz - novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe, da editora Nova Consciência, Amyra fala com Setor3 sobre importância de unir finanças com cultura de paz, a atuação da Aliança RECOs, a avaliação do impacto de serviços ambientais e sua avaliação sobre o debate de práticas de economia verde.

Portal Setor3- Como é possível alinhar nos projetos da Aliança a área financeira e a cultura de paz?

Amyra El Khalili- É importante esclarecer que a Aliança RECOs reúne diferentes organizações e movimentos. Não somos uma ONG, mas uma rede de estudos e pesquisas ancorada no tripé informação, educação e comunicação. Compartilhamos conteúdos de diversas fontes e regiões para mídia nacional e internacional.

Nesse caso, é necessário alinhar esses dois temas, pois o setor financeiro é responsável pelo financiamento do mercado de armas e todo aparato gerador de guerras e misérias. Atualmente, há três principais mercados mundiais ilícitos: o de armas, o do narcotráfico, e o da biopirataria. Esse dinheiro passa pelo sistema financeiro. Se os bancos e as corretoras estivessem dispostos a combater crimes e corrupções, o primeiro aliado para alcançar a paz seria o próprio sistema financeiro, que poderia perfeitamente identificar, rastrear e confiscar as contas com provas criminais mas, infelizmente, são protegidas pelo sigilo bancário e fiscal. Dessa forma, a Aliança RECOs nasceu em 1996, justamente para combater a corrupção no mercado financeiro, denunciando seus impactos nas questões sociais e ambientais e cobrando a sua responsabilidade socioambiental, quando deveriam financiar projetos alternativos que exigem muito menos recursos. Defendemos projetos socioambientais que contribuem com a segurança pública, combate às drogas, a violência contra a mulher, a redução da criminalidade, que gerem emprego, ocupação e renda, e a preservação e conservação ambiental.

Portal Setor3 - De que forma vocês dialogam economia, sustentabilidade, meio ambiente, cultura de paz em suas ações?

AEK- Atuamos na construção de um novo modelo econômico e do empoderamento dos movimentos sociais e ambientais com a nossa experiência profissional no mercado de capitais. Antes de idealizar um projeto socioambiental, é necessário disponibilizar a sociedade informações técnico-científicas de fácil compreensão. Então, muitas vezes as comunidades não sabem lidar com captação de recursos. Quando estas ONGs e entidades recebem recursos de uma empresa estatal como a Petrobras, pergunto: será que estão preparadas para mexer com dinheiro? será que sabem prestar contas? como se dá essa relação entre agir e gastar dinheiro? Muitas ONGs e instituições conseguem fazer bons trabalhos justamente por não terem dinheiro, o que move seus associados e membros é a causa. Em muitos casos, quando entra o recurso financeiro ao invés de ajudar, atrapalha. A nossa função é questionar esse modelo para que os atores sociais se informem melhor sobre as alternativas e riscos para tomar decisões. Afinal, recusar dinheiro também é um direito que eles têm, como é o caso dos projetos oriundos mercado de carbono.

Portal Setor3- Quais casos você observa que a informação fez diferença sim para melhorar a qualidade de vida daquela comunidade?

AEK- Não há como indicar uma comunidade específica já que atuamos no Brasil e exterior. Há vários casos que poderiam ser citados, de acordo com a emergência e credibilidade das fontes. Por exemplo: demos visibilidade para as denúncias feitas com projetos do mercado de carbono e pagamentos por serviços ambientais no Acre. Aparecia na mídia e nos relatórios institucionais com uma única visão: a do governo, das ONGs e consultores que estão advogando a favor da economia verde nessa região. Demos vozes para ativistas, pesquisadores, lideranças indígenas e sindicais do Acre que tem muitas críticas ao mercado de carbono, com o REDD (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), pagamentos por serviços ambientais, Bolsa Verde, entre outros instrumentos.

Para avaliar a qualidade de vida, como é possível assinar um projeto que compromete o uso da terra e coloca em risco essa comunidade ao endividá-los? Ou seja, não é apenas ter recursos e melhorar a qualidade de vida, sobretudo evitar os conflitos, confrontos e violências com abusos contra os direitos humanos e o ambiente, bem como fiscalizar e monitorar a origem e aplicação dessas verbas, sejam públicas, ou privadas. Agimos em duas frentes: primeiro orientar para produção de um projeto econômico financeiro e jurídico com a mudança de paradigma; e a outra é divulgar e publicar os relatórios de dezenas de cidades elaborados pelos meus alunos, formadores de opinião e lideranças que participaram dos cursos e oficinas que ministrei, bem como os relatórios de outras frentes. Tenho certeza que em todos os lugares que aplicamos essa metodologia educacional formando multiplicadores com troca de experiências e debates sobre a cadeia produtiva de bens e serviços, discutindo problemas e soluções. Alguma coisa naquele local mudou.

No Acre, a convite do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), disse em uma palestra na Universidade Federal do Acre sobre o mercado de carbono e pagamentos de serviços ambientais. Fiz uma crítica sobre a lei Sisa, que repercutiu em mídia nacional e internacional. Sugiro assistir a palestra: http://goo.gl/9us5JT. E ler os artigos, em português: http://goo.gl/v8rGP7. Também há versão em inglês: http://goo.gl/RmYedz

Apoiamos e divulgamos o Dossiê Acre - Documento Especial para a Cúpula dos Povos - O Acre que os mercadores da natureza escondem. Publicado pelo Cimi, da regional Amazônia Ocidental, o documento foi feito em 2012 e não tinha ainda conseguido o merecido espaço na mídia e nos mais diversos fóruns de debate. A posição do Dossiê Acre era vista com negligência, descaso e criminalização. Na mídia, não abordavam o ponto de vista técnico, operacional e jurídico-socioeconômico que aponta esse estudo e de como essas políticas de cima para baixo interferem no modo de vida das comunidades indígenas, tradicionais e campesinas naquela região.

Portal Setor3- Em sua avaliação, como a população em geral pode acompanhar esses dados e entender melhor desses serviços ambientais?

AEK- Podem acompanhar os conteúdos assinando nossos boletins pelo e-mail: rb.moc.sopurgoohay@ebircsbus-socereceb. Para acessar os boletins: https://br.groups.yahoo.com/neo/groups/becerecos/info. Sou professora de diferentes cursos de extensão, de pós-graduação e MBAs aplicando metodologia da Aliança RECOs. Os participantes das oficinas e cursos produzem relatórios, que indicam o mapa da região, o perfil da população, características do bioma, identificam as potencialidades alternativas da biodiversidade. Dessa forma, podem apresentar os problemas, como água contaminada e enfrentamento de violência, de drogas, degradação ambiental por exemplo e proporem soluções. É daí que idealizam seus projetos socioambientais e buscam encontrar formas de viabilizá-los.

Atualmente, na Aliança, temos mais de cinco mil distribuidores, multiplicadores e parceiros na produção e disseminação de informação. Como parceiros temos os sites do Jornal Pravda.ru (russo, italiano, português e inglês), com quatro milhões de acessos por mês, o AgoraVox (Francofono - Bruxelas), a revista Diálogos do Sul (português e espanhol) , a Rede Brasileira de Informação Ambiental (Portal do Meio Ambiente), o Jornal O Nortão, a EcoAgência de Notícias, o Portal Biodiversidad en América Latina y El Caribe, e tantos outros, além das redes temáticas que reproduzem e publicam nosso material ( REMA, blogs SOS Rios do Brasil, Rede Global da Sociedade Civil e outros), que possuem outra quantidade enorme de acessos e membros. Temos ainda parceria com redes de radialistas, como a Rádio Mundo Real (ONG Amigos da Terra), do Programa Planeta Lilás (Rádio MEC-RJ, da EBC), entre outras.

Sou membro do conselho editorial e colaboradora da Revista Fórum de Direito Urbano e Ambiental (FDUA), parceira na publicação dos relatórios e diversos artigos. São essas parcerias e “nós de comunicação”, que formam a “aliança” que fará 20 anos no próximo ano com trabalho voluntário, sem recursos de empresas e de governo. Não somos a mídia. Somos a fonte para a imprensa ter contraponto. Apoiamos a mídia alternativa para que também possa ser financiada, já que nos presta um serviço de utilidade pública da maior relevância.

Portal Setor3 - Como você avalia a situação dos serviços ambientais, como mercado de carbono, REDD e outras práticas, aqui no Brasil? Como ampliar o debate sobre o impacto desses serviços para toda população?

AEK- Participamos do movimento internacional contra a mercantilização e financeirização dos bens comuns, que são contra o modelo econômico financeiro dos pagamentos por serviços ambientais, o mercado de carbono, o REDD, créditos de compensação e títulos ambientais negociados em Bolsas de Valores e de Commodities, já são propostas que foram transformadas em leis em outros países, inclusive aqui no Brasil estão sendo implementadas (Lei Sisa, do Acre). Foi um desastre, conforme denuncia a edição especial do Jornal Porantim e relatórios da Plataforma Dhesca, que podem ser acessados aqui.

Quando uma proposta vira legislação, ela não é mais um debate público, passa a ser uma norma. Para legislar com eficiência, de forma que a lei pegue e seja bom para toda a sociedade, é necessário ter antes um amplo debate público. Em muitos países isso não aconteceu. Sugiro conhecer aqui o REDD Monitor e WRM, respectivamente: http://www.redd-monitor.org/ e www.wrm.org.uy

Foi por forças de interesses dos governos locais, políticos e forte lobby de corporações transnacionais. Aqui, no Brasil, não está sendo diferente. Apesar de muitas organizações e comunidades serem contra todos esses mecanismos, para que suas vozes sejam ouvidas desde a base da sociedade, ainda falta longa estrada. Também a transversalidade da questão ambiental ainda é muito recente para ser assimilada pelo interesse público e obter a consciência da sociedade como um todo. Como legislar sobre um tema tão complexo e recente como finanças ambientais? Como falar das interfaces multidisciplinar do tema e traduzir essa linguagem para a população?

Portal Setor3- Qual ator está mais avançado nesse debate, de democratizar mais essa informação?

AEK- Nessa discussão de finanças ambientais, não estamos avançando pois há ainda muita confusão conceitual, o que torna-se um perigo nos desenhos dos contratos financeiros e mercantis. A linguagem de finanças é restrita para quem entende e atua no ramo. Há um retrocesso nos instrumentos de financiamento (fomentam) e um avanço nos instrumentos que financeirizam (endividam). Nem o mercado acionário no Brasil é popular, muito menos o mercado de commodities e derivativos, relativamente novo nesse continente, é compreendido. A própria palavra commodities dá confusão. Ela nem é traduzida ao português e espanhol por tratar-se de uma expressão de comércio exterior e de produção em escala industrial, além de ser um jogo financeiro.

Antes de fazer legislação para finanças ambientais, por que a população não briga para reduzir a taxa de juros do cartão de crédito e limite do cheque especial? Como entra o cartão de crédito na vida de cidadãos que não sabem nem usar o crédito, depois pagam o mínimo e entra no sistema rotativo e necessita pagar taxa de juros de 19% ao mês. E se replicamos esse “modus operandi” no mercado financeiro ambiental, que envolve terra, território, água, é muito complicado. Entendo que a nova economia é viável por meio de projetos pequenos e pontuais. Porém, o interesse dos consultores, de empresas e dos governantes é por grandes projetos, pelo alto recurso envolvido. Portanto, é necessário quebrar a acumulação e distribuir melhor a renda, evitando projetos com infraestruturas inalcançáveis. É necessário ampliar a quantidade de pessoas beneficiadas com inclusão socioambiental. Não é à toa que tem tanta corrupção pela concentração de muito dinheiro nas mãos de poucos.

Portal Setor3 - Quais são suas perspectivas no debate de economia verde? Qual segmento está mais avançado e está considerando as necessidades de populações tradicionais?

AEK- O problema é que a economia verde vem de cima para baixo e de fora para dentro. É um projeto decidido pela ONU, com governantes e corporações conforme denunciamos na COP 19. Interessante ler esse artigo, em português: http://goo.gl/tRiaI7. Também há versão em espanhol: http://goo.gl/sVgPkG

Por esses motivos, construímos coletivamente a economia socioambiental, diferentemente da economia verde. A economia socioambiental passa por um processo de consulta aos povos e é lento. É de baixo para cima e de dentro para fora. Não acompanha a agenda da próxima eleição, de quatro em quatro anos. Todo trabalho de consulta e construção coletiva demora anos, dada as dificuldades de chegar onde poucos conseguem em regiões afastadas e sem acesso à comunicação. Locais onde a população mais necessita de assistência e orientação e com mais impactos sociais e ambientais. A economia socioambiental não pode depender da agenda governamental. Muitas vezes contraria fortes interesses políticos e econômicos. Ela tem que seguir seu caminho natural com adesão dos atores sociais, sem imposição goela abaixo por normas e regras, respeitando-se os direitos constitucionais duramente conquistados. Há quase 20 anos trabalhamos nesse projeto de envergadura geopolítica pela cultura de paz, cujo o resultado se dará a longo prazo. Não buscamos resultados imediatos, mas duradouros e verdadeiramente sustentáveis formando “alianças” inquebrantáveis.

Fonte: Setor 3

Temas: Economía verde

Comentarios