O que há por trás da alta de preço da comida no Brasil e a Dra. Katia Abreu não revela

Idioma Portugués
País Brasil

"Seria de todo conveniente que a presidente do CNA reflita sobre o tema da Campanha da Fraternidade neste ano de 2011", recomenda Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST e procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul

 

Pois, segundo o advogado, "as dados objetivos e as lições lá contidas sobre a nossa realidade agrária põem em séria dúvida a opinião da presidente da CNA. Seria interessante ela avaliar, então, se a entidade por ela presidida e a bancada ruralista no Congresso, da qual participa com muito destaque, não são responsáveis pelo aumento dessa dor e desse gemido da terra, ao efeito de abortar qualquer projeto alternativo à injustiça social preservada pelo modelo econômico, político e jurídico por ela defendido. Se esse é perfeito, deveria diminuir e não aumentar o preço da comida".

 

Eis o artigo.

 

A presidente da CNA (Confederação Nacional da Agricultura) publicou um artigo na Folha de S. Paulo de sábado, 19, sobre a alta crescente que está se verificando no preço dos alimentos. Descarta os mercados futuros e as condições climáticas como a fonte dessa crise, mas aponta a “elevação da demanda nas regiões pobres do mundo, em especial na Ásia” como a sua causa. Até aí, pouco ou nada acrescentou a quanto já se debateu e conhece. Ao apontar a saída para o problema, porém, reduziu tudo a outra receita não confirmada historicamente, pelo menos para os povos pobres. Tudo se resolveria em “produzir mais grãos, mais carnes e mais frutas”, coisa que estaria sendo atrapalhada pelo nosso Código Florestal, já vencido em anos (1960); hoje, o país é outro, fala a senadora: “...somos o segundo maior exportador de alimentos do mundo” e, nessa produção “ ocupamos 230 milhões de hectares, somos 191 milhões e temos uma agropecuária moderna, que assimilou tecnologias, gera empregos, distribui renda e produz com eficiência, e de forma sustentável, comida de qualidade para o mercado interno e o mundo.”

 

Algumas contradições e incoerências presentes nessa publicação têm de ser denunciadas, sob pena de passar por verdade uma versão que autoriza ser vista como tendenciosa e, até, bastante simplória, da complexa conjuntura atual vivida pelo agronegócio no Brasil.

 

Acusando de ultrapassada, por exemplo, a legislação do país sobre florestas, o texto da senadora não aponta um dispositivo sequer desse ordenamento jurídico no qual haveria fundamento para a sua crítica. O fato de o Brasil ser o segundo maior exportador de alimentos do mundo não explica e muito menos justifica as razões pelas quais ainda é tão grande a indigência, a fome e a miséria persistentes em tão grande parte da população sem-terra, vivendo no interior do país, em nossas zonas rurais.

 

Muito pior se revela a crítica da presidente da CNA, considerando-se os demais dados que ela aponta no seu texto, como o aumento de extensão da área plantada, a excelência “moderna” dos nossos métodos de produção e os ótimos efeitos sociais por ela tidos como já alcançados. “Esqueceu-se” de colocar as premissas probatórias dessa conclusão. Como é que uma exploração de terra com tantas virtudes, mesmo sendo tão boa, move pressão politica tão poderosamente contrária à revisão dos índices de produtividade desse bem, defasados há décadas, a ponto de eles permanecerem sem a mínima condição de cumprirem os objetivos para os quais foram estabelecidos, que outros não são, justamente, o de comprovarem toda essa alegada excelência. Não recordou também que, sobre a grande extensão da área plantada, pesa uma função social de propriedade ignorada ou sacrificada por empresas transnacionais estrangeiras capazes de monopolizar a produção e a venda do que a terra sustenta e favorece no Brasil, patenteiam sementes, açambarcam latifúndios de tamanho superior aos limites legais permitidos, indiferentes à população pobre nativa, expulsando gente, impondo a venda de agrotóxicos e sementes transgênicas, contaminando nossa terra, nosso ar e nossa água. Isso é feito, inclusive, com a cumplicidade de empresas “laranjas”, disfarçadas de brasileiras, como está ocorrendo agora na região da campanha do Rio Grande do Sul, e já foi provado em documentação oficial do Ministério Público e do Incra neste Estado.

 

Sobre a modernidade da nossa tecnologia, ela não referiu um conhecido fato notório independente de prova - o de não ter o agronegócio exportador o mérito de alimentar o nosso povo, mas serem as pequenas propriedades rurais e posses próprias da economia familiar as responsáveis pela garantia do respeito devido a um direito humano tão fundamental como esse. Não é essa economia, também, a que já foi flagrada explorando trabalho escravo, monitorando a bancada ruralista no Congresso Nacional para impedir a transformação em lei da PEC que acentua sanções legais a esse tipo de crueldade. Nem é ela a responsável pelo vergonhoso número de mortes de agricultores sem terra que a CPT publica anualmente, em conflitos gerados, exatamente, pela concentração da propriedade rural em tão poucas mãos, no nosso país.

 

Quem estuda um pouquinho a nossa Constituição Federal e o nosso Direito Agrário sabe existir uma diferença muito grande entre produtividade e produtivismo no uso e na exploração da terra. A opinião da senadora presidente da CNA deixa as/os leitoras/es do seu artigo na dúvida se ela conhece essa diferença.

 

A produtividade está bem longe de poder ser medida, tão só, sob a lente da conveniência econômica, conforme o seu artigo deixa transparecer. Ela respeita a natureza desse bem indispensável à vida dele e nossa; não quer a sua morte, por via de uma exploração predatória, O produtivismo transforma-o em reles mercadoria, posta em concorrência (ou leilão) de quem paga mais, por ele ou por seus frutos, preferentemente empresas situadas fora daqui, por piores que sejam os efeitos sociais e ambientais desse interesse. A primeira se preocupa com os fins próprios da saudável e abundante fecundidade da terra, coloca-os em função do seu destino, capaz de alimentar, com folga, a multidão dos brasileiros que, ao contrário do dito pela senadora, ainda padecem fome. O outro se preocupa com o poder de transformar esse bem e essa fecundidade potencial apenas em lucro, dinheiro, não raro entregue, por sua vez, a roleta das bolsas de valores.

 

Antes de se buscar somente na produção, portanto, a solução para diminuir os preços dos alimentos, um mínimo de sensibilidade humana e social deveria se preocupar com o acesso de todas/os as/os brasileiras/os aos frutos e produtos da nossa terra, sua distribuição e partilha, como a reforma agrária, também esquecida no seu texto, pretende garantir. Não adianta produzir mais, “aumentar o bolo”, como se pregava no passado, se a maior parte do que se colhe e cria é mandada para fora, subindo de preço o que fica para o mercado interno, ao limite de proibir, de fato, o seu consumo pela população trabalhadora e pobre.

 

A Folha de São Paulo está avisando que a senadora vai escrever quinzenalmente naquele jornal. Seria de todo conveniente que, no seu próximo artigo, ela reflita sobre o tema da Campanha da Fraternidade, empreendida pelas Igrejas, neste ano de 2011 (Fraternidade e a vida no planeta), acompanhado por um lema retirado da Carta de São Paulo aos romanos, por sinal, com recado direto para o seu texto - “A criação geme em dores de parto.”

 

Os dados objetivos e as lições lá contidas sobre a nossa realidade agrária põem em séria dúvida a opinião da presidente da CNA. Seria interessante ela avaliar, então, se a entidade por ela presidida e a bancada ruralista no Congresso, da qual participa com muito destaque, não são responsáveis pelo aumento dessa dor e desse gemido da terra, ao efeito de abortar qualquer projeto alternativo à injustiça social preservada pelo modelo econômico, político e jurídico por ela defendido. Se esse é perfeito, deveria diminuir e não aumentar o preço da comida.

 

Instituto Humanitas Unisinos, Internet, 23-3-11

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