O camponês, guardião da agrobiodiversidade

Idioma Portugués
País Brasil

"Apesar da sua importância na história contemporânea da humanidade, os camponeses contemporâneos são considerados pelas classes dominantes como cidadãos de segunda categoria. São rotulados como os pobres do campo. Portanto e supostamente, diferentes dos empresários capitalistas do agronegócio, estes sim reputados como os responsáveis pelo incremento da agricultura nacional, quiçá os ‘heróis nacionais’."

 

 

Horacio Martins de Carvalho

 

(Curitiba, janeiro de 2013)

 

Levando em conta algumas idéias e pequenas coisas

 

 

A questão camponesa pode ser considerada como uma temática fundamental no universo social do mundo contemporâneo, por três motivos:

  • pelo reconhecimento mundial da sua importância e presença, tais como: a Assembléia Geral da ONU declarou 2014 o Ano Internacional da Agricultura Familiar[1]; os camponeses estão presentes nas diversas regiões do mundo alcançando aproximadamente um terço (1/3) de toda a humanidade; e são os camponeses os responsáveis pela produção de alimentos para todos os povos do mundo,
  • pela sua práxis produtiva altamente integrada com a natureza os camponeses têm sido --- assim como os povos originários (indígenas), os extrativistas, os pescadores artesanais ao mesmo tempo agricultores e extrativistas, os quilombolas, entre outros --- os guardiões da agrobiodiversidade num contexto histórico em que as classes dominantes e a privatização dos saberes impõem a artificialização da agricultura,
  • e porque será na dinâmica reprodutiva da unidade de produção camponesa, seja ela individual, coletiva, comunitária ou outras formas que a imensa diversidade das experiências históricas dos povos camponeses em todo o mundo têm experimentado, que se poderá encontrar a maior parte das respostas para superar a unidade de produção capitalista no campo.

Apesar da sua importância na história contemporânea da humanidade, os camponeses contemporâneos são considerados[2] pelas classes dominantes como cidadãos de segunda categoria. São rotulados como os pobres do campo. Portanto e supostamente, diferentes dos empresários capitalistas do agronegócio, estes sim reputados como os responsáveis pelo incremento da agricultura nacional, quiçá os ‘heróis nacionais’.

 

 

Essa discriminação dos camponeses pelas classes dominantes do país e por parcela da intelectualidade considerada conjunturalmente como de centro-esquerda é reforçada hodiernamente não apenas pela forte presença dos negócios capitalistas no campo como, também, por “algumas idéias e pequenas coisas”. Articuladas entre si e encimadas pela postura político-ideológica mais geral da discriminação de classe da burguesia contribuem fortemente para reforçar a onda ideológica dominante formadora da opinião da maioria da população no sentido de disseminar preconceitos contra os camponeses.

 

 

Essas “algumas idéias e pequenas coisas” adiante arroladas é parte dos valores da cultura liberal-burguesa dominante que são incorporados inconscientemente na eclética concepção de mundo camponesa e contrários à práxis camponesa contemporânea na maior parte das regiões do país e do mundo. Entre esses valores e práticas ideológicas dominantes destaco e aqui examino as seguintes:

  • o imediatismo e a artificialização como negação da práxis camponesa,
  • a espoliação dos recursos naturais como progresso,
  • a indução burguesa à desagregação camponesa,
  • a resistência social camponesa à pressão dominante para a homogeneização capitalista no campo.

 

Explicitar e desenvolver essasalgumas idéias e pequenas coisas”, aqui consideradas como resultantes da dominação da lógica capitalista sobre uma concepção de mundo que afirmaria o campesinato como modo de produção e como classe social[3], constituiria, no meu entender, um passo a mais na compreensão das dificuldades da reprodução social do campesinato nas formações econômicas e sociais capitalistas. E, ao mesmo tempo, proporcionaria elementos para ampliar político e ideologicamente a resistência social camponesa aos diversos tipos de pressões das empresas capitalistas no campo.

 

Não resta dúvida alguma que os camponeses ‘lutam contra a corrente’ da concepção de mundo hegemônica, esta reforçada pelas políticas públicas que ensaiam ajustar a reprodução social camponesa aos interesses de classe da burguesia agroindustrial, nacional e estrangeira.

 

Ainda assim, mesmo pressionados econômica, política e ideologicamente para se inserirem na lógica capitalista de produzir, a maioria dos camponeses reafirma seu modo de ser, de viver e de produzir distinto daquela do capitalismo. E, apesar das circunstâncias altamente desfavoráveis aos camponeses, é possível se considerar que os camponeses contemporâneos são os guardiões da agrobiodiversidade.

 

A presença da agrobiodiversidade nas práticas camponesas se constata não apenas ao se considerar os sistemas de produção das unidades de produção camponesas isoladamente, mas, sobretudo, ao se levar em consideração a totalidade dessas unidades de produção no país e no mundo.

 

Minha sugestão é de que os campesinatos se comportam como sujeitos plurais guardiões da agrobiodiversidade e apresentam posturas econômicas, políticas e ideológicas contrárias à artificialização da agricultura. É somente por pressão das empresas capitalistas relacionadas com o agronegócio, pressão essa reforçada pelas políticas públicas, que os camponeses tendem a se comportarem tal qual uma pequena burguesia agrária, quando então estabelecem uma relação homem-natureza de caráter espoliativa.

 

 

 

O imediatismo e a artificialização como negação da práxis camponesa

 

 

A produção agrícola[4] exige tempos distintos daqueles da produção industrial. Enquanto esta busca uma otimização do uso dos recursos num menor tempo possível, numa produtividade relativa que a ciência e a tecnologia contemporâneas lhes proporcionam --- ainda que nem sempre de maneira desejável, a produção agrícola, mesmo incorporando as mais recentes tecnologias de produção, necessita respeitar não apenas os tempos biológicos do desenvolvimento vegetal e animal como a sua inserção num contexto mais amplo onde a biodiversidade esteja presente.

 

É muito distinto o modo de produzir um parafuso, uma panela ou um componente eletrônico de um computador daquele modo de produzir o arroz, a cana de açúcar, a laranja ou uma árvore destinada a proporcionar apenas madeira. São modos muitos diferentes, não apenas pela natureza do produto esperado como na maneira de produzi-lo.

 

O mesmo se dá com o extrativismo vegetal e animal, diferentemente do extrativismo mineral. As maneiras de se proceder ao extrativismo vegetal e mineral podem conviver como respeito à dinâmica da reprodução biológica da natureza. Mas, o extrativismo mineral é de natureza eminentemente espoliativa, sem qualquer possibilidade de se recompor o minério extraído. Isto não quer dizer que por vezes o extrativismo vegetal e animal tenha sido espoliativo, destruindo pela intensidade e forma da ação antrópica as possibilidades naturais efetivas de recomposição da flora e fauna silvestres.

 

Essas diferenças entre os mundos da produção agrícola e da indústria moderna, mesmo no contexto do modo de produção capitalista, não poderão jamais ser eliminadas sempre e quando se deseje que a oferta de produtos da agricultura esteja se referindo ao mundo da natureza e não aos produtos gerados pela artificialização industrial dos produtos para que se pareçam na forma, e numa suposta composição, com aqueles que se denominam de naturais.

 

Tem havido um esforço incansável de parcela de cientistas e técnicos dedicados aos estudos e pesquisas sobre a biologia e o mundo da produção agrícola para se encontrar caminhos que reduzam os tempos de produção e aumentem a produtividade na agricultura sem necessariamente se alterar a qualidade do produto a ser obtido nem afetar o equilíbrio ecológico do espaço e ou provocar a erosão genética nos contextos onde se realizam Nem sempre esses estudiosos estão respaldados pelos conhecimentos acumulados e sistematizados sobre os milhares de sistemas agrários vivenciados pela humanidade nas suas histórias, adotando então posturas éticas e técnicas supostamente inovadoras, mas, de fato, se constituindo apenas como partes do conjunto de mudanças que contribuem para a degradação do meio ambiente, ainda que rebuçadas de modernidade e de progresso, como atestam as variedades transgênicas.

 

Esse esforço na artificialização da agricultura --- ou das práticas da agricultura industrial, tem sido direcionado ao aumento da rentabilidade financeira na agricultura. E tornou-se uma obsessão devido ao avanço da racionalidade capitalista diretamente aplicada à melhoria da produção e da produtividade dos produtos agrícolas.

 

A artificialização da agricultura vem sendo incrementada na medida direta em que os insumos naturais estão sendo substituídos por aqueles de origem industrial, alcançando-se a geração de organismos (vegetais e animais) geneticamente modificados em cujo rearranjo e transferência genética já se utiliza a nanotecnologia, entre diversos outros conhecimentos e tecnologias contemporâneas.

 

Há uma intencionalidade dominante que se alicerça na lógica capitalista de se substituir os ecossistemas naturais por outros predominantemente antrópicos da agricultura industrial. No entanto, esses sistemas da agricultura industrial estão submetidos apenas à determinação da rentabilidade financeira, mesmo que apresentem outras características que possam facilitar a sua prática em condições edafo-climáticas até então desfavoráveis à ação antrópica. Sem dúvida que sendo sistemas agrícolas eles convivem com a natureza, mas de uma forma em que esse novo enseja menos um convivio harmonioso com o preexistente do que a afirmação do poder de um tipo de sabedoria humana que pretende refazer a natureza, moldá-la aos seus interesses de classe social, de grupos ou de personalidades autoconsideradas como de excelência no saber antrópico.

 

Não é de se estranhar que na perspectiva anterior se busque reproduzir alguns modismos dominantes financeiramente rentáveis como o imediatismo. É plausível se reconhecer que há um somatório de arte e ciência muito elaborada para a construção e realização desse desejo. Nessa prática já disseminada na maior parte do mundo capitalista se tem conseguido alterações profundas e irreversíveis nas mais distintas espécies e variedades, tanto vegetais como animais, e nas mais diferentes ecosistemas do mundo, de maneira a se moldar a natureza aos mais variados desejos de lucratividade e de poder sobre os agroecosistemas.

 

Então, para esse tipo de abordagem, é pouco relevante se a erosão genética elimina milhares de variedades de plantas nativas ou crioulas, remete ao esquecimento produtivo raças adaptadas e historicamente em convívio com os humanos, ou compromete a biodiversidade dos vários biomas, nas mais distintas partes do mundo, ao eliminarem ou biodegradarem centenas e centenas de espécies vegetais e animais que direta ou indiretamente tenha contato com o novo vegetal, animal ou sistema geneticamente modificado e exigente de uso massivo de agrotóxicos, herbicidas, hormônios e desmatamentos por corte raso para que alcancem a produtividade almejada.

 

É, ademais, indiferente aos grupos economicamente dominantes se o uso intensivo e crescente de agrotóxicos esteja contaminando os alimentos e poluindo a natureza, se essa prática contribui para o desequilíbrio irreversível da fauna e da flora, se torna a vida humana refém dos venenos para se alimentar.

 

Trata-se de um grande equívoco sócio-ambiental histórico a prática dominante de uso de agrotóxicos para otimizarem seus lucros e vantagens financeiras comparativas garantindo colheitas satisfatórias num ambiente cada vez mais desequilibrado. E se aliarmos esse comportamento àquele que resulta em desmatamentos, monocultivos e na industrialização massiva dos alimentos, tudo leva a crer que se está --- quiçá desde há muito tempo, exercendo direta ou sub-repticiamente a tirania de uma dieta alimentar[5] concebida socialmente de cima para baixo por uma minoria de empresas capitalistas capazes de manipularem a opinião pública e, na medida direta de seus interesses, a diversidade de seus paladares.

 

Essas empresas oligopolistas de produtos para a alimentação humana ao estabelecerem ou induzirem à prática cotidiana de uma dieta monótona e artificial que, contrariando a diversidade do paladar e da alimentação familiar popular em todo o mundo, impõe alimentos industrializados em nome da eficiência e eficácia de seus negócios comprometidos apenas com a lucratividade sob quaisquer meios..

 

Perante esse enorme esforço de transformar o mundo a partir de critérios de rentabilidade financeira, de desejar submeter a natureza aos desígnios de parcelas da humanidade, de se viver inconformado com os tempos da natureza, não é de se surpreender que os camponeses se sintam pressionados pela propaganda das empresas transnacionais de agroquímica como pela ideologia hegemônica para se obter rentabilidade financeira sem escrúpulos com a vida humana e com a natureza.

 

Também, não é de se espantar que aqueles camponeses que exercitam uma práxis produtiva de convívio harmonioso com a natureza se apresentem como estranhos a esse mundo dominante da artificialização da agricultura. Porisso os camponeses são considerados pelas classes dominantes e parcelas de uma classe média domesticada pelo consumismo, deslumbrada pela mesmice e pelo clima ameno dos centros de compra, como produtores rurais, famílias e pessoas diferentes, obsoletas, conservadoras, ultrapassadas, arredias, brutas ou como povos sem destino.

 

Contrariando essa tendência dominante que se auto-intitula inovadora por substituir os ritmos da natureza, seus ecossistemas, sua ecobiodiversidade e as leis de reprodução das espécies, os camponeses, menos por serem resistentes às mudanças, mas, sobretudo, por conviverem com a diversidade da natureza, exercitam um que-fazer o mais próximo possível do natural. Isso não significa afirmar que não incorporam inovações advindas da pesquisa cientifica e da experimentação tecnológica no processo de produção e de beneficiamento agrícola. Muito ao contrário, todas as inovações que reduzam o trabalho penoso, que minimizem os riscos na produção, que otimizem as combinações de cultivos e criações, que favoreçam a melhoria da rentabilidade financeira são bem vindos. Isso sem introduzir em suas práticas produtivas a lógica da artificialização da agricultura e sem degradar o ambiente.

 

O que os camponeses não desejam, enquanto camponeses, são aquelas inovações que os tornem dependentes dos complexos agroindustriais e dos financiamentos que lhe induzam à especialização da produção; que os joguem nos contratos de alto risco e baixa rentabilidade como são os contratos de produção com as agroindústrias; que suas vidas na produção agrícola sejam regidas pelos venenos. São tantos os inconvenientes que cerceiam os camponeses que eles ensaiam, na medida direta das suas circunstâncias, manter a diversidade de cultivos e criações, o trabalho familiar sem a punição do trabalho penoso e o beneficiamento de produtos e subprodutos, num esforço coletivo familiar em que se respeita as preferências de cada membro da família, sejam elas devido a demandas etárias, de gênero e de aptidões na medida direta de seus desejos e possibilidades. Mas, mais do que tudo, aspiram pela sua autonomia relativa perante o capital e os governos.

 

E não os apressem nem lhes reiterem que o imediato é a solução. Os camponeses, as famílias camponesas, as comunidades camponesas sabem bem que os tempos da natureza necessitam ser respeitados. Isso não quer dizer fetichizados. O jeito de ser e de fazer camponês acompanha e contribui para ganhar tempos no seu convívio com a natureza, na melhoria da sua eficiência e eficácia produtiva. Mas, isso se faz pela compreensão a cada dia mais aguçada de como deve acontecer esse convívio homem-natureza. E, sem dúvida, como melhorá-lo constantemente.

 

Os camponeses são afeitos à inovação tecnológica que é produto da agroecologia e da prática da agrobiodiversidade, da sabedoria que ela lhes proporciona e da experiência histórica criticamente acumulada por eles próprios.

 

Perceber no camponês um individualista é desconhecer as suas relações com a natureza. Com respeito à natureza o aprendizado nunca se dá pelo isolamento. Como a biodiversidade constitui um todo, pertencer a essa totalidade que é a natureza ou a ela se integrar pressupõe respeitar a harmonia e as contradições internas dessa totalidade. Nesse sentido, o indivíduo de uma família, no seu aprendizado, está em constante interação de partilhamento com seus pares, familiares e vizinhos, práxis essa que lhes é habitual pela compreensão de que esse é o caminho mais adequado para dar conta da complexidade desse todo que é a biodiversidade na natureza.

 

A sociabilidade camponesa é avessa ao individualismo. Ao contrário, a solidariedade e a partição social são práticas de uma socialização que lhe é culturalmente originária ao ser camponês. Mesmo com a modernização dos meios de comunicação, de transportes e de produção, a adoção dessas propostas e tecnologias contemporâneas se faz sob uma criticidade que não renega o jeito de ser e de viver camponês, pleno de cultura própria e de originalidades. Se há traços de individualismo no camponês contemporâneo isso já denota a adoção dos valores liberal burgueses no processo produtivo, no que fazer doméstico e nas suas aspirações e desejos. Valores esses que introjeta a idéia-força burguesa da maximização do lucro, do imediatismo, da exploração de seus semelhantes e da natureza.

 

A compreensão ecológica dessa totalidade da natureza, nela as famílias camponeses, é produto de um longo tempo de amadurecimento dos saberes e de vivência antrófica com a natureza onde o imediatismo cede lugar ao histórico e a relação de predação da natureza, resquício da subjetividade liberal-burguesa, cede lugar ao convívio harmonioso.

 

Não há dúvida de que o camponês contemporâneo sofre fortes influências dos valores da racionalidade capitalista dominante, sempre pautada no lucro e na competição. Nem incerteza de que a tendência geral do capitalismo é a da homogeneização do mundo da produção e a subordinação aos seus interesses de classe de outros modos de produção porventura existentes nas diversas formações econômica e social. Nem incredulidade de que se algum modo de produção como o camponês, por exemplo, deseje se afirmar sob uma outra racionalidade distinta da capitalista deverá sofrer as mais variadas formas de investidas burguesas para destruí-lo.

 

 

A espoliação dos recursos naturais como progresso

 

O convívio do homem produtivo com a natureza --- a ação antrópica, foi durante milênios um convívio marcado pelo atendimento das necessidades básicas dos povos na medida direta do esforço humano e do grau de desenvolvimento das forças produtivas, em especial das tecnologias e das práticas de produção resultantes da concepção dominante da relação homem-natureza.

 

Tem sido o desenvolvimento exponencial das forças produtivas nas relações homem-natureza e dos valores do modo de produção capitalista, em particular na agricultura, que induziram a maior parte dos agricultores (amplo senso) em todo o mundo a substituir uma relação de convívio homem-natureza por uma relação de espoliação homem-natureza.

 

Diversas novas necessidades sociais foram sendo geradas a partir do que se denominou de domínio do homem sobre a natureza, este decorrente da sistematização crítica dos saberes e das habilidades históricas empiricamente desenvolvidas e da ampliação dos aportes de conhecimentos científicos e tecnológicos. Nesse amplo processo a satisfação das necessidades alimentares das sociedades passou a se pautar menos pelo convívio harmonioso homem-natureza, mas, sobretudo, pela lucratividade da atividade econômica agrícola.

 

Como ressaltei em outro texto[6], “(..) a suposição de que o conhecimento deveria ser um bem comum, segundo uma ética do interesse público, tornou-se uma fantasia na sociedade capitalista. Ao ser privatizado o saber, a sua valorização social se dilui e se torna um instrumento de dominação. Nessa perspectiva, a contradição entre a propriedade intelectual e a necessidade política de livre circulação e difusão do conhecimento faz-se uma das causas do ajuste comercial do papel da universidade à racionalidade dominante” e, acrescentando, de parte considerável das instituições de representação e mediação dos interesses camponeses devido, sobretudo, às limitações das suas práticas políticas à reivindicação e ao protesto com relação ao exercício das políticas governamentais.

 

Entre os fatores determinantes da relação de espoliação da natureza está a concepção de mundo dominante que considera a natureza como um recurso econômico similar a todos os demais. Ao assim se supor a natureza ou ao considerá-la como um recurso (recursos naturais) se facilitou a sua espoliação de tal maneira que a predação ambiental se tornou uma variável dominante não apenas na mineração e no desmatamento, mas, também, nas formas mais diversas de produção agrícola. Essa espoliação da natureza alcançou, também, as diversas formas da prática do extrativismo vegetal e animal, desde a obtenção exaustiva dos produtos medicinais da floresta e a caça predatória até o intenso esforço de pesca que conduz à impossibilidade de recomposição dos cardumes. Negou-se, nessa perspectiva, a natureza como um complexo e diversificado mundo vivo e sensível. No caso da exploração dos minérios, aceitou-se como inevitável o esgotamento mais rápido possível das reservas, todas elas com limites finitos bem previsíveis.

 

Baseados nos valores que conduzem a espoliação capitalista da natureza, a partir da concepção burguesa de progresso como a inovação sem limites para proporcionar a maximização de lucros no menor lapso possível, intentou-se substituir a natureza ou a artificializá-la de tal maneira que os organismos transgênicos ou geneticamente modificados (OGMs) têm sido considerados como uma resposta contemporânea no avanço científico e tecnológico da biotecnia, como uma referência em modernidade produtiva, independentemente da erosão genética que estão praticando e da oferta oligopolista das sementes transgênicas.

 

Se por um lado intenta-se substituir a natureza, artificializando-a, por outro lado o desmatamento, a devastação das florestas, tornou-se um hábito que se quer progressista já incorporado no mundo da artificialização da produção agrícola sem que a hipótese contrária do não desmatamento ou de suas limitações ambientais fosse considerada não como conservadorismo ou como uma expressão do atraso, mas sim como um valor favorável a uma relação homem-natureza direcionada ao bem-viver harmonioso nessa própria relação.

 

Como a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, parcela dos camponeses incorporou, sob as mais distintas formas, essa noção de progresso expressa na espoliação da natureza. E, mais, com a crescente tendência da artificialização da agricultura pela burguesia sob a hegemonia do capital financeiro, da oligopolização da oferta de insumos, do beneficiamento e da comercialização da produção agrícola por umas poucas empresas transnacionais, não só a artificialização da agricultura assim como o controle oligopolista da produção agrícola nacional tornaram-se uma realidade inconteste porque dominante e legitimada pelas mais distintas instituições da denominada democracia liberal burguesa vigente no país.

 

Nesse contexto histórico, tornaram-se restritas as possibilidades e proposições de superação da concepção tradicional da unidade de produção camponesa como uma unidade de produção e consumo familiar com os excedentes do consumo familiar realizados nos mercados. Isso vem ocorrendo não porque inexistam sugestões teóricas e práticas de como realizar essa superação. Mas, sobretudo, porque essas propostas têm sido tratadas pelas classes dominantes como desnecessárias devido que o próprio camponês tem sido objeto de discriminação pela burguesia e parcela dos setores progressistas da sociedade.

 

Então se subestima e se despreza as propostas tanto da agroecologia como da própria concepção de camponês enquanto unidade de produção familiar conduzida pela força de trabalho apenas familiar.

 

O camponês, enquanto pequeno produtor ou produtor de base familiar, é valorizado pela concepção dominante na medida direta em que incorporar os modos de ser e de viver de um pequeno empresário capitalista ou tendente a tal. Uma outra hipótese como a da afirmação do camponês contemporâneo construindo sua autonomia relativa perante o capital foi ou tem sido descartada, seja do discurso dominante seja de setores do centro-esquerda político.

 

Portanto, em síntese, diversas mudanças no mundo da produção e no modo de ser e de viver camponês, seja pela inovação sugerida pela agroecologia como pela busca incessante de autonomia relativa perante capital, tem sido percebida a partir de um olhar pautado pela racionalidade capitalista, como um esforço desnecessário tendo em vista que o próprio camponês era e é considerado como um povo sem destino, em fase de desagregação e desaparecimento. Ainda que os dados históricos e atuais desmintam essa assertiva, ela persiste ao se tornar ideologia e discurso hegemônicos. Como parte da subjetividade liberal-burguesa, empolga os governos nacionais e modelam as políticas públicas para a agricultura.

 

Ao se inserir numa economia altamente monetarizada, cujas realizações econômicas se dão essencialmente pela mediação dos mercados, parte considerável das unidades de produção camponesa incorporaram não somente essa prática central do modo de produção capitalista como muitas outras, entre as quais, a idéia de que a natureza, tão cara aos camponeses, seria apenas um recurso econômico a ser explorado.

 

Essa concepção de mundo capitalista, essa forma unilateral e historicamente dominante de se conceber o progresso, trouxe para o contexto camponês elementos da lógica capitalista no campo, tais como:

  • a uniformização da produção e o monocultivo,
  • a intensificação sem limites da produtividade pela utilização de insumos de origem industrial,
  • a destruição da biodiversidade pela erosão genética na adoção das sementes transgênicas,
  • a poluição ambiental pelos agrotóxicos,
  • a subordinação indireta da gestão familiar camponesa de sua unidade de produção às orientações das empresas transnacionais de insumos e de comercialização agrícola.

Impôs-se, em parte considerável das unidades de produção camponesas, um padrão homogêneo de produção e tecnológico, bem ao sabor da racionalidade capitalista. Essa padronização imposta pela lógica capitalista nas práticas camponesas tem sido observada:

  • nos sistemas de produção,
  • nas tecnologias adotadas,
  • nos produtos gerados,
  • nos insumos consumidos,
  • nos hábitos de consumo alimentar das famílias,
  • nas idéias que movem a ação camponesa,
  • nas maneiras de se comunicarem.

Não é de se estranhar, então, que os camponeses tenham dificuldades de encontrar ambiente propício para o desenvolvimento de suas idéias próprias, de concepções de mundo que se oponham àquela da lógica capitalista, que reafirmem o jeito de ser e de viver camponês, sem com isso rejeitar as mudanças possíveis e relevantes que a sociedade contemporânea oferece.

 

Mudanças que sejam aceitas criticamente pelos camponeses como sujeitos de sua história e que afirmem a sua camponesidade e que não desfiguram a idéia da unidade de produção familiar com a introdução das relações de assalariamento (relações de produção capitalistas) nas suas unidades de produção.

 

A indução burguesa à desagregação camponesa

 

 

A ideologia dominante, portanto, a ideologia da burguesia seguida de perto e subalternamente pelos governos nacionais, enaltece a empresa capitalista no campo favorecendo a expansão das idéias capitalistas da relação homem-natureza e, nesse sentido, das relações de espoliação e predação da natureza.

 

A artificialização da agricultura é, então, considerada como a via que melhor atende aos interesses burgueses de se obter a maior lucratividade nos negócios agrícolas, assim como a agromineroexportação reafirma-se como um objetivo governamental constantemente renovado porque favorece as relações comerciais exteriores do Brasil, independentemente de ser essa prática a expressão mais candente do subdesenvolvimento e da dependência do país aos centros mundiais do poder econômico e político.

 

O denominado agronegócio vigente no país (as empresas capitalistas direta e indiretamente relacionadas com o campo) enaltece e reproduz sem se ruborizar, pela promoção consciente da subalternidade colonial brasileira perante as economias altamente desenvolvidas, a primarização da economia exportadora nacional onde predomina a espoliação da natureza.

 

Nesse contexto, a disputa pela terra e pelos territórios entre os capitalistas do agronegócio e os povos do campo como os camponeses, os indígenas, os quilombolas, os ribeirinhos e os extrativistas se torna, sob a perspectiva das classes dominantes e dos governos nacionais, um confronto entre a modernidade e a obsolescência. Esta falsa dicotomia oculta ou mascara não apenas a crescente exploração dos trabalhadores pelo capital como a expansão indiscriminada da apropriação privada da natureza, esta já considera pelos capitalistas apenas como um recurso e um objeto de negócio.

 

Não é de se surpreender que os camponeses, em particular, sejam considerados como cidadãos e produtores de segunda categoria. Ainda assim, são inúmeros os esforços dominantes para enquadrá-los político-ideologicamente, seja pela cooptação política e ideológica seja pela persuasão econômica, como pequenos empresários capitalistas ou pequenos burgueses.

 

Os capitalistas ensaiam, sob as mais distintas maneiras, levar para os camponeses a racionalidade do capitalismo. Não se satisfazem, na maior parte das vezes, em apenas subordiná-los aos interesses da reprodução do capital, em torná-los consumidores contumazes dos insumos das empresas transnacionais e produtores que vendem seus produtos nos mercados oligopsônicos, também sob o controle de cinco ou seis grandes empresas transnacionais. Desejam destruí-los ao pressioná-los para quer se insiram na lógica capitalista de produção.

 

As iniciativas conjuntas das classes dominantes e dos governos nacionais de tentarem transformar impunemente os camponeses em pequenos capitalistas provocam um doloroso processo de desagregação de amplas parcelas dos camponeses. Isso porque é apenas uma reduzida parcela deles que adentra para a condição de pequena burguesia agrária (fração de classe da burguesia agrária) e exercita a exploração dos trabalhadores pelo assalariamento, seja ele permanente e ou temporário. No entanto, nessa tentativa de cima para baixo de modernização camponesa a partir dos valores burgueses, uma diferenciação camponesa de outro tipo se verifica: uma parcela tende à proletarização e outra se reproduz como crônicos dependentes das políticas públicas compensatórias.

 

Os capitalistas do agronegócio, assim como seus intelectuais orgânicos, tentam sob os mais diversos meios impedir que os camponeses se tornem sujeitos sociais, construam sua autonomia relativa perante os capitais e reafirmem outro modelo de produção distintos daquele praticado pelas classes dominantes no campo.

 

Por esses motivos, entre outros mais, é que são tímidas, inadequadas e iníquas as políticas públicas favoráveis para a afirmação da autonomia relativa camponesa perante o capital. Para a superação dessa discriminação dos camponeses pelas políticas públicas subalternas à concepção de mundo burguesa seria indispensável, no mínimo, que os setores de centro-esquerda e da esquerda, assim como seus partidos políticos, considerassem o camponês como modo de produção e ou classe social[7] e, mais ainda, percebessem que eles se encontram em disputa de classes contra a burguesia agrária. Nesse sentido deveriam ser aliados dos camponeses na luta social de classes no campo entre campesinato e burguesia agrária.

 

E com relação ao desenvolvimento das forças produtivas pressuporia, ademais, que os setores da sociedade com posturas populares progressistas devessem ir além da compreensão restrita de que a modernização no campo seria um processo exclusivo da maneira de ser do capital. Exigiria que se levasse em conta outra maneira de se fazer a modernização, tal como a modernização camponesa[8]; que se levasse em consideração o campesinato no Brasil deixando de privilegiar apenas o agronegócio, o que implicaria em mudanças na concepção de mundo dos setores de centro-esquerda e esquerda. Ora, isso significaria que mudanças fundamentais estariam ocorrendo, o que evidentemente não é o caso no Brasil, muito pelo contrário.

 

Ter-se-ia que supor também, para um imaginário popular acomodado à lógica capitalista, a possibilidade de alternativas de mudanças estruturais que tivesse sua origem em outro lócus além da grande indústria moderna e se superasse a idéia contemporânea de modernidade que está limitada àquele empreendimento similar ao padrão burguês da revolução industrial do século XVIII. Mais ainda, demandaria que os setores populares progressistas do país levassem em consideração a importância relativa dos camponeses num processo de mudanças estruturais no Brasil; que rompessem com o estreitamento político representado pela insistência de que somente a superação da contradição capital-trabalho na indústria seria aquela que tornaria possível o deslanchar de lutas sociais de transformação estrutural da sociedade.

 

No que se refere aos campesinatos no interior da formação econômica e social contemporânea brasileira, suponho que seria uma insuficiência se considerar que a unidade de produção camponesa não poderia evoluir a partir dela própria, das suas contradições internas. Essa tese presente nos estudos sobre o campesinato desde há muito tempo e tem como corolário que só poderia haver transformações na unidade de produção camponesa a partir de forças externas. De fato são limitadas as contradições internas na unidade camponesa de produção se a observarmos apenas sob a dimensão econômica e de tal maneira que se minimize o papel contemporâneo das dimensões político-ideológicas. Mas, mesmo assim, são fundamentais para os caminhos que tomará a práxis camponesa.

 

A unidade camponesa de produção contemporânea vivencia contradições político-ideológicas como o tipo de relação homem-natureza, o modelo tecnológico a ser adotado, a maior ou menor autonomia relativa perante os capitais, a dependência do crédito rural governamental subsidiado, a opção pela cooperação econômica entre os camponeses. São escolhas econômicas que não são pautadas por critérios muito distintos daquele do cálculo da rentabilidade financeira, ainda que este seja efetuado. As escolhas se situam no âmbito mais geral da concepção de mundo como o modelo de agricultura e a garantia da soberania alimentar popular.

 

. Essas escolhas se efetivam na própria dinâmica da reprodução social da família camponesa, na práxis da uma acumulação que denomino de camponesa, sendo esta acumulação produto da renda agrícola líquida auferida e poupada, sem que na sua geração esteja presente estrito senso a exploração da força de trabalho de terceiros.

 

Essas contradições não se assemelham, evidentemente, àquelas resultantes da unidade de contradição entre classes sociais que se dá na unidade de produção capitalista. É uma contradição de outro tipo, mas indispensável para que a unidade de produção camponesa efetue mudanças tecnológicas (desenvolvimento das forças produtivas) que afetam seu comportamento econômico e, portanto, aí sim, amplie a contradição entre a evolução da economia camponesa com a expansão e evolução das empresas capitalistas no campo. Diria que se entrechocam os interesses de classe das classes sociais campesinato e burguesia e, como corolário, as racionalidades que direcionam as concepções e práticas das gestões das unidades de produção camponesas e as burguesas.

 

Hipoteticamente os camponeses poderiam ter como aliados, numa luta de classes sociais ampliada no campo, os assalariados rurais presentes na unidade capitalista de produção. Entretanto, como a concepção política de mundo dos setores de centro-esquerda e da esquerda considera os camponeses como pequenos burgueses, ou no outro extremo, como os povos sem destino, não haveria um por quê histórico e teórico que fundamentasse essa aliança camponesa-assalariados rurais.

 

Tem prevalecido, ademais, a sugestão de que qualquer evolução da unidade camponesa estaria relacionada com a presença de fatores ou de forças externas a ela própria. Ora, essa premissa que não é de toda imprópria seria mais pertinente para um período anterior da história, diria, anterior à segunda guerra mundial, onde o grau de organização política camponesa era menos amplo do que na atualidade e onde as relações camponesas com outros setores da sociedade, como o próprio proletariado, estariam ainda cerceadas pelo isolamento camponês. Esse seria um contexto já ultrapassado no Brasil, ao menos na sua maior parte, e em outras regiões do mundo.

 

As pressões negativas econômicas, políticas, ideológicas e culturais que vivenciam os camponeses na sociedade capitalistas são muito mais decisivas no processo da sua reprodução social do que aqueles incentivos e proposições que contribuem para a afirmação camponesa e para a construção da sua autonomia relativa perante o capital. Há uma mesmice no comportamento da maior parte das organizações e movimentos sociais e sindicais que as induz a reproduzir o discurso dominante sobre o camponês. Nele ainda se percebe apenas aquelas variáveis supostamente negativas como a tendência ao individualismo, a resistência em relação às inovações tecnológicas, o beneficiamento precário de seus produtos e subprodutos, a desconfiança perante a cooperação formal, a manutenção da escala reduzida de produção, etc. Ora, esse comportamento tem sido, na sua maior parte, conseqüência de experiências camponesas desastrosas, nas quais se tentou, pelas diversas instituições modernizadoras dos governos, impor ou sugerir de cima para baixo, um jeito de ser, de viver e de produzir de caráter exclusivamente capitalistas.

 

Ora, o que acontece com os camponeses quando imitam o jeito de ser, de viver e de produzir burguês?

  • Perdem o controle sobre os processos camponeses de produção e enveredam pelas trilhas da artificialização da agricultura sob a dominação das empresas multinacionais de insumos e de comercialização dos produtos da produção camponesa;
  • A família camponesa deixa de participar diretamente nas decisões do que, como e quando produzir, portanto da escolha das linhas de produção, do beneficiamento e da comercialização de seus produtos e subprodutos,
  • Ficam dependentes do crédito rural subsidiado, logo, das políticas públicas que tendem a favorecer o agronegócio,
  • Introduzem tecnologias inadequadas ao seu modo de produzir como as sementes transgênicas, abandonando a utilização e melhoramento das suas sementes crioulas ou varietais. Contribuem indireta e inconscientemente para a erosão genética,
  • Todos os insumos são adquiridos nos mercados, eliminando-se gradativamente a oferta interna dos recursos necessários para a produção,
  • Tendem à prática dominante do monocultivo, reduzindo drasticamente as suas diversas fontes de rendimentos, inclusive o artesanato e o beneficiamento primário de seus produtos e subprodutos,
  • Ao dependerem inteiramente dos mercados oligopolizados para a compra de insumos e para a venda de seus produtos, tendem a se tornarem endividados e enveredarem para a insolvência econômica,
  • Devido em particular ao monocultivo tendem a introduzir nas suas práticas agrícolas o aluguel de máquinas, ampliando seus custos relativos de produção que seriam evitados pela diversificação de cultivos e criações,
  • Mudam a sua relação com a natureza. De uma relação de convivência harmoniosa para uma tendência à espoliação da natureza devida, sobretudo, à adoção de tecnologias e modos de produzir do capital,
  • Ao reduzir a diversidade de cultivos e criações deixam de produzir alimentos, ao menos os básicos, para o consumo familiar, incorporando no seu viver o consumo de alimentos industrializados e adquiridos nos mercados,
  • Os produtos para o consumo alimentar da família tendem a ser estranhos ao camponês porque adquiridos nos mercados. O camponês deixa de ser produtor de alimentos para se tornar um produtor de mercadorias em função das demandas dos mercados,
  • Introduzem gradativamente a relação de produção de assalariamento, não apenas pela escassez relativa da força de trabalho familiar como pelo novo tipo de comportamento enquanto produtor ao incorporar as tecnologias capital-intensivas,

Essas mudanças no que-fazer e fazer na unidade da produção camponesa provocam:

  • Ociosidade de parte da força de trabalho familiar,
  • Deixam de realizar a ajuda mútua entre vizinhos,
  • Deixam de participar da comunidade a que pertencem,
  • As festas, os ritos e as tradições camponesas são renegadas e esquecidas,
  • Submetem-se aos valores burgueses e à exploração capitalista,
  • Negam a sua identidade social camponesa.

A resistência social camponesa à pressão dominante para a homogeneização capitalista no campo

 

 

Ao considerar o camponês como o guardião da agrobiodiversidade levo em consideração o conjunto dialeticamente percebido entre a práxis das unidades de produção camponesas singulares tão diversas entre si e a reprodução social da qualidade excepcional que advém dessa totalidade de unidades singulares.

 

A complexa, formosa e colorida (etno) agrobiodiversidade que as paisagens camponesas oferecem aos nossos sentidos e à razão evidenciam que nelas repousam em constantes e sutis mudanças as esperanças da reprodução continuada da vida em uma das suas mais importantes plenitudes: a diversidade da vida.

 

Por esse e tantos outros motivos é que o camponês, sabiamente, sempre exercitou a diversidade de cultivos e criações, a preservação e melhoria dos solos e das matas, a diversidade das vidas nas águas, o convívio antrópico construtivo e respeitoso com a natureza, mesmo nos casos de extrativismo restrito e seletivo.

 

Quando predominava a práxis camponesa de ser unidade de produção e de consumo, digamos, anteriormente à década de 1950 ou mesmo antes, sendo o pequeno excedente comercializado, a diversidade estava presente não apenas para dar conta da alimentação familiar, mas, também, porque ajudava na diversificação das fontes de rendimentos. Ainda que obtendo baixa renda agrícola monetária, o camponês garantia a sua reprodução social porque as suas necessidades eram relativamente simples e limitadas. No entanto, com a expansão capitalista no campo e a multiplicação das necessidades --- algumas efetivas e outras induzidas pelo consumismo, se ampliaram também as possibilidades de se obter e utilizar tecnologias socialmente apropriadas[9] para melhorar a produtividade dos cultivos e criações camponesas, assim como para o beneficiamento dos seus produtos e subprodutos.

 

Entretanto, as tecnologias dominantes que se propuseram à artificialização da agricultura invadiram a práxis camponesa e com o apoio do crédito rural subsidiado, de outros programas governamentais de estímulos à produção e da pressão das empresas transnacionais de insumos induziram o como-fazer camponês à especialização da produção, à incorporação massiva dos agrotóxicos, às variedades híbridas e transgênicas e, enfim, à dependência estrutural das agroindústrias. Mudaram pela coerção direta e a subliminar as práticas produtivas de vida familiar camponesa, assim como alteraram as paisagens rurais outrora altamente diversificadas para a mesmice e monotonia dos monocultivos.

 

A iniciativa intrínseca à reprodução social do capital de tentar homogeneizar toda a esfera da produção no campo alcançou resultados relativamente favoráveis à hegemonia da lógica capitalista. Não se afirmou em sua totalidade devido ao esforço das organizações e movimentos sociais e ambientalistas populares do campo e da cidade que se contrapuseram a essa tendência dominante de transformar o camponês num pequeno burguês e de considerar a natureza como um recurso a ser apropriado privadamente para fins exclusivos de realização de negócios.

 

A racionalidade da reprodução e expansão capitalista “(...) está produzindo, pois, um conflito crescente entre a lógica do capital e a lógica da vida. Desta forma, a expansão capitalista depende de dois âmbitos imprescindíveis para seguir crescendo: a natureza e o espaço doméstico, ambos até agora gratuitos e ambos em grande medida no limite de sua capacidade de sustentação neste princípio do novo milênio. Um pelas crises energética e ecológica em marcha, e, o outro, pela crise incontida de tarefas de cuidado e reprodução. E os dois imprescindíveis para a manutenção da vida humana e não humana...” [10].

 

 

Como já ressaltado, a pressão exercida sobre toda a formação econômica e social brasileira pela lógica da expansão e reprodução capitalista tem afetado o modo de ser, de viver e de produzir camponês. É, no entanto, a peculiar organização familiar, com sua lógica própria que é capaz de dar conta, ao mesmo tempo, da família como força de trabalho e como beneficiária do trabalho alocado e dos resultados dessa alocação.

 

Mesmo sob essa pressão das classes dominantes para homogeneizar o modo de produção no campo, os camponeses, ou parte relativamente elevada deles, tem conseguido mudar a sua práxis camponesa --- atualizá-la ou acompanhar o seu tempo, a partir de uma concepção de mundo diversa da dominante[11]: aquela que afirma a autonomia relativa do camponês contemporâneo perante o capital e, ao mesmo tempo, usufrui criticamente das conquistas mais atuais do processo civilizatório.

 

Para tanto praticam ou já se iniciam na práxis da agroecologia e de uma relação que se deseja mais próxima da harmonia entre homem-natureza. Alteram de maneira radical (indo às raízes da questão) não apenas a matriz e práticas de produção como incorporam mudanças que lhes são apropriadas nas suas práticas de consumo familiar e na sua concepção de mundo[12]. Diria que apesar da truculência economia, política e ideológica da expansão capitalista no campo os camponeses permanecem capazes de se comportarem como guardiões da agrobiodiversidade.

 

A base da dinâmica dessas mudanças/permanências está, por um lado, na compreensão camponesa de que a sua relação antrópica com a natureza deve ser harmônica na medida das suas possibilidades. E que a sua relação com seus pares camponeses e com o proletariado deve ser de solidariedade e cooperação. Por outro lado, sabem e reafirmam nas suas práxis que no âmbito da formação econômica e social capitalista sob a hegemonia do capital financeiro os camponeses estão dialeticamente em contradição econômica, política e ideológica com a empresa capitalista agrícola, com o seu modo de produção e com os seus valores éticos.

 

---ooo---

Notas

[1] Ludmilla Duarte. ONU declara 2014 Ano Internacional da Agricultura Familiar. In Brasília, Assessoria de Comunicação do MDA, 09 de janeiro de 2012.

 

[2] Ver: Carvalho, Horacio Martins. Na sombra da imaginação (1): reflexão a favor dos camponeses. Curitiba, abril de 2010, mimeo 12 p.

 

[3] Consultar Carvalho, Horacio Martins (2012). O campesinato contemporâneo como modo de produção e como classe social. Curitiba, março, mimeo 43 p.

 

[4] Estou considerando a expressão ‘produção agrícola’ como uma referência genérica de toda a produção agropecuária, florestal, pesqueira artesanal, aqüicultura e aos produtos do beneficiamento parcial ou total da produção desses setores da economia rural no nível da unidade de produção camponesa. Por vezes, para fins apenas de facilitar a redação, utilizo também a expressão a produção na agricultura.

 

[5] Ver Carvalho, Horacio Martins (2003). O oligopólio na produção de sementes e a tendência à padronização da dieta alimentar mundial, in Carvalho, Horacio Martins (org.). Sementes, patrimônio do povo a serviços da humanidade. São Paulo, Expressão Popular, p. 95-112.

 

[6] Carvalho, Horacio Martins (2009). Da subjetividade neoliberal à prática emancipatória. Curitiba, setembro, mimeo 4 p.

 

[7] Carvalho, Horacio Martins (2012). O campesinato contemporâneo como modo de produção e como classe social. Op. cit. nota de rodapé 3.

 

[8] Consultar Carvalho, Horacio Martins (2010). Na sombra da imaginação (2). A recamponesação no Brasil. Curitiba, maio, mimeo 13 p.

 

[9] Consultar Carvalho, Horacio Martins (1982). Tecnologia socialmente apropriada: muito além da questão semântica. Curitiba, agosto, mimeo 28 p. Publicado em várias revistas e sites.

 

[10] Duran, Ramón Fernández (2012). Quiebra de la reproducción social y la crisis de los cuidados, los grandes olvidados, in La Quiebra del Capitalismo Global: 2000-2030. Montevideo, Extensión Libros, RETEMA. UDELAR; Libros en acción y Baladre. p. 45. (Tradução literal do espanhol por HMC).

 

[11] Carvalho, Horacio Martins (2012). Op. cit. nota de rodapé 3.

 

[12] Consultar Carvalho, Horacio Martins (2002). Comunidade de resistência e superação. Curitiba, fevereiro, mimeo 30 p. Publicado em várias revistas e sites.

Temas: Agricultura campesina y prácticas tradicionales, Agronegocio

Comentarios