A biodiversidade e sua contribuição à humanidade

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“O argumento da inutilidade da biodiversidade é usado freqüentemente pelos fabricantes dos transgênicos, que a ignoram como fonte de genes úteis para melhorar nossas culturas”. Em artigo recente, um jornalista argumentou que não há coisa lucrativa em meio à biodiversidade e que não existe evidência de sua utilidade. Discordo desta opinião, pois a literatura científica é cheia de exemplos impressionantes de como a biodiversidade, quando manipulada, enriquece nossos alimentos e melhora nossas culturas

O argumento da inutilidade da biodiversidade é usado freqüentemente pelos fabricantes dos transgênicos, que a ignoram como fonte de genes úteis para melhorar nossas culturas, justificando assim suas recorrências a genes de bactéria.

O famoso caso dessa utilização é a introdução da toxina Bt no milho, algodão e noutras culturas. Mais recente, foi um ligeiro aumento de ácido amínico da lisina no milho pelo uso de genes bacterianos.

Há grandes dúvidas sobre a segurança destes tipos de produtos transgênicos, comparado ao uso de genes de espécies silvestres de plantas. Há ainda o perigo de destruição de ecossistemas e da contaminação da fauna e da flora.

Existe ainda o problema da aptidão destes transgênicos comparados aos híbridos produzidos a partir de parentes silvestres. A aptidão significa capacidade de organismo de sobreviver e de se reproduzir sob condições naturais.

Trata-se de uma habilidade adquirida pelo organismo durante milhões de anos de evolução. Essa habilidade é reduzida drasticamente pela modificação artificial do organismo.

O perigo maior esta na provável ação gênica indesejável de genes bacterianos pela sua transferência horizontal às plantas.

A mais dramática história sobre a biodiversidade nos remete à da batata no século XIX. De 1816 a 1851, não menos que um milhão de pessoas morrerem por causa da falta de comida na Irlanda. Na época, a batata, que é a principal fonte de alimento daquele país, foi devastada por uma doença chamada “Late blight”. Isso aconteceu num país cuja população não passava de 8 milhões de habitantes.

A solução veio da biodiversidade; de uma espécie silvestre da batata chamada Solanum demissum, que era resistente a essa doença. Variedades resistentes surgidas de híbridos com essa espécie foram plantadas com sucesso e salvaram a população irlandesa (Salaman, 1919).

Na cana-de-açúcar, o vírus de mosaico ameaçou a indústria da cana em diferentes países. O problema foi resolvido somente com a descoberta de uma espécie silvestre de cana-de-açúcar chamada Saccharum spontaneum que carrega genes de resistência à doença. (Abbout, 1953)

Espécies silvestres de cacau salvaram também a indústria da cultura que foi devastada pela doença “wiches broom”, (Desrosiers, 1934)

O Brasil deve muito às espécies silvestres do café na resistência à ferrugem. Sem a incorporação da resistência da espécie silvestre natural da África às variedades brasileiras, o Brasil poderia ter o maior choque em sua economia na década de 1950.

Naquele ano, foi descoberta a doença, vinda da África. As variedades produzidas pelo Alecide Carvalho a partir das espécies silvestres “Coffea robusta” salvou o Brasil (Monaco & Carvalho, 1971). Recentemente foi descoberto, por pesquisadores brasileiros, plantas sem cafeína na espécie coffea arabica ( Silvarolla et al. 2004).

Não somente na resistência a doenças, mas a biodiversidade contribuiu muito em fornecer alimentos abundantes e baratos mediante a melhora da qualidade de nossos alimentos.

Por exemplo, na soja suas espécies silvestres contribuem para produzir cultivares mais precoces. Isto possibilitou plantar a cultura em áreas frias da Sibéria. Na Rússia, foi possível plantar ervilhas em áreas improdutivas, graças a genes vindo de espécies silvestres do Pisum (Stevenson and Jones, 1956).

A adaptação ao frio foi ainda introduzida de espécies silvestres do trigo a planta cultivada, possibilitando plantar a cultura em novas áreas. (Harlan, 1967, Kuchuck, 1973). A mesma coisa foi realizada pelos cientistas na uva.

As espécies silvestres de cacau contribuíram muito na melhora da qualidade da cultura, aumentando seu conteúdo protéico (Desrosiers, 1934). Na mandioca foi possível dobrar seu conteúdo de proteína pelo uso da espécie silvestre Manihot oligantha (Nassar, 1978, Nassar & Dorea 1982).

No sorgo, as espécies silvestres deram à cultura uma boa qualidade para se usar como forrageira (Dogett, 1964). Da mesma forma foi melhorado o conteúdo de óleo na aveia. (Lawrence and Frey, 1973).

As espécies silvestres foram usadas para o manejo do sistema reprodutivo em culturas como a da mandioca, onde foi introduzido gene da apomixia das espécies silvestres (Nassar et al. 2000).

No tomate, espécies silvestres possibilitaram a produção de variedades resistentes à salinidade, adaptadas à seca e tolerantes a nematóides. (Rick, 1967)

Aumentar a produtividade da mandioca de duas a três vezes foi possível pelo desenvolvimento de híbridos a partir da espécie silvestre Manihot glaziovii (Nassar, 1999, 2007).

Nagib Nassar é professor titular de Genética da UnB ( Gene Conserve). Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”:

Referências:

Abboutt, E. V. 1953. Sugarcane and its diseases. p. 526-539. In: Plant diseases. USDA Yearb of Agriculture. Washington, D.C..

Desrosiers, R. 1934. Diversidad genetic del cacao como base en la selección de Resistencia a la enfermedad de la escoba de bruja. Turrialba 4:131-134.

Doggett, H. 1964. Fertility improvement in autotetraploid sorghum II. Sorghum almum derivatives. Heredity 19:543-58.

Harlan, J. R. 1967. A wild wheat harvest in Turkev. Archacology 20:197-201.

Khush, G. S., and K. C. Ling. 1974. Inheritance of resistance to grassy stunt virus and its vector in rice. J. Hered. 65:134-136.

Kuckuck, H. 1973. Utilization of Iranian genetic material. Wheat Inf. Serv. 36:21-26.

Lawrence, P. K.; Frey, K. J. 1973. Introgression of exotic germ plasm int a breeding program using que Avena sativa – sterilis model. ASA Agron. Abstr.

Monaco, L. C.; Carvalho, A. 1971. Transfer of rust resistance from Coffea conephora to C. arabica. Cienc. Cult. 23 (Suppl.):101-102.

Nassar, N. M. A. 2007. Wild and indigenous cassava diversity: an untapped genetic resources. Genetic Resources and Crop Evolution, v. 54, p. 01-10, 2007.

Nassar, N. M. A. 1999.. Cassava,Manihot esculenta Crantz genetic resources:Their collection,evaluation,and manipulation. Advances in Agronomy, v. 69, p. 179-230.

Nassar, N. M. A. 1986. Genetic Variation Of Wild Manihot Species Native To Brazil And Its Potential For Cassava Improvement.. Field Crops Res., v. 13, n. 1, p. 177-184.

Nassar, N. M. A.; Dorea, J. G. Protein Content Of Cassava Cultivars And Its Hybrid With Wild Manihot Species. TURRIALBA, Turrialba, v. 32, n. 4, p. 429-432, 1982.

Nassar, N. M. A. 1978. Wild Manihot Species Of Central Brazil For Cassava Breeding.. Canadian J. Pl. Sci, v. 58, n. 2, p. 257-261.

Nassar, . M. A. , Santos, E, and David, S. R. 2000. The transference of apomixis genes from Manihot neusana Nassar to cassava M. esculenta Crantz. Hereditas 132: 167-170

Rick, C. M. 1967. Exploiting species hybrids for vegetable improvement. Proc. XVII Int. Hort. Congr. 3:217-229.

Salaman, R. N. 1919. The history and social influence of the potato. Cambridge University Press, London. 685 p.

Silvarolla, M. B.; Mazzafera,P.; and Fazioli, L. C. 2004. A naturally decafeinated arábica coffee. Nature vol. 429: 826-827.

Stevenson, F. J.; Jones, H. A. Some sources of resistance in crop plants. P. 192-216. In: USDA Yearb. Plant diseases. USDA Yearb. Washington, D.C.

Fonte: Jornal da Ciência

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