Doença renal misteriosa na América Central pode estar ligada a agrotóxicos

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Uma doença renal misteriosa que atinge camponeses em El Salvador e outros países da América Central mobiliza os ministérios de saúde da região. No dia 27 de abril, foi assinada em El Salvador uma declaração conjunta qualificando o combate da doença como de alta prioridade para a saúde pública e definindo uma série de ações nesse sentido.

Pesquisas em El Salvador e no Sri Lanka trazem resultados semelhantes em relação aos mesmos productos.

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Nos últimos dois anos, o Center for Public Integrity tem denunciado um tipo raro de DRC (doença renal crônica) que está matando milhares de camponeses da costa do Pacífico da América Central, do Sri Lanka e da Índia. Cientistas ainda não desvendaram completamente a causa desse mal, ainda que provas recentes apontem metais pesados tóxicos contidos em pesticidas como potenciais culpados.

Depois de anos sem iniciativas oficiais dos Estados Unidos e de outros lugares, a declaração feita em San Salvador reconheceu formalmente – pela primeira vez – a existência da doença e os grupos que afeta: “comunidades agrícolas socialmente vulneráveis ao longo da costa do Pacífico na América Central”, assinala a declaração aprovada pelo Conselho de Ministros da Saúde da América Central. E acrescenta: “É predominante entre homens jovens e tem sido associada a ambientes tóxicos e fatores ocupacionais de risco, desidratação e hábitos nocivos para a saúde renal”.

Entre ações anunciadas estão a realização de estatísticas mais detalhadas da DRC, o desenvolvimento de planos regionais e nacionais para investigar e tratar a doença e a promoção de medidas regulatórias mais fortes para o uso de agrotóxicos.

Um mal que afeta os pobres

A declaração representou uma grande vitória para El Salvador e sua ministra da saúde, a Dra. Maria Isabel Rodriguez. Essa senhora de noventa anos, um metro e meio de altura e os olhos cobertos por enormes óculos, tem sido a força motriz que catapultou a doença da obscuridade para um reconhecimento formal como principal ameaça à saúde pública na região.

“Essa é uma doença de pessoas pobres”, diz Rodriguez. “Uma doença de pessoas que trabalham nos campos e tem condições de vida muito ruins”.

O resultado marcou uma reviravolta nos Centros dos Estados Unidos para Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), que em 2011 ajudaram a derrotar um esforço de El Salvador para declarar prioridade ao tratamento da doença. O CDC diz agora que dedicou “centenas de milhares” de dólares para apoiar a investigação sobre a doença, criou uma força-tarefa multidisciplinar interna na América Central, e se comprometeu a ajudar no financiamento de uma pesquisa nacional em El Salvador para medir a relevância de doenças crônicas, incluindo a DRC.

“Nós temos o compromisso de dar apoio para acompanhar e fortalecer as investigações dos ministérios de saúde,” diz Dr. Nelson Arboleda, o diretor do CDC para a Região da América Central.

A conferência de San Salvador também marcou um limiar na cooperação internacional para o combate a essa doença misteriosa. Após anos de luta de pesquisadores na América Central tentando estabelecer uma ligação entre enfermidade semelhante na Ásia, o Sri Lanka enviou uma delegação oficial para El Salvador e pediu que a América Central considerasse os resultados das pesquisas e as políticas de combate à doença no país asiático como modelos para ações futuras na América Central.

“Nós temos provas clínicas, bioquímicas e histopatológicas o suficiente para dizer que se trata da mesma doença,” afirma Channa Jayasumana, representante do Sri Lanka na conferência que aconteceu em El Salvador.

No Sri Lanka, de acordo com um relatório oficial, mais de 8 mil pacientes estão recebendo tratamento por DRC de causa desconhecida, um número que representa apenas uma fração da quantidade de pessoas afetadas pela doença, que fica em estado latente até seus estágios avançados. Mais de 16 mil homens morreram de falência renal na América Central de 2005 a 2009. As mortes anuais mais que triplicaram desde 1990, de acordo com análise dos dados coletados pela Organização Mundial de Saúde. Em El Salvador, a DRC se tornou a principal causa de mortes hospitalares entre os homens adultos.

Resultados semelhantes em dois continentes

Um debate acirrado dominou a conferência de dois dias que culminou na assinatura da declaração. A questão central era se havia provas suficientes para declarar que a doença está ligada a agrotóxicos e da necessidade de restringir o seu uso para combatê-la. El Salvador apresentou os resultados oficiais de um estudo em curso, realizado em conjunto com a Organização Pan-americana de Saúde, sugerindo que os pesticidas e fertilizantes que contêm metais pesados podem ser a principal causa da doença.

Testes de meio ambiente, com amostras do solo e da água de um vilarejo fortemente afetado pela DRC, Ciudad Romero, registraram a presença de altos níveis de cádmio e arsênico, metais pesados tóxicos aos rins. No estudo, dos 42 moradores de Ciudad Romero que sofrem de DRC, todos relataram aplicar pesticidas sem nenhum equipamento de proteção.

Da amostra nacional de 46 pacientes com DRC, 96% relatou o uso de pesticidas, e exames médicos desses pacientes revelaram sintomas adicionais, tais como deficiência de reflexos e danos às artérias dos membros inferiores, o que sugere envenenamento tóxico.

As descobertas da pesquisa em El Salvador coincidem com as do Sri Lanka. Um estudo oficial realizado pelo Ministério de Saúde do Sri Lanka, este em parceria com a Organização Mundial de Saúde, registrou níveis elevados de cádmio e arsênico contidos em agrotóxicos e nas amostras de meio ambiente coletadas na região endêmica. O estudo encontrou os mesmos metais pesados nas amostras de urina, cabelo e unhas dos pacientes. O Sri Lanka também encontrou resíduos de diversos pesticidas na urina de muitos dos pacientes afetados.

Desde a publicação desse relatório, o governo do Sri Lanka impôs uma proibição de quatro pesticidas de uso comum na região endêmica. Rodriguez, ministra da saúde de El Salvador, também espera banir os mesmos pesticidas que as pesquisas ligam à epidemia.

Outros pesquisadores, porém, questionaram o peso das provas apresentados nesses trabalhos. Em El Salvador, os níveis de arsênico e cádmio acima dos permitidos foram encontrados em proporção diferente em locais diversos de Ciudad Romero – o que, segundo os críticos, enfraquece as provas de contaminação generalizada.

O país ainda precisa concluir os testes toxicológicos que irão determinar se os metais pesados encontrados no sangue, urina ou amostras de tecidos de pacientes com DRC vieram realmente dos pesticidas tanto no Sri Lanka como em El Salvador. Apesar do paralelo contundente, os relatórios dos dois países, em mais de uma década de pesquisas, nenhum estudo cuidadosamente revisado estabeleceu uma ligação definitiva com agrotóxicos.

“Ainda não existe uma conexão causal direta,” diz o Dr. Ramon Trabanino, um nefrologista salvadorenho que publicou dois dos primeiros estudos que demonstram a presença da doença. “Eu acho que isso tudo é política. Eles querem algo para julgar a culpa”.

A polêmica surgiu na parte final da conferência científica. O debate foi concluído por Rodriguez, que apresentou uma defesa enérgica das descobertas salvadorenhas.

"O que foi apresentado aqui é um fato científico, e vou defendê-lo com minhas unhas", disse ela, levantando as unhas pintadas de vermelho e levando o salão às risadas.

Agrotóxicos comuns

Dois produtos químicos, em particular, entraram na mira dos pesquisadores tanto em El Salvador quanto no Sri Lanka, o 2,4-D e o glifosato. 2,4-D é um herbicida comum usado para controlar ervas e o glifosato é o ingrediente ativo do herbicida mais popular do mundo, o Roundup. Ambos são usados no mundo inteiro, inclusive em inúmeras áreas não afetadas por essa forma estranha de doença renal crônica.

Os testes com pacientes em El Salvador, na Ciudad Romero — a comunidade contaminada por metais pesados — revelou que 100% e 75% dos pacientes, respectivamente, relataram usar 2,4D e glifosato. No Sri Lanka, resíduos de ambos os produtos foram encontrados em amostras de urina de alguns pacientes doentes.

O glifosato foi desenvolvido pela Monsanto, mas a patente expirou e agora várias empresas vendem os produtos com esse componente. A Monsanto afirma que atualmente vende produtos com glifosato no Sri Lanka, mas não confirma se eles também são vendidos na América Central.

Dr. Daniel Goldstein, um membro sênior do setor científico na Monsanto, diz que o “glifosato não causa falência renal”. Ele diz que estava ciente das descobertas do Ministério da Saúde no Sri Lanka e que o glifosato contém fósforo, um elemento cuja similaridade molecular com o arsênico pode resultar em pequenas quantidades de subproduto de arsênico, que não ameaçam a saúde humana. Mas a “plausibilidade da relação é praticamente nula” entre o glifosato e a epidemia de doença renal no Sri Lanka, segundo Goldstein.

A Dow Chemical, que desenvolveu o 2,4-D, não respondeu às perguntas feitas pelo Center for Public Integrity. Como o glifosato, a patente da produção expirou e outras empresas também fabricam pesticidas que contém o 2,4-D.

De acordo com a Agência de Proteção do Meio Ambiente, quantidades excessivas de glifosato e de 2,4D na água potável podem causar danos aos rins. Mas ainda não foram feitas muitas pesquisas sobre outros tipos de exposições e efeitos em longo prazo em seres humanos.

“Estou chocada com o quão pouca [pesquisa] existe sobre os efeitos em seres humanos,” diz a Dra. Stephanie Seneff, uma pesquisadora cientista sênior do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Seneff publicou um estudo que levanta preocupações sobre a variedade de possíveis efeitos à saúde para aqueles que se expõe por muito tempo ao glifosato.

Cientistas das equipes de pesquisa de El Salvador e do Sri Lanka também suspeitam que os aditivos tóxicos dos pesticidas, ou combinações perigosas de produtos químicos, podem trazer riscos adicionais à saúde além daqueles apresentados pelos produtos.

Em uma entrevista em San Salvador, Rodriguez reagiu com surpresa à colocação da Monsanto de que o glifosato não ameaça os rins. “Ah, Monsanto!” disse ela, com um olhar de consternação. “São eles que irão enfrentar a gente”.

Colaborou Anna Barry-Jester. Essa reportagem foi apoiada pelo Stabile Center for Investigative Journalism, da Universidade de Columbia. Leia aqui a original, em inglês.

Fuente: Opera Mundi

Temas: Agrotóxicos

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