O agronegócio se apropria da Embrapa

Idioma Portugués
País Brasil

A decapitação da atual direção nacional da Embrapa ocorrida no dia 21 de janeiro, constitui mais uma ação consciente do Governo Lula, através de medida político-administrativa do ministro Roberto Rodrigues, na afirmação exclusiva dos interesses de classe do capital oligopolista internacional do agronegócio. Essa decisão consagra os destinos da Embrapa: a serviços dos interesses das grandes empresas capitalistas do campo e das indústrias ligadas ao agronegócio. Portanto, mais uma prática efetiva consciente e intencional desse governo na exclusão econômica e social do campesinato

A criação da Embrapa no meado da década de 70 deu-se em conseqüência da estratégia de apoio governamental ao desenvolvimento capitalista no campo, movimento político esse que se autodenominou no nível mundial de revolução verde (sic). No entanto, já estava em curso, desde início da década de 60, a artificialização da agricultura, processo sob a hegemonia das indústrias químicas e de fármacos que objetivava concretizar a substituição de uma relação necessária e harmoniosa entre a produção agropecuária e florestal, a natureza e os produtores individualizados ou em comunidades para transformar essa produção num ramo da indústria. Esse processo foi incrementado com a concentração oligopolistas das empresas de sementes, acompanhada da sua desnacionalização, com o desenvolvimento da biotecnologia na sua fase mais avançada de manipulação e modificação genéticas.

A privatização crescente do desenvolvimento científico e tecnológico na área da geração de sementes híbridas e transgênicas, de agrotóxicos, de fertilizantes de origem industrial, de herbicidas e de hormônios já estava batendo nas portas da Embrapa desde sua criação. Havia, ainda, até meado da década de 80 algum pudor público sobre essa articulação público-privado na pesquisa agropecuária. No entanto, aos poucos, talvez nem tanto, as grandes empresas multinacionais se acercaram da Embrapa e de parte relevante de seus pesquisadores. Por outro lado, os governos matreiramente reduziam os orçamentos públicos para a pesquisa e a experimentação, facilitando a lógica cartesiana de que se não há recursos público dever-se-ia ir busca-los juntoà iniciativa privada. As leis de patentes, nas suas diversas modalidades, consolidaram os interesses privatistas de ampla parcela dos pesquisadores ávidos por recursos privados para seus projetos e os correspondentes dividendos pelos serviços prestados ao capital.

Ora, essa vontade política de focar a pesquisa e experimentação agropecuária e florestal no sentido de torna-las um ramo da indústria (a artificialização da agricultura) não é nova, sendo que essa tendência já estava dada desde a constituição da Embrapa quando incorporou os cânones da "revolução verde" e pela forma como se deu institucionalmente a estruturação dos seus centros nacionais por produto e por recurso.

O reducionismo, o produtivismo e a artificialização (substituição gradativa da dependência da agricultura aos condicionantes da natureza) como eixo central e as parcerias com as empresas privadas como eixo correlato, parcerias estas induzidas pelos saberes acadêmicos dominantes gestados nas universidades e agências de desenvolvimento norte-americanas, então comprometidas com os interesses das grandes empresas capitalistas, e pela FAO, órgão das Nações Unidas explicitamente à serviços do capital multinacional na agricultura, configuraram a pauta estruturante da política governamental de pesquisa e experimentação na agricultura brasileira. O discurso relacionado com a geração de tecnologias apropriadas à dinâmica de produção, extrativismo e beneficiamento pelo e para o campesinato foi mantido como um rebouçado para o grande público, enquanto que a grande parte dos recursos financeiros, materiais e humanos eram destinados à afirmação da estratégia de pesquisa centrada nos interesses da grande empresa capitalista no campo, e da indústria a ela vinculada.

Os pesquisadores e administradores, assim como os programas e projetos porventura criados para dar conta dos interesses do campesinato e elaborados a partir de premissas que sustentavam etnoagrobiodiversidade, foram sistematicamente isolados academicamente, ideologicamente criticados e orçamentariamente postergados ou marginalizados. A visão hegemônica de modernidade intuída nas práticas científicas e tecnológicas no âmbito da Embrapa era aquela extraída dos compêndios do neoliberalismo que consideravam moderno ou atual a concentração da renda e da riqueza e o pragmático desprezo acadêmico pela biodiversidade. A homogeneização da produção foi travestida na busca incessante do produtivismo e da economia de escala. Esse viés economicista da pesquisa e experimentação agropecuária e florestal foi constantemente reafirmado pelas políticas macroeconômicas que mantinham e mantêm a pauta de exportações e os superávits comerciais externos ancorados nos produtos "in natura" e beneficiados agrícolas, pecuários e florestais.

Abandonou-se de vez qualquer vestígio de construção de uma política massiva e participativa de soberania alimentar, apesar a procissões de vaidades que inundam os conselhos de segurança alimentar hoje reduzidos a um ponto de encontro místico para o exercício de virtualidades retóricas.

Esse viés tornou-se cada dia mais consolidado e atingiu seu clímax com a adesão militante do governo Lula aos organismos geneticamente modificados (OGM), em especial às sementes transgênicas, e aos interesses massivos do agronegócio sob a hegemonia das multinacionais. Essa capitulação política perante os interesses estrangeiros refletiu-se cumulativamente na omissão sistemática do governo federal, desde sempre, em relação à expansão da fronteira agrícola, à apropriação privada das terras devolutas sem controle público, à devastação dos Cerrados, da Amazônia, da Mata Atlântica e do Pantanal, à apropriação privada da água doce, à eliminação sistemática do campesinato, ao desprezo pelo social rural e pela agrobiodiversidade. A essa
tendência que se fez prática cotidiana se deve acrescentar a indiferença pela produção científica e tecnológica nacional sob o domínio público, abdicando de uma prática efetiva de afirmação de soberania nacional a partir de, entre outros, a geração de saber científico público de base.

A apropriação explícita da Embrapa pelos interesses privados do grande capital, sancionada pelo governo federal, traz para o povo brasileiro mais um recado: a crescente desigualdade econômica e social no campo, a apropriação privada dos recursos naturais renováveis e não renováveis e o desmantelamento da economia camponesa é uma tendência de afirmação dos interesses das classes dominantes e é legitimada pelo atual governo.

Essa medida de intervenção explícita por um dirigente do Executivo numa política pública da envergadura da pesquisa e experimentação agropecuária e florestal do país denota, mais uma vez, que um processo autoritário vem se instalando no país. Os interesses da maioria da população são desprezados, privatiza-se o espaço público e faz da inteligência brasileira uma caricatura de intelectualidade.

*Horácio Martins de Carvalho é engenherio agrônomo e consultor de organizações e movimentos sociais do campo.

MST

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