A pandemia e sua relação com crimes ambientais

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- Foto de Marcelo Camargo/Agência Brasil

O que esta pandemia tem a ver com a irresponsabilidade de governos capturados por interesses empresariais que não se preocupam com os bens comuns, desrespeitam os direitos humanos e não dão a mínima para os anseios de nossos amigos, irmãos e parceiros de caminhada, em defesa da casa comum?

Este texto discute este assunto, com base em publicações recentes. Os links de acesso a base de pesquisa estão disponíveis nas notas e ao final. A expectativa, otimista, é de que os leitores atentem para o que cada um pode fazer, levando em conta recomendações da ciência.

Aliás, mesmo aqueles leitores que não acreditam em vida depois de morte possivelmente concordarão que o planeta é uma casa comum em plena crise. A atual pandemia mostra a fragilidade da vida e a responsabilidade de atividades que desprezam a ecologia. Os estudos que examinamos adotam esta perspectiva. Esta pandemia, é uma zoonose com causas ambientais.

As zoonoses são doenças que compartilhamos com outros animais. E esta é uma das lições ecológicas: somos aparentados com outros animais, compartilhamos o ar, a água, vários genes e algumas enfermidades.

Áreas da ONU envolvidas com o tema da saúde e da crise ambiental, examinando as pandemias, afirmam que em pleno século XXI não temos desculpas para enfrentar consequências e ignorar as causas de problemas tão graves como a covid-19.

Dados históricos revelam que surgem pelo menos duas novas zoonoses deste tipo, a cada ano, e que elas sempre se relacionam a desequilíbrios ambientais [1]. A destruição de áreas de reserva natural elimina seres que convivem com doenças que lhes são próprias, e que ficam restritas àqueles ambientes, até que isto deixa de ser possível. Na ausência de seus hospedeiros selvagens, dizimados pela ação do homem, os patógenos que com eles conviviam, fungos, vírus e bactérias, são induzidos a migrar em busca de alternativas para sua reprodução.

A proximidade, as deficiências nutricionais, as condições insalubres, o estresse, entre outras fragilidades, fazem de nós, e das criações em cativeiro, para nosso consumo de proteína animal, as melhores opções.

Por conta de alimentação inadequada, com sistemas imunológicos fragilizados, amontoados em grande número, entupidos de antibióticos e outras drogas, somos as opções naturais para moléstias em busca de paradeiro.

E sabemos como isso ocorre. Estudos indicam forte e direta relação entre os crimes ambientais, as espécies em risco de extinção e o avanço de zoonoses que migram de meios naturais degradados para áreas urbanizadas.

Avaliação do impacto de atividades econômicas responsáveis pelo que ambientalistas chamam de A ERA DAS EXTINÇÕES [2] mostra que pelo menos 142 viroses sabidamente transferidas da vida selvagem para humanos, portanto zoonoses como a covid-19, a SARS, o HIV, se relacionam a espécies animais ameaçadas de extinção [3]. Roedores, primatas, morcegos estão no topo da lista, como hospedeiros naturais de 75% das viroses conhecidas.

Portanto, a caça predatória, os hábitos de consumo, as queimadas, os sistemas produtivos ecocidas, a destruição de povos indígenas e das áreas de reserva ambiental, que estão na base do declínio da biodiversidade, são a raiz da expansão dos riscos. Alguns ganham com isso, e podem estimular homens públicos e formadores de opinião a defender seus lucros e interesses. Ganham com as queimadas, ganham com as pastagens na Amazônia, com os eucaliptos e a soja no Pampa, com a destruição do Cerrado, com os agrotóxicos e com as drogas medicinais vendidas para remediar os estragos que tudo aquilo causa.

Em outras palavras, a destruição da vida selvagem, por avanços de um modelo produtivo baseado em monocultivos de plantas dependentes de agrotóxicos, que em grande parte se destinam à produção de rações para criações de animais, adoentados, estressados, em cativeiro, contribuem para o surgimento e a expansão das pandemias [4].

Neste sentido, a covid-19 seria algo como a ponta de um iceberg, que ocultaria vasto potencial de novas doenças, que tendem a avançar sobre nós, na medida em que prosseguimos com os processos de destruição da Natureza. A expansão dos dramas pode ser protelada com quarentenas, investimentos em respiradores e vacinas, mas precisamos trabalhar sobre as causas, ou não evitaremos outras zoonoses.

A grande pergunta é: Como prevenir o surgimento de novas pandemias, o que fazer e a que custos [5]?

Estudo recente [6], publicado dia 24 de julho de 2020 pela revista Science, mostra que nesta situação de risco os investimentos em prevenção constituem a melhor política de segurança para a saúde humana e para a economia global.  

A ideia é simples como olhar para os lados antes de atravessar uma rua: podemos evitar novas pandemias, como evitamos atropelamentos, tomando precauções antes que as tragédias ocorram. Prevenir, antes de tentar remediar, até porque é mais barato.   

Que ações e que custos poderiam ter evitado os bilhões de dólares de prejuízos econômicos, em todas as nações, e os quase 100 mil mortos no Brasil pela covid-19?

O estudo da Science refere que a prevenção, hoje, custaria cerca de 2% do valor dos prejuízos até aqui estimados com inciativas como as tomadas, para recuperar a economia e tratar os infectados, sem atentar para as razões que trouxeram a crise. Repetindo, com cerca de 2% dos gastos associados à covid-19 podemos evitar a próxima pandemia, que se não tivermos sorte poderá ser THE BIG ONE, a última. Aquela com grande capacidade de transmissão e alta taxa de mortalidade.

Simples assim: as causas são ambientais e decorrem de uma visão criminosa, ecocida e tola, assumida por quem poderia reencaminhar o tema sob outra perspectiva, evitando sua ocorrência ou sua expansão.

É verdade que alguns grupos estão enriquecendo. A morte de muitos também alivia problemas do sistema de saúde, e pode ser considerada do interesse de outros. Indivíduos mal informados, ignorantes ou irresponsáveis podem até considerar isto “normal”, como parte da vida. Mas não é normal, é provocado.

A tendência é clara. Se a Natureza não for protegida novas crises surgirão, com maior agressividade, e com simultaneidade de danos em sinergia que expandirão os perigos. Algo assim como o que tende a ocorrer no RS, neste inverno, onde a pressão do frio e da covid se acumularão afetando uma população idosa, mal alimentada e retida em ambientes pouco arejados. Com o tempo e a emergência de novas crises, todos serão prejudicados. Após a morte dos pangolins, dos morcegos, dos porcos, dos indígenas, dos pobres, será a vez dos ricos. Os patógenos procurarão outros hospedeiros, driblarão vacinas com mutações inesperadas e seguirão em frente, como os gafanhotos.

Por estas e outras, o artigo Ecologia e economia para prevenção das pandemias (Ecology and economics for pandemic prevention - Science  24 Jul 2020:Vol. 369, Issue 6502, pp. 379-381) deve ser lido com atenção.

As zoonoses tendem a se ampliar pela fragmentação e destruição sem precedentes das florestas tropicais e pelo comércio da vida selvagem, transformando-nos em alvos potenciais para viroses expulsas de ambientes onde estão estabilizadas.

A alternativa, segundo os autores, está na proteção dos povos indígenas e das comunidades que convivem em relativa harmonia com a vida selvagem. Está na ampliação das áreas de reserva ecológica, na suspensão das queimadas, na mudança de hábitos alimentares insustentáveis e na criação de uma nova economia, protetiva ao ambiente e à ecologia planetária.

Segundo liderança da agenda ambiental do Fórum Econômico Mundial [7], a covid-19 mostrou que a humanidade e suas atividades econômicas dependem do balanço ecológico planetário que está em risco, o que exige medidas urgentes. Para Stéphane De La Rocque, da Organização Mundial de Saúde, a covid-19 seria a primeira (talvez a última?) grande oportunidade que temos, como raça, para examinar conexões entre a vida selvagem e as doenças zoonóticas, para a partir deste conhecimento estabelecer mecanismos de contenção. Tudo a ver com agroecologia, não é mesmo?

Se trata da criação de formas de coexistência com a vida selvagem, o que implica em estudar e aprender com os povos que o fazem, para conter o acelerado declínio dos sistemas que dão suporte a vida natural, em escala planetária [8].

Relatório do Fórum Econômico Mundial, sobre o futuro da natureza e dos negócios [9] afirma que a aparente prosperidade e a economia como um todo, desaparecerão num planeta morto. Entre os três setores responsáveis principais pelos riscos de desaparecimento de 80% das espécies ameaçadas, o FEM destaca o uso da terra e o sistema alimentar, que dependem de modelos inadequados e que tornam estreita a janela crítica para ações capazes de impedir novas pandemias.

O relatório também afirma que a natureza pode prover os trabalhos que a economia exige, não havendo impedimentos técnicos para que empresas e governos adotem planos nesta direção, em larga escala, gerando milhões de ocupações que contribuam para a segurança planetária.

Carlos Alvarado Quesada, presidente da Costa Rica, afirma que a covid deve ser interpretada como oportunidade para restabelecer relacionamentos adequados entre a humanidade e a natureza. Cita exemplos de seu país, como economia positivamente ligada à natureza, que apoia sua prosperidade e empregos numa outra perspectiva de desenvolvimento, sustentado na proteção ambiental.

Muito diferente de nosso presidente e seu funcionário ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, que também considera a covid como oportunidade para avanços, ainda que no rumo oposto. O ministro afirmou em 22 de abril, e vale repetir aqui suas palavras, para memória das gerações futuras. Os jovens de hoje precisam saber a quem deverão responsabilizar pelo Brasil que terão pela frente.

“Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação regulam ... é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos” [10].

O Fórum Econômico Mundial, a ONU, a OMS e o bom senso de cada um apontam para a insuficiência de iniciativas voltadas às consequências econômicas e sanitárias, de problemas que decorrem de uma destruição ambiental que segue acelerada, provocando crises zoonóticas de caráter pandêmico.

Precisamos de novos rumos para a economia e aqueles organismos sugerem desaceleração de processos, eliminação de desperdícios, reciclagem, armazenamento, redução de fluxos desnecessários e gerenciamento da produção com atenção aos impactos ambientais. Tudo a ver com estímulos à agroecologia.

Destacam urgência de controle a mecanismos que alimentam a caça e a pesca predatória. Pedem o fim dos subsídios a uma agricultura ecocida, que causa danos ao planeta. Recursos públicos escassos utilizados por poucos criam efeitos destrutivos sobre bens comuns, comprometendo a vida de todos.

A isenção de impostos para agrotóxicos, assim como a liberação doida de novos agrotóxicos no Brasil ilustram este argumento. Em 2020 foram aprovados cerca de 180 novos agrotóxicos, agora são 680 desde 2019, quando assumiu Bolsonaro. Não temos nenhum problema novo, na agricultura, que permita entender as razões lógicas desta realidade. E apenas em 2018, quando cerca de 1 bilhão de litros de venenos agrícolas foram jogados em nosso território, o Brasil deixou de arrecadar mais de R$ 2 bilhões com isenções a agrotóxicos [11] que ampliam o ecocidio e os riscos de vida para esta e as próximas gerações.

Associada às queimadas e ao agronegócio, esta realidade nos chama atenção para um fato simples: estamos sendo omissos e cúmplices de uma realidade que ameaça a todos e exige a maturidade das ações coletivas em defesa da casa comum. O avanço da covid e das próximas pandemias, a nuvem de gafanhotos e a ascensão de políticos que desconsideram a base da vida, que não se pautam por valores éticos e morais, são problemas de todos nós. Todos eles devem ser tratados de forma preventiva, tomando como lição as experiências anteriores e o princípio da solidariedade. Tudo a ver com a agroecologia.

Referências:

[1]  www.theguardian.com/environment/2020/apr/08/human-impact-on-wildlife-to-blame-for-spread-of-viruses-says-study-aoe

[2]  www.theguardian.com/environment/series/the-age-of-extinction

[3]  www.theguardian.com/environment/iucn-red-list

[4]  www.theguardian.com/environment/2020/apr/08/human-impact-on-wildlife-to-blame-for-spread-of-viruses-says-study-aoe

[5]  www.unenvironment.org/es/resources/report/preventing-future-zoonotic-disease-outbreaks-protecting-environment-animals-and

[6]  https://science.sciencemag.org/content/369/6502/379

[7]  World Economic Forum’s  nature  action  agenda

[8]  www.theguardian.com/environment/2019/may/06/human-society-under-urgent-threat-loss-earth-natural-life-un-report

[9]  www3.weforum.org/docs/WEF_The_Future_Of_Nature_And_Business_2020.pdf

[10]  www.migalhas.com.br/quentes/327591/salles-fala-em-aproveitar-pandemia-para-mudar-todo-o-regramento-do-meio-ambiente

[11]  www.brasildefato.com.br/2019/04/02/brasil-deixou-de-arrecadar-rdollar-2-bilhoes-com-isencoes-a-agrotoxicos-em-2018

- Edição: Katia Marko

Fonte: Brasil de Fato

Temas: Extractivismo, Salud

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