Boletim fevereiro: Sementes Crioulas, por uma alimentação livre de transgênicos e agrotóxicos

Por AS-PTA
Idioma Portugués
País Brasil

FEVEREIRO 2020 - Nesta edição, trazemos relatos sobre como a luta contra a contaminação transgênica vem se dando na prática pelo país. No bloco das notícias, o destaque é para os programas estaduais de sementes crioulas no Nordeste. Atravessando o samba, sempre ela, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) facilitou ainda mais a liberação de transgênicos. A isso se associa também a proposta do governo de liberar a mineração e a agricultura comercial em terras indígenas. 

As espécies agrícolas são produtos da coevolução entre o ser humano e outros seres da natureza. Ao longo do tempo, plantas e animais foram domesticados e tendo suas características moldadas aos mais diferentes usos, ambientes e sistemas de produção. O milho, com suas inúmeras cores, formatos e sabores, talvez seja o representante vegetal mais expressivo desse processo.

Pesquisas recentes que articulam genômica, linguística, arqueologia e paleoecologia revelam que populações ancestrais de milho saíram de seu centro de origem, no México, ainda não totalmente domesticadas, e encontraram no sudoeste da Amazônia um centro secundário de adaptação e melhoramento. Os processos de dispersão pelos quais essas sementes teriam passado desde cerca de 6.500 anos atrás coincidem com a expansão das línguas dos troncos Arawak e Macro-Jê, reforçando os elos dessa coevolução. “Ondas múltiplas de dispersão mediadas pelos humanos são responsáveis pela diversidade e pela biogeografia do milho sul americano moderno” [1].

As sementes transgênicas rompem abruptamente com essa história biocultural. É isso que mostra a matéria em destaque deste Boletim. Os povos indígenas, as comunidades tradicionais e as famílias agricultoras, que são as herdeiras diretas desse legado ancestral, seguem cuidando e desenvolvendo esse inestimável patrimônio. A Agroecologia cumpre, nesse contexto, dois papéis essenciais. Em primeiro lugar, fundamenta o enfoque científico para que a diversidade genética dessas sementes seja integrada em sistemas sustentáveis de produção agrícola. Em segundo lugar, apresenta-se como uma bandeira de luta que se contrapõe à lógica técnica e econômica do agronegócio e articula povos indígenas, comunidades tradicionais e a agricultura familiar em defesa de sistemas agroalimentares saudáveis e justos.

Nesta edição, trazemos relatos sobre como a luta contra a contaminação transgênica vem se dando na prática pelo país. No bloco das notícias, o destaque é para os programas estaduais de sementes crioulas no Nordeste. Atravessando o samba, sempre ela, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) facilitou ainda mais a liberação de transgênicos. A isso se associa também a proposta do governo de liberar a mineração e a agricultura comercial em terras indígenas. Confira também nossa indicação de leitura para curar a ressaca de fake news contra os orgânicos e muito mais!

Contaminação transgênica: a perda é econômica, mas também cultural
Comercialização de derivados de milho aparece como
medida de estímulo à conservação das variedades crioulas

Quase 50 tipos de milho transgênico já foram liberados no Brasil e são cultivados em cerca de 15 milhões de hectares, segundo dados das empresas do setor. Como era de se esperar, casos de  contaminação de variedades crioulas e da produção orgânica vêm sendo registrados de norte a sul do país. Como reação, guardiãs e guardiões das sementes vêm se organizando também em todas as regiões do Brasil para defender suas sementes.

Odair Prestupa, agricultor familiar do município de Rio Azul, no Centro-Sul do Paraná, e membro do Coletivo Triunfo, uma articulação regional da agricultura familiar, avalia que a chegada dos transgênicos na sua região tem significado prejuízos para as famílias produtoras. Agricultores/as perderam por contaminação sementes que vinham preservando há décadas. Esses guardiões das sementes são referências nas suas comunidades, pois todos sabem que podem buscar com eles sementes de qualidade. “A perda é econômica, mas também cultural”, diz Odair. Da sua experiência, observou que “a semente contaminada dá mais caruncho e a criação não come, tem que colocar suplementos junto e isso aumenta o custo de produção”. Uma agroindústria familiar voltada para beneficiamento do milho, recém-inaugurada na região, passou a representar para as famílias agricultoras garantia para a venda de um produto agroecológico beneficiado e com melhor preço. Odair já teve uma roça de milho contaminada por milho transgênico plantado a mais de 200 metros de distância. Não pôde vender nem guardar sementes para o próximo plantio. Este ano conseguiu sementes novas e plantou em uma área isolada de onde espera colher sem contaminação.

Na Paraíba, na região da Borborema, a primeira contaminação transgênica do milho foi identificada em 2014, mesmo ano em que os agricultores começavam a produzir fubá agroecológico. Euzébio Cavalcanti, da Comissão de Sementes do Polo da Borborema, conta que investigaram o caso para entender como o transgênico tinha entrado na comunidade. Descobriram que um agricultor havia guardado milho para plantar, mas não para toda a área. Para completar sua área plantada, comprou semente de fonte desconhecida e acabou contaminando a roça dos vizinhos. Depois disso, a Comissão fez vários encontros e atividades de formação sobre o tema. Quem tinha perdido a semente comprou de guardiões que tinham sementes testadas e livres de transgênicos. “Isso ajudou a diminuir a contaminação na comunidade”, avalia Euzébio. Na sequência desses acontecimentos, o Polo da Borborema lançou a campanha  “Não planto transgênico para não apagar minha história”. Uma das ações da campanha é o beneficiamento e a comercialização de derivados de milho. Euzébio conta que a iniciativa “deu um ganho maior de recurso para o agricultor que tem a semente crioula e deu um estímulo para quem teve a semente contaminada procurar uma limpa pra poder vender também”. Até gente de outros estados já está procurando o fubá agroecológico. “O próximo passo é produzir o flocão para cuscuz. Tudo isso é lutar contra o transgên ico, porque a alimentação saudável é uma necessidade”, conclui Euzébio.

Também no semiárido, Claudeilton Luiz, advogado popular e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), conta que o Movimento tem estimulado a formação de estoques de sementes nas Casas Comunitárias e nas Casas Familiares de Sementes como forma de garantir sementes puras. Além disso, o Movimento lançou em âmbito nacional a campanha “ Adote uma Semente” como estratégia para reforçar sua bandeira de luta pela soberania alimentar. “Já identificamos casos de contaminação fazendo o teste da fita”, informou Claudeilton.

Uma única regra no Brasil disciplina a coexistência entre lavouras transgênicas e as demais. Trata-se da Resolução Normativa 04, editada em 2007 pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Segundo essa regra, bastam 100 metros de distância ou 20 metros acrescidos de uma bordadura de 10 linhas de milho para evitar a contaminação entre lavouras transgênicas e não-transgênicas. “A RN 04  viola a Constituição Federal, a Lei dos Orgânicos, a Lei da Agricultura Familiar, a Convenção sobre Diversidade Biológica e o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Agricultura e Alimentação da FAO ao ferir os direitos dos agricultores”, destaca a advogada da Terra de Direitos, Naiara Bittencourt.

Membro à época da Comissão de Biossegurança, o agrônomo extensionista Leonardo Melgarejo recorda que, quando a RN 04 foi votada, havia na CTNBio um grupo minoritário de membros que já afirmava que ela não funcionaria. Uma mesma regra válida para um país tão diverso e que coloca uma distância de isolamento tão pequena já deixava claro que a contaminação avançaria. Como já constatou no Paraná o agricultor Odair Prestupa, o ex-representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio, Leonardo Melgarejo, lembra que já alertava há mais de dez anos que uma variedade crioula contaminada por transgênicos poderia perder algumas de suas características e afetar a plantação. “Quem quer plantar milho crioulo pode, mas não terá certeza de que vai colher um produto livre de contaminação. Mesmo se a regra for cumprida, pode haver contaminação, já que ela é insuficiente”, resume Melgarejo. Para Bittencourt, “os  direitos dos agricultores estão ameaçados e é papel do Judiciário corrigir falhas dos demais Poderes, como é o caso dos  critérios de biossegurança para isolamento do milho GM estabelecidos pela CTNBio”.

Sementes crioulas na mídia
Abre alas para as boas notícias!

- O governo do Rio Grande do Norte inaugurou o  Programa Estadual de Sementes Crioulas com a doação de 50 toneladas de sementes adquiridas de 41 famílias guardiãs da agrobiodiversidade. As sementes crioulas, também conhecidas no estado como “sementes da tradição”, foram entregues a mais de 3.000 famílias. Sementes de milho, feijão, sorgo e arroz vermelho serão cultivadas e multiplicadas no cair das primeiras chuvas no semiárido.

- A Rede Sergipana de Agroecologia (Resea) se mobiliza para que o governo do estado siga fortalecendo o  Programa de Distribuição de Sementes do Estado do Sergipe que, em 2019, beneficiou cerca de 30 mil famílias da agricultura camponesa. Em declaração para este Boletim, o dirigente do Movimento Camponês Popular (MCP), Philipe Caetano, lembrou que o programa de sementes é conquista de uma longa caminhada dos movimentos e organizações que compõem a Resea, da qual faz parte também a aprovação, em 2016, de uma  lei estadual de incentivo à agrobiodiversidade.

Aqui a gente diz não!

- Não à liberação da  mineração em terras indígenas e ao plantio de transgênicos em Áreas de Proteção Ambiental (APAs) [e em qualquer território] !
Como mais um ato de sua política contra o meio ambiente, o Presidente da República encaminhou ao Congresso  projeto de lei propondo a liberação dessas atividades. De acordo com  especialistas, a medida pode criar dependência dos indígenas aos mercados de sementes e ao pagamento de royalties.

- E como se não bastasse, a Resolução nº 24 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), aprovada no dia 09 de janeiro último,  rebaixa critérios para estudos prévios de riscos, facilitando ainda mais a aprovação e liberação de transgênicos. Tais orientações estão cada dia mais moldadas ao gosto das empresas. Mas há resistência!

Banco de semente, no gelo (...)

- Amostras de  3.500 variedades de diferentes espécies agrícolas brasileiras foram enviadas pela Embrapa ao maior banco mundial de armazenamento de sementes, Svalbard, que fica entre rochas de gelo, na Noruega. Variedades crioulas de milho e feijão pertencentes aos indígenas Cherokee dos Estados Unidos também serão enviadas para a Noruega.  De acordo com um representa nte Cherokee, armazenar as sementes no banco é “ter uma pedaço da nossa cultura preservado para sempre”. Congelar sementes não é, entretanto, o único caminho para se conservar a biodiversidade. Conectar ações ex situ e on farm, repatriando as variedades, é estratégia prioritária de cuidado do patrimônio genético e cultural. É o que nos conta a  História das sementes da Nação Pawnee nos Estados Unidos, onde, juntos, indígenas e pesquisadores têm sempre o que aprender e ensinar entre si. Aqui no Brasil os  Krahô recuperaram suas sementes ancestrais de milho nas coleções da Embrapa, num exitoso caso de complementaridade de estratégias in situ e ex situ de conservação.

Luta por soberania na África

•  Agricultores/as das terras altas da Etiópia começaram a cultivar teff, um cereal altamente nutritivo, há aproximadamente 3 mil anos. Atualmente vêem sua soberania ameaçada pelo patenteamento do teff processado por uma empresa holandesa. A pergunta que não quer calar: “é possível patentear uma planta que tem sido alimento básico de um país durante milhares de anos?”.

Opa, sem fake news e com saúde

- À medida que cresce a produção e o interesse por alimentos orgânicos, crescem também os ataques, supostamente científicos, à superioridade e viabilidade da produção orgânica e agroecológica. Em tempos de fake news, vale muito a pena conferir artigo super completo assinado por uma nutricionista, um agrônomo e um jornalista que coloca os pingos nos is e confirma que  “Sim, orgânico é mais saudável”.

Recomendamos:

- A série  Água de plantar, para você se inspirar com histórias dos territórios nos quais a Agroecologia está criando novas possibilidades de se plantar e cuidar da água no campo e nas cidades.

- Ler com atenção a segunda edição do dossiê sobre  Flexibilização da legislação socioambiental brasileira, atentando para a derrocada da política ambiental produzida pelo atual governo.

Relatório produzido pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que apresenta os principais resultados da pesquisa realizada com redes de agroecologia por todo o Brasil, apoiada pela Fundação Banco do Brasil (FBB), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Fundo Amazônia.

Nota:

[1] KISTLER, L. et al. Multiproxy evidence highlights a complex evolutionary legacy of maize in South America. Science, v.362, n.6420, p.1309, 14 dez. 2018.

Fuente: AS-PTA

Temas: Defensa de los derechos de los pueblos y comunidades, Semillas, Transgénicos

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