Revista Biodiversidade, sustento e culturas, N° 68 em Português

Olhar-se no espelho da África e se olhar também no reflexo daqueles que cuidaram do mundo por milênios. E saber que a urgência por uma soberania alimentar, pela produção própria de alimentos, já está impactando as cidades e terminará por nos submeter a uma escravidão não imaginada se não unirmos bairros urbanos e comunidades camponesas, se não abrirmos um espaço nas cidades para nossa própria criatividade e para nosso próprio anseio de não depender daqueles que nos envenenam com comida a preços que ninguém pode pagar.

Nesta vez, a imagem usada na capa nos leva a um campo agrícola na África. A foto diz tudo: os que nele trabalham têm que se cobrir e se proteger o máximo possível disso que aplicam supostamente para cuidar do cultivo que já cresce, único, no meio de uma extrema “limpeza”, uma espécie de “limpeza étnica agrícola”. E se protegem porque seu trabalho é tóxico, é nocivo, como o são também os chamados “programas de intensificação de cultivos” que o governo de Ruanda aplica em cumprimento da Aliança por uma Revolução Verde na África. Estes programas definem que sementes plantar, excluem ao extremo qualquer consórcio de cultivos e determinam quais podem ser plantados e onde, e fazem um uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos, venenos puros, tudo com o fim de aumentar drasticamente a produtividade, ainda que, no processo, perca-se a enorme variedade agrícola em prol de algumas variedades legalizadas. E ainda que, em longo prazo, isso traga consequências irreversíveis na diversidade biológica e na riqueza dos solos para produzir alimentos sadios e nutritivos.

Tais programas (como já sabem os camponeses na Ásia e na América Latina, onde a Revolução Verde foi aplicada desde os anos 1960) devastam as relações sociais, a própria comunidade, menosprezam o cuidado ancestral da vida e os saberes que o tornaram possível, desgastam em grau máximo a força e a diversidade das sementes nativas, e submetem a controles centralizados, alheios e ignorantes, os métodos de trabalho minucioso que sempre existiram e que agora são considerados “inúteis, ilegais, irrelevantes” ou inclusive “estúpidos”, “atos não autorizados”, fiscalizados por autoridades racistas que privilegiam as disposições de empresas, governos e “especialistas”.

Como se fosse pouco, as comunidades da África (como também na Ásia e agora na América Latina) também sofrem invasões, expropriações e expulsão de suas terras e territórios, em nome de uma grilagem legal de terras transnacional, corporativa, ou de fundo especulativo, que tem nos governos da região sistemas jurídicos “permissivos” que criminalizam e reprimem a inevitável resistência. Deve ficar claro que a mencionada Revolução Verde recebe o “apoio entusiástico” de fundações tão renomadas como a Rockefeller e a Bill e Melinda Gates, e que a grilagem legal de terras é respaldada pelo próprio Banco Mundial, claro, com alguns “princípios de investimento responsável” que procuram minimizar as possíveis “reações negativas” que tal apropriação agrária provoca.

A África, vista também como butim pelas mineradoras mesmo à custa de milhões de mortos, transformou-se num espelho onde devemos nos olhar para entender de antemão o que vem pela frente e assim nos prevenir contra os extrativistas, o sistema agroalimentar industrial mundial, os investidores e especuladores que grilam legalmente terras pelo Planeta, e os seus promotores em governos, fundações, setores acadêmicos e organismos internacionais.

E têm a ver com tudo. Às crises combinadas que o mundo sofre, devemos associar os numerosos esquemas de negócio dos quais a grilagem legal de terras é um dos mais decisivos, porque procura arrancar das comunidades locais, indígenas, camponesas, e inclusive das comunidades urbanas (que muitas, antes, foram camponesas), o controle de seus âmbitos comuns e de seus territórios, que são chaves para resistir aos outros ataques e para construir uma autonomia e uma soberania alimentar urgentes.

Tentam fazer isso com os esquemas de comércio de carbono (a venda de ar) que nos vendem como “mitigação da mudança climática”. Tentam com as reservas da biosfera, com a agricultura por contrato, com as associações entre camponeses e corporações que implicam dar a terra em garantia. Tentam com a certificação agrária que individualiza o que sempre foi comunal, com o registro de poços e mananciais, com os inventários de sementes e com o próprio cadastro ou registro de produtores, que definirá quem pode plantar e quem não pode.

Nada pode ser comum nem livre, por isso também se aprofundam os esquemas de “sanidade alimentar” para criminalizar as formas tradicionais e independentes (sem certificações diversas) de produzir alimentos, os mercados ao ar livre, as bancas de rua. São, enfim, todas aquelas leis prejudiciais que nos impedem a possibilidade de nos defendermos pela via legal.

Mas a resistência também não descansa. “A apropriação de terras é banditismo do Estado”, diz Ibrahim Coulibaly, membro da CNOP de Mali, na África Ocidental. “Temos que tratá-los como bandidos, porque procuram se apoderar ou tomar o único recurso que resta aos pobres e dá-lo aos que já têm demais, os que já são extremamente ricos. E isso é inaceitável”. Mamadou Cissokho, presidente honorário da Rede de Organizações Camponesas e de Produtores da África do Oeste (ROPPA) diz por sua vez: “pensamos que, se já não há Estado, se já não restam estruturas que nos apoiem, temos que nos cuidar sozinhos. Temos que continuar lutando para sobreviver, combater a grilagem legal de nossas próprias terras por mãos de países estrangeiros e empresas privadas. Devemos não ser ninguém em nossas terras? Se um investidor vem à nossa casa, deve gozar de absoluta segurança. Por que todos podem ter segurança e nós não? Por que os camponeses não têm nenhuma garantia?”

A Rede em Defesa do Milho no México também falou: “A soberania alimentar consistirá sempre no respeito ao direito coletivo de ter, guardar e trocar livremente sementes nativas sem a imposição de qualquer mecanismo de controle estatal, federal ou empresarial (seja certificação, inventário, banco de sementes, catálogo de variedades, patentes, denominações de origem ou direitos de obtentor). A soberania alimentar requer condições que permitam a produção livre e autônoma de alimentos em nível local, regional e nacional, o respeito a nossos territórios, ameaçados agora por projetos de mineração, hidrelétricos, de petróleo, de estradas, de serviços ambientais, reservas da biosfera, privatização dos lençóis freáticos; territórios ameaçados também pela industrialização e urbanização selvagem e pela política ambiental oficial de conservação sem gente”.

O que podem fazer as populações urbanas, as classes médias, diante dessa guerra que as empresas, os governos e os organismos internacionais deflagram contra os camponeses? Por enquanto, olhar-se no espelho da África e se olhar também no reflexo daqueles que cuidaram do mundo por milênios. E saber que a urgência por uma soberania alimentar, pela produção própria de alimentos, já está impactando as cidades e terminará por nos submeter a uma escravidão não imaginada se não unirmos bairros urbanos e comunidades camponesas, se não abrirmos um espaço nas cidades para nossa própria criatividade e para nosso próprio anseio de não depender daqueles que nos envenenam com comida a preços que ninguém pode pagar.

Para bajar la revista completa: Revista Biodiversidade Nro. 68

Temas: Biodiversidad, Soberanía alimentaria

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