‘Somos o povo árvore-passarinho’: conheça a aplicação dos saberes Xukuru na regeneração da terra

A relação entre povos originários, o sagrado e o modo de viver é tema central do Conversa Bem Viver desta segunda-feira (9) com Iran Neves Xukuru, agrônomo, extensionista do Instituto Agronômico de Pernambuco e integrante do coletivo de agricultura Jupago Kreka. Em tempos em que o conhecimento é frequentemente medido por títulos acadêmicos, Iran Neves Xukuru nos convida a olhar também para outras formas de sabedoria: aquelas enraizadas na terra, transmitidas oralmente e vividas em comunidade.
Membro do povo Xukuru da Serra do Ororubá, no Agreste de Pernambuco, Iran é referência na articulação entre saberes tradicionais e práticas contemporâneas de regeneração da terra. Na entrevista, ele compartilha sua visão sobre a Agricultura do Sagrado, a chamada causa dos passarinhos, a importância da troca de conhecimentos entre indígenas e não-indígenas e o papel da educação Xukuru como base de reconexão identitária e espiritual. O diálogo propõe uma escuta profunda da filosofia de um povo que compreende o mundo a partir do encantamento, da ancestralidade e da sutileza.
“Nós somos o povo árvore-passarinho. Não pensar na causa dos passarinhos seria um grande equívoco”, diz, destacando o papel crucial das aves no manejo da floresta. “Nos processos de restauração biocêntrica, não adianta só plantar árvores, aplicar as técnicas de regeneração. A gente precisa discutir a refaunação, por várias razões: para plantar e manter a floresta, mas também pelo encantamento.”
Iran também reflete sobre os desafios enfrentados na luta indígena, a construção coletiva de saberes no território e o diálogo necessário com outras formas de conhecimento, como o científico. “O planeta é um só, mas o mundo é uma construção humana. Nosso diálogo é para fortalecer os mundos”, explica sobre a relação entre a diversidade de povos.
Nos últimos anos, o líder indígena conquistou reconhecimento nacional e internacional por seu trabalho. Ele recebeu o Prêmio Dom Helder Câmara, concedido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), pelo trabalho com sistemas agrícolas tradicionais do Semiárido. Também foi premiado com o Lush Spring Prize, em Berlim, na Alemanha, que reconhece iniciativas de regeneração social e ambiental, e em homenagem pela defesa da Agricultura Sagrada Xukuru.
Outro reconhecimento foi o Prêmio Georg Marcgrave de Biodiversidade, do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), pelo trabalho de proteção da biodiversidade no território Xukuru. Além disso, o Coletivo Jupago Kreká, do qual faz parte, recebeu o Prêmio Guardiãs da Sociobiodiversidade, do Ministério do Meio Ambiente. As premiações reforçam a importância das práticas tradicionais indígenas na preservação do meio ambiente e na valorização cultural. No momento, ele concorre ao título honoris causa pelo Instituto Federal de Pernambuco (IFPE).
“Sobre os prêmios e reconhecimentos, é importante destacar que não são apenas conquistas individuais. É o povo Xukuru que está sendo reconhecido”, ressalta. “E ser reconhecido por essa missão, por essa decisão que tomamos de seguir a semente ancestral com o nome de passarinho, é muito significativo.”
Confira a entrevista na íntegra:
- O que podemos falar sobre regeneração da terra, levando em conta a Agricultura Sagrada Xukuru – ou Agricultura do Encantamento – e a Causa dos Passarinhos?
A Agricultura do Sagrado é a nossa base de conexão com o universo ancestral. A gente parte do princípio de que o roçado não é só a área, o chão para plantação de milho e feijão. É cultivar memórias, cultivar o ser ancestral que é a semente. É também uma agricultura sagrada, que promove a cultura do encantamento e da sutileza.
Se relacionar com a terra exige muita delicadeza, exige muita sutileza. E é essa sutileza que nos coloca nessa causa de defender a sabedoria ancestral e o encantamento dos pássaros. A gente não pode pensar em regenerar sem considerar isso. Eu não me vejo, por exemplo, velho, plantando floresta. Quem planta floresta e quem maneja a floresta são os passarinhos.
Nos processos de restauração biocêntrica, não adianta só plantar árvores, aplicar as técnicas de regeneração. A gente precisa discutir a refaunação, por várias razões: para plantar e manter a floresta, mas também pelo encantamento. Xukuru é o povo denominado pelo pássaro uru. “Xukuru” vem do pássaro uru, e “Ororubá” vem de uma árvore, a ubá. Então, nós somos o povo árvore-passarinho. Não pensar na causa dos passarinhos seria um grande equívoco.
A regeneração, a gente apresenta de forma poética como cosmonucleação regenerativa. Regeneramos o espaço partindo do princípio de que o chão, a topografia, é sagrada. Existem pontos de força que delimitam espaços de poderes. Isso imprime, na nossa prática e nas paisagens, uma cartografia do encantamento. Regeneramos não só para ter paisagens saudáveis, alimentares e medicinais, mas para termos uma casa cuidada, onde os espíritos e encantos de luz possam morar.
- Qual a importância da troca de conhecimentos e conversação permanente entre indígenas e não-indígenas? Óbvio que temos que levar em consideração que há uma diversidade de povos originários. Mas, ao mesmo tempo, há também uma invasão europeia e uma questão colonial que traça, de forma nítida, essa divisão entre indígenas e não-indígenas que temos hoje.
Acreditamos que isso é extremamente importante e necessário, primeiro, para desconstruir muitas visões equivocadas e distorcidas que existem sobre a questão indígena, sobre a temática indígena. Ainda há, por parte da sociedade, uma visão romântica — um imaginário do que seria o ser indígena — e também um total desconhecimento sobre a presença e resistência dos povos indígenas no Nordeste brasileiro, especialmente na região semiárida e na Caatinga.
Então, quando a gente traz ou recebe grupos de pesquisa, estudantes universitários, agricultores familiares e movimentos sociais dentro do nosso território, mostramos uma realidade que é vivida. Compartilhamos o viver dessa experiência. Mas há algo ainda mais importante e necessário: compartilhar e confluir com os saberes, com as lutas e com as resistências.
Ao mesmo tempo em que transmitimos, por meio da fala e da prática, nossa compreensão, nossa visão de mundo e nossos saberes, também aprendemos. E, nesse processo, ampliamos o leque de possibilidades de viver e de materializar sonhos e encantamentos junto com os outros.
Acho que isso é muito importante. E trago aqui um conceito extremamente potente do ponto de vista do encantamento, que é o conceito de confluência, apresentado por Nêgo Bispo. Quando a gente dialoga e promove esses diálogos de saberes, a gente conflui com os diferentes. E é justamente aí que está a magia, o encantamento das coisas: nessa diferença, nessa potencialidade, nessa diversidade.Isso é extremamente necessário. Isso nos nutre. Isso nos faz saudáveis.
- E por falar nessa nutrição, o que falar sobre a troca de conhecimentos também favorecendo essa religação ancestral e afirmação de identidade Xukuru no território?
É interessante pensar na perspectiva da retomada. Nós, povo Xukuru, estamos em constante retomada. Mas antes da retomada da terra, do espaço sagrado – esse espaço físico que chamamos de mãe, portal de acesso ao encantamento – houve a retomada da essência do ser. Ou seja, a retomada da identidade, da consciência do ser indígena. Xicão Xukuru foi – e ainda é – um professor nesse processo, ao trazer para nós essa ideia de retomada da essência do ser.
Vivemos vários processos de retomada: retomar a saúde, no sentido de rever, redescobrir, redesenhar, reconstruir, resignificar. E estamos hoje numa pegada muito intensa em retomar a agricultura – não uma agricultura do passado, mas uma agricultura ancestral, uma agricultura de princípios, de valores. Não se trata apenas da produção de milho e feijão, mas da produção de mundo. Isso exige revisar o uso e ocupação do território, rever práticas coloniais, vícios que ainda contaminam a agricultura tradicional: como o roçado de queima, a coivara, o monocultivo, o pasto, o boi. Não é esse o caminho para a floresta.
Estamos resgatando uma “agricultura meio de floresta”, ou o que chamamos de “cosmologia do roçado”. O roçado que produz mundo, que fortalece nossa identidade e nos reconecta à floresta. E é a partir dessa agricultura que dialogamos com outros movimentos. Não se trata apenas da comida, mas do modo de produzir o alimento, de cuidar dos espaços, da casa, da economia, das formas de ensinar e aprender.
O roçado é um grande reencontro. Ele é um cultivo de memória. Ao cultivar sementes ancestrais, trazemos à tona a memória coletiva das sementes tradicionais. A semente é um ser ancestral, que reativa em nós essa conexão. O roçado se torna um grande livro onde escrevemos nossas histórias – é corpo, território, corpo-memória que faz história.
Usamos essa prática como uma pedagogia de conexão com o chão, com uma didática de acolhimento. Recebemos as pessoas e, muitas vezes, elas se redescobrem. A semente adormecida da identidade é ativada, e elas se reconhecem enquanto indígenas. Já vimos isso acontecer: pessoas indígenas que ainda não haviam encontrado seu canto, e que aqui encontram um ninho, um espaço de germinação, contemplação e retorno à ancestralidade e à essência étnica.
- Uma imagem possível para representar o território Xukuru seria de um grande “laboratório de vida”, a partir desses conhecimentos, em conceito e prática. Ao visitar o espaço, a sensação é que temos exemplos não só para essa religação ancestral indígena, mas lições para o nosso planeta em desequilíbrios.
Por isso, somos guardiões. Não no sentido de esconder, mas de mostrar, preservar, zelar. Mostramos o encantamento de Ororubá, aquilo que é necessário compartilhar. É com base nessa inteligência sutil que praticamos o que chamamos de “pedagogia do passarinho”: uma racionalidade irradiada, corpo-mente como casa de espírito, essência ancestral habitando esse espírito.
Compartilhamos saberes a partir dessa potente fábrica produtora de mundos. E falamos em mundos no plural, porque o planeta é um só, mas os mundos são muitos, porque são construções humanas. Nosso diálogo busca fortalecer culturas, identidades, tradições e territorialidades. É da diversidade que vem a vida regenerativa da natureza, e os saberes também são diversos.
É importante acolher as pessoas e formar essa grande rede de solidariedade. Promovemos o diálogo entre a ciência acadêmica e a ciência dos invisíveis, dos encantados, dos passarinhos, das árvores, da mata de Ororubá. Não se trata de dizer que um saber vale mais que o outro. É sobre diálogo, complementaridade – não dependência. A ideia é se fortalecer mutuamente.
A medicina tradicional, por exemplo, parte do cuidado com o ambiente. Antes de colher uma planta medicinal como o Mulungu – conhecido por seu efeito antidepressivo e indutor do sono – é preciso cuidar da árvore, do solo, da relação entre o Mulungu e o Corrupião, o pássaro que se alimenta de sua flor e cuja coloração depende da saúde da planta. Há um sistema de cura, uma harmonia entre elementos da natureza, e isso é mágico. A universidade que estuda o princípio ativo do Mulungu, muitas vezes, desconhece essa relação encantada de medicina com o passarinho. Trazemos esses diálogos de saberes à vitrine, que são muitas vezes marginalizados, invisibilizados – para que sejam vistos, experimentados, compartilhados.
- A população do território desenvolve a Educação Xukuru, ao mesmo tempo em que mantém a educação acadêmica e científica. Como explicar essa agregação de conhecimentos?
O povo Xukuru compreende que temos um sistema próprio de educação. Nossa instituição educacional mais longeva é a natureza. Doralice, liderança da Aldeia Pé de Serra do Oiti, diz que “a natureza é nossa escola mais bonita”. E ela é, de fato, uma universidade da vida. Mas, por ser diversa, não pode ser “una”. O que soa bem através da poética, o toante da palavra seria “pluriversidade”.
Nessa escola viva, os conteúdos não estão paralisados em livros ou slides. Eles nos conduzem a caminhar, aprender, ensinar, regenerar. São conteúdos vivos e regenerativos. Nessa escola, há uma confusão mágica e saudável: os conteúdos se confundem com os mestres. O passarinho é conteúdo e também mestre. Lemos o canto do pássaro, o ninho, a orientação da entrada de sua casa. Fazemos previsões com base nas floradas, nos ciclos, no comportamento dos insetos. Aprendemos com a própria natureza.
Alguém, há muito tempo, aprendeu a plantar com os passarinhos. Alguém aprendeu sobre a lua a partir da observação das plantas, dos corpos, dos fenômenos naturais. Nessa escola, o saber é compartilhado entre humanos e não-humanos. A planta é a detentora do conhecimento sagrado – nós apenas estudamos com ela. Somos estudantes da água, do passarinho, da floresta.
Temos uma experiência concreta com o coletivo Jupago Kreká, na escola de vida chamada Inaru da Mata. Esse é o maior ecossistema encantado que inventamos. Lá, praticamos não só nosso sistema de medicina e cuidados em ancestralidade, mas nossa pedagogia de passarinho.
Com isso, conhecemos a cultura da floresta, a cosmopoética do regresso, do povo árvore e passarinho. Trabalhamos a arte local, a arte das localidades, através da agricultura do encantamento.
- Você e o povo Xukuru receberam alguns prêmios em reconhecimento desse trabalho. O que esses reconhecimentos representam, até mesmo no sentido desse diálogo constante na sociedade?
Sobre os prêmios e reconhecimentos, é importante destacar que não são apenas conquistas individuais. É o povo Xukuru que está sendo reconhecido. As instituições são formadas por pessoas em movimento – na agroecologia, na saúde, na justiça social, no direito à natureza e ao sagrado. E ser reconhecido por essa missão, por essa decisão que tomamos de seguir a semente ancestral com o nome de passarinho, é muito significativo.
Os prêmios são importantes também por nos incluir em uma grande rede de cooperação pelo bem comum. Os intercâmbios que eles proporcionam – como rodas de conversa e diálogos – são fundamentais. A parte financeira ajuda a concretizar sonhos, mas há também uma camada de proteção que esses prêmios oferecem. Trabalhar com meio ambiente é delicado, sensível. Não sabia que defender os passarinhos seria tão difícil.
Vivemos sob uma cultura de dominação, uma pedagogia do medo, que extrai ou suprime seres – como os pássaros, simplesmente porque cantam bonito. E isso é angustiante, porque sabemos que não há regeneração florestal sem eles. Eles são os maiores plantadores de floresta.
Por isso, os reconhecimentos ajudam a proteger, a dar visibilidade e a continuar. E seguimos plantando. A agricultura do encantamento é isso: cultivar o encanto ausente, constantemente. É esse o nosso caminho. E eu sonho com o dia em que possamos decretar a volta dos passarinhos. Esse será o maior prêmio de todos.
- Editado por: Martina Medina
Fonte: Brasil de Fato