Implicações ecológicas e políticas do etanol - uma contribuição ao debate

Idioma Portugués

"Ainda que seja discutível o benefício ambiental efetivo da mudança de fonte de energia para algo diferente das fontes fósseis, são gravíssimas as implicações políticas do que está sendo urdido... Jeb Bush faz parte de um bloco de poder que sabendo do significado estratégico da energia é capaz de fazer qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, para estabelecer o controle da fonte de energia que o possa sustentar"

Dr. Carlos Walter Porto Gonçalves[1]

O complexo de poder industrial-tecnológico-científico-midiático que se estrutura em torno da matriz energética fossilista que nos ameaça a todos com o aquecimento global parece ter descoberto uma nova panacéia – o etanol. Para além do simplismo de achar que existe uma única solução para um problema de tamanha complexidade, o debate em torno do aquecimento global está nos metendo numa armadilha maniqueísta Etanol versus Não-etanol. A questão, todavia, parece ser bem outra. Ainda que seja discutível o benefício ambiental efetivo da mudança de fonte de energia para algo diferente das fontes fósseis, são gravíssimas as implicações políticas do que está sendo urdido. A recente visita do ex-governador do Texas, Sr. Jeb Bush, não só por razões familiares ligado ao complexo político-industrial-tecnológico-científico-midiático do petróleo, põe a nu as razões bem longe do hommo ecologicus com que estão procurando se recobrir os que defendem o etanol como solução para o aquecimento global. Jeb Bush faz parte de um bloco de poder que sabendo do significado estratégico da energia é capaz de fazer qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, para estabelecer o controle da fonte de energia que o possa sustentar. Na atual configuração geopolítica não há país do mundo que tendo petróleo nas suas entranhas geológicas em proporções capazes de sustentar a matriz industrial hegemônica que não seja um país com instabilidade política ou sob permanente ameaça - o Oriente Médio, a Ásia Central, a Nigéria, a Colômbia, a Venezuela, a Bolívia. É esse mesmo setor constituído pelos Senhores da Guerra que hoje se apresenta como guardião da vida - os combustíveis sendo abençoados pelo prefixo Bio. Os exemplos invocados para dizer que o Brasil vai se tornar importante na nova configuração geopolítica em curso no mundo a partir dessa nova fonte de energia - como dizer que o Brasil vai ser a nova Arábia Saudita - só faz reforçar nossas análises e preocupações. A Arábia Saudita é o país de Osama Bin Laden que também já foi aliado desse mesmo bloco de poder político-industrial-tecnológico-científico-midiático do petróleo e sabe que ele não tem amigos e, sim, interesses.

A visita de Jeb Bush explicita uma aliança política de caráter estratégico das oligarquias dos agronegociantes brasileiros por meio da Associação Interamericana de Etanol que tem além do irmão do Presidente Bush entre seus dirigentes, o Sr. Roberto Rodrigues, ex-ministro da agricultura e presidente da Abag – Associação Brasileira de Agrobusiness (o nome é assim mesmo, em inglês). Mesmo tendo os modernos latifundiários das monoculturas experimentado, em 2004 e 2005, o lado amargo do complexo financeiro-tecnológico-industrial-midiático do agronegócio, quando os preços das commoditties caíram no mercado internacional, mas não as suas dívidas contraídas na compra de insumos e equipamentos, cujos credores eram basicamente a Monsanto, a Syngenta, a Bunge, uma nova e perigosa cartada vem sendo jogada não só aliando-se politicamente a um setor tão estratégico para o capitalismo global, mas, o que é mais grave, atando a vida dos brasileiros a esse setor político que, historicamente, já deu mostras suficientes do que é capaz.

De um ponto de vista estritamente nacional, é preciso ter em conta que a principal contribuição o Brasil ao efeito estufa não é a queima de combustíveis fósseis e na medida em que o etanol já faz parte de nossa matriz energética, sobretudo no transporte individual, a onda atual em torno do tema em nada alterará a situação do país para o aquecimento climático. Assim, o Brasil considerado isoladamente não vai diminuir a sua contribuição ao aquecimento global. Entretanto, a ampliação de áreas destinadas ao cultivo de cana desencadeia processos que haveremos de levar em consideração como o aumento do preço da terra com conseqüências não só econômicas, como sociais, geográficas e ecológicas. Afinal, o aumento do preço da terra não se restringirá à terra destinada à lavoura da cana, ao contrário, se espraiará pelo mercado de terras em geral. Com certeza haverá implicações nos custos de produção, inclusive, nos preços dos alimentos. Além disso, o preço da terra tende a ser maior nas áreas próximas aos grandes mercados ou de mais fácil acesso às vias de transporte e, assim, as atividades que tendem a exigir maiores extensões de terra tendem a buscar as regiões mais afastadas onde os preços são menores (lei de Von Thünen). No caso do México em que o etanol é obtido a partir do milho o resultado foi danoso para a população haja vista que a tortilla, base alimentar do povo mexicano, também é produzida a partir do milho. O mercado destinou o milho para a exportação para os Estados Unidos onde podia obter maiores lucros, como é da sua lógica, o que fez do país, historicamente auto-suficiente em milho, agora tenha que o importar e, assim, tenha visto os preços das tortillas dispararem até 40%, o que ensejou manifestações populares, inclusive com saques a supermercados. No Brasil tentam nos tranqüilizar dizendo que a cana não se destina exclusivamente à alimentação e que o país dispõe de amplas extensões de terra o que faria ser perfeitamente compatível a expansão do seu cultivo sem maiores danos. Afora a permanência do mito fundador do “em se plantando tudo dá” e que temos terras em abundância, é preciso considerar o que já vem se desenhando na geografia social brasileira recentemente com o avanço da cana, sobretudo sobre áreas antes destinadas à pecuária, como já vem ocorrendo no estado de São Paulo nos últimos três anos, e que nos coloca diante do problema de para onde levar milhares e até milhões de cabeças de gado que haverão de ser deslocados. Nos cerrados, área para onde vêm se expandindo nas últimas duas décadas os modernos latifúndios monocultores de exportação, as únicas áreas disponíveis são as unidades de conservação ambiental, as áreas indígenas, além das áreas de comunidades remanescentes de quilombolas e camponesas. Com certeza essas áreas e as populações que as ocupam vão viver nos próximos anos o impacto dessa nova onda moderno-colonizadora. Tudo indica que a Amazônia vai continuar cumprindo o papel de válvula de escape de um modelo de desenvolvimento que se reproduz ampliadamente há 500 anos trazendo riqueza para alguns, pobreza para muitos e devastação ambiental para todos! Não nos esqueçamos que o Brasil nos séculos XVI e XVII não exportava matéria prima, como se costuma dizer, mas exportava o produto manufaturado de maior circulação no mercado mundial de então, o açúcar. Os nossos engenhos de açúcar eram o que havia de mais moderno no mundo. Nós já somos modernos há 500 anos! Dados recentes revelam que o próprio governo, entre 2003 e 2005, realizou na Amazônia, a título de “reforma agrária”, 66,5% dos assentamentos rurais do país reproduzindo, assim, com políticas públicas a mesma lógica “espontânea” dos grileiros, madeireiros, pecuaristas e agronegociantes de avançar sobre a fronteira agrícola. A produção de etanol tende, assim, a pressionar os processos que já vêm causando a devastação da Amazônia que, paradoxalmente, tem sido a maior contribuição do Brasil para o aquecimento global, para não falar da perda de diversidade biológica e cultural. O resultado da contribuição do Brasil com a expansão do etanol pode, assim, ser bem o contrário do que vem sendo propagado.

É preciso se levar em conta que a produção de cana de açúcar e de etanol consome combustíveis fósseis e, apesar de o balanço energético da cana ser melhor via a vis o milho, a soja, o girassol e outros, não devemos esquecer que o aumento de sua produção também aumenta o consumo de combustíveis fósseis, sobretudo quando avança sobre áreas antes destinadas à pecuária ou de florestas ou de cerrados ou savanas. A mistura de etanol à gasolina que poderia diminuir, por outro lado, a demanda de combustíveis fósseis e, assim, compensar o aumento que haveria com a expansão do cultivo da cana e do próprio etanol, pode simplesmente ser anulada com um aumento correspondente da frota de automóveis, o que está no horizonte dos que continuam a confundir a melhoria do bem estar da população com o aumento do PIB.

Se se quer fazer um debate sério sobre alternativas eficazes para combater o aquecimento global estamos mirando, com o etanol, na direção errada, ou seja, continuamos buscando respostas para uma demanda que em si mesma não é questionada. A pergunta é bem outra, qual seja, por que continuamos a associar progresso humano com aumento do consumo per capita de energia? Por que continuamos a buscar maior produção de energia e não melhor eficiência energética com aparelhos e máquinas que consumam menos energia, como as lâmpadas fluorescentes, o que por si só geraria melhor renda para as famílias pobres, mesmo que elas continuassem com a mesma renda, simplesmente com a diminuição do consumo com equipamentos mais eficientes! É o que podemos ler no estudo realizado sob coordenação de pesquisadores da Universidade de Campinas e do International Energy Initiative intitulado “Agenda Elétrica Sustentável 2020” que, baseado em políticas ambiciosas de conservação (economia) de eletricidade e de expansão nas novas fontes renováveis de energia (dos ventos, solar, da biomassa e das pequenas hidrelétricas), revela ser possível, até 2020, uma economia de R$ 33 bilhões para os consumidores com a diminuição de até 38% na demanda de eletricidade do país, o que equivaleria a seis hidrelétricas de Itaipu, criando ainda oito milhões de empregos[2].

Além disso, por que não apoiar com incentivos e isenções fiscais os produtos que tenham uma longevidade maior do que os já existentes, o que implicaria menos consumo de matérias primas e energia? Aliás, a durabilidade deveria ser a condição sine qua non para que qualquer produto pudesse ter o selo de ecológico.

Enfim, o insucesso das políticas estadunidenses para controlar as fontes fósseis de energia no mundo é que está levando a que estes mesmos setores busquem uma alternativa que lhes dê maior segurança energética. Toda a questão passa a ser se essa segurança energética significa segurança e bem estar para a população dos países que voluntária ou involuntariamente se vêem envolvidos nesse complexo de poder. Que Bagdá ou Kabul não seja o nosso destino.

Notas

[1] Doutor em Geografia e Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Membro do Grupo Hegemonia e Emancipações de Clacso. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000). Membro do Grupo de Assessores do Mestrado em Educação Ambiental da Universidade Autônoma da Cidade do México. Ganhador do Prêmio Chico Mendes em Ciência e Tecnologia em 2004. É autor de diversos artigos e livros publicados em revistas científicas nacionais e internacionais, em que se destacam: - “ Geo-grafías: movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentablidad”, ed. Siglo XXI, México, 2001; “ Amazônia, Amazônias”, ed. Contexto, São Paulo, 2001; “ Geografando – nos varadouros do mundo”, edições Ibama, Brasília, 2004; “ O desafio ambiental”, Ed. Record, Rio de Janeiro, 2004; “ A globalização da natureza e a natureza da globalização”, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006.

[2] Ver o documento aquí.

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