Revista Biodiversidade, Sustento e Culturas 54 em Português

A foto de nossa capa parece não pertencer à revista Biodiversidade. Remete à devastação, o que é provocado por um dos tantos monocultivos industriais que hoje se expandem por milhões de hectares, para produzir combustíveis para automóveis. Mas a foto, na realidade, mostra um enorme sinal de esperança: mostra uma das muitas formas de rejeição e resistência que comunidades indígenas e camponesas do mundo inteiro estão começando a empreender para enfrentar a agressão que os chamados biocombustíveis ou agrocombustíveis representam.

O que se vê é a destruição de uma plantação de dendê por parte de uma comunidade camponesa, com a finalidade de recuperar sua terra e seu território e continuar exercendo o direito de cultivá-la e de produzir alimentos de seu próprio jeito, e não na forma das grandes indústrias.

Esses combustíveis, obtidos pelo processamento industrial de materiais vegetais provenientes de milho, de cana-de-açúcar, de soja ou de dendê, têm sido chamados de biocombustíveis, por serem de origem biológica. São apresentados como ecologicamente benéficos e “sustentáveis” e como a principal arma para combater o aquecimento da Terra. Mas a sua expansão converteu-se em uma onda gigantesca de novas conquistas territoriais e econômicas por parte das grandes corporações transnacionais, quase sempre aliadas com os grandes proprietários de terra de muitos países. A Via Campesina e outros movimentos sociais decidiram chamá-los de “agrocombustíveis” para ressaltar o fato de que competem seriamente pela terra e pela água necessárias para produzir alimentos.

 Sem dúvida, acreditamos que ainda nos faltam expressões adequadas para mostrar tudo o que está ocorrendo. Os povos do mundo inteiro têm, através da história, obtido combustível de materiais biológicos, como a lenha, a turfa e o esterco. Enquanto o uso era feito de forma moderada, em pequeníssima escala, mediante técnicas de manejo respeitosas e diversificadas, e para satisfazer necessidades que não eram luxo, tais combustíveis atenderam a seu propósito e foram ecologicamente adequados. O que se vê hoje são milhões de hectares de monocultivos que não serão utilizados diretamente, como a lenha ou a turfa, mas que serão processados industrialmente consumindo milhões de litros de petróleo e de água. São combustíveis para alimentar os quase 800 milhões de automóveis que estão em mãos de menos de dez por cento da população mundial, e para que seja
 possível continuar a expansão industrial, sobretudo a automotriz e a petrolífera, mas também a indústria de agrotóxicos, a de biotecnologia e a de sementes. Portanto, o que define os novos combustíveis é o seu caráter agroindustrial, seu vínculo indissolúvel com os grandes conglomerados transnacionais e com um sistema de produção destinado a satisfazer demandas suntuárias, sem importar que no caminho destrua as bases da alimentação e o sustento da imensa maioria dos seres humanos.
 

D estinamos este número de Biodiversidade, na íntegra, para discutir os muitos impactos que a produção agroindustrial de combustíveis terá sobre a Terra e sobre todos os seus habitantes. O que é possível prever, como é discutido nos diferentes artigos, é: a alta dos preços dos alimentos; a expansão acelerada e incontrolada de variedades e de plantações transgênicas; a contaminação massiva de territórios com agrotóxicos; o uso de nanotecnologias na agricultura; o controle cada vez mais profundo e monopólico da alimentação por parte de umas poucas transnacionais; o controle e a apropriação de mais territórios indígenas e de camponeses por parte dos mesmos conglomerados e por parte dos grandes proprietários regionais de terra que agora se globalizam; a expulsão do campo; a escassez e a contaminação crescentes da água; e a expansão em grande escala dos processos de destruição dos ecossistemas que têm um papel central no ciclo de carbono do planeta. Tudo isso, sem remediar, nem superficialmente e nem em profundidade, os processos de mudanças climáticas e de aquecimento global; eles não só não melhoram como pioram e podem se tornar irreversíveis.

Os combustíveis agroindustriais são um negócio. Um negócio ilegítimo que se aproveita da crise para fazer mais dinheiro. Acreditamos ser importante olhar cada um desses aspectos com cuidado. A história dos agrocombustíveis ou combustíveis agroindustriais está longe de acabar.

Será tarefa de comunidades, coletividades, associações e movimentos sociais enfrentarmos a eles e resistirmos à sua expansão. Para isso, necessitamos olhar as muitas interconexões existentes entre sua expansão, o discurso ideológico que é utilizado para promovê-los e as muitas formas de controle tecnológico, social e econômico impostos através deles.

O grande desafio pendente, em nível geral, é o redesenho dos modelos de consumo energético dos setores mais ricos do planeta que fazem com que qualquer projeto vital seja inviabilizado e conduzam ao aprofundamento da crise que hoje vivemos. É, também, imprescindível não perder de vista as bases da resistência: a capacidade para produzir alimentos soberanamente, a permanência no campo, o controle e o cuidado de seus territórios por parte dos distintos povos, o impulso a sistemas de geração e utilização de energia efetivamente sustentáveis que respondam pelas necessidades reais, e não à necessidade de umas poucas megaempresas que pretendem fazer aumentar seus lucros sem qualquer freio.

Esperamos, com este número, contribuir com os processos de reflexão, sabendo que esses serão múltiplos e estão apenas começando.

Biodiversidade

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Editorial

Paremos com a febre dos agrocombustíveis!

 O poder das corporações:

Os agrocombustíveis e a expansão do agronegócio

A conexão óleo de dendê-biodiesel

Controle corporativo, a seqüela: os cultivos energéticos

 alternativos e a próxima geração de agrocombustíveis

A conexão cana-de-açúcar/etanol

A conexão da soja na América do Sul

Nova usurpação na África

Malásia e Indonésia: uma usurpação irreversível?

Dendê/Colômbia: paramilitarismo sustentável?

 Combustíveis “ecológicos”

As crises propiciam os negócios

 Os agrocombustíveis não resolvem nada

Os Estados Unidos são viciados em petróleo

 Uma panorâmica e muitas vistas

 Agrocombustíveis:

Sintomas de uma próxima combustão globalizada

 Ataques, políticas, resistência, relatos

Perfil de um cultivo violento | Des-desenvolvimento: proposta radical a partir do Sul | Os agrocombustíveis são rechaçados na Bolívia | Bionegócios e megaprojetos na América Latina | Prêmio Nobel critica os combustíveis agroindustriais |

A segunda geração é tão ou mais nociva | Um apelo da África por uma moratória no desenvolvimento de agrocombustíveis | Nem tudo é dito

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Temas: Agrocombustibles

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