A batalha de Rostock e os dias que virão

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As manifestações contrárias vão se estender por toda esta semana, sobretudo a partir do dia 6 próximo, quarta-feira, quando começa a chegar a maior parte das delegações estrangeiras e seus chefes de Estado, inclusive Lula

No dia 2 de junho, sábado, houve a grande manifestação na cidade de Rostock, no norte da Alemanha, contra a próxima reunião do G-8 e sua agenda na vizinha Heiligendamm, na costa do mar Báltico. O G-8 se reúne uma vez por ano, num país membro que preside o encontro, e desde algum tempo tem convidados especiais. Neste ano estarão presentes pelo menos Brasil, China, Índia e África do Sul, além dos membros, Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Canadá, Japão e Rússia. Na agenda, o tema geral é “Crescimento e Responsabilidade“.

As manifestações contrárias vão se estender por toda esta semana, sobretudo a partir do dia 6 próximo, quarta-feira, quando começa a chegar a maior parte das delegações estrangeiras e seus chefes de Estado. Os manifestantes prevêem até o fechamento da estrada que liga o aeroporto de Rostock, o mais próximo da cidade-balneário que sedia o encontro, e que está cercada por uma tela com arame farpado com 12 km de extensäo. Dizem as autoridades alemãs que permitirão manifestações até a 200 metros da cerca. Mas pelo que aconteceu em Rostock neste sábado, é dificil de prever o que de fato sucederá.

Rostock é uma cidade na antiga Alemanha Oriental. Tem uma universidade famosa, um clima temperado com noites frias, mesmo nesta primavera. É uma das cidades “hanseáticas“, da “Hansa“, a liga de cidades e companhias portuárias do norte alemão, entre elas, além de Rostock, Hamburgo e Bremen.

O clima político na cidade, antecedendo a chegada dos manifestantes, era de grande ansiedade. Comerciantes queriam fechar as portas. Temia-se uma “invasäo dos bárbaros“: cem mil pessoas eram aguardadas.

Chegar em Rostock tinha um ar de aventura. Na ida de trem, de Berlim para lá, à medida que se aproximava o destino, apareciam estações literalmente tomadas por policiais e cães pastores. Um clima de estado de sítio pairava no ar. Nas semanas que antecederam o dia 2 de junho, uma série de acontecimentos violentos anteciparam o que poderia ser um dia de confrontos, e o resultado, apesar do sucesso da manifestação, que foi ela mesma pacífica, não foi outro. Nesses dias antes do dia 2, a polícia alemã realizou uma série das chamadas “razzias“ contra a sede de organizações de esquerda ou altermundistas, provocando confrontos em várias cidades, como Berlim, Hamburgo e Bremen. Em Hamburgo, houve o maior confronto, envolvendo 4 mil manifestantes na semana passada. Além disso, entre as medidas postas em prática, uma chamou mais a atenção: a polícia passou a coletar “amostras olfativas“, peças de roupa, estofados e outras que poderiam levar à identificação de manifestantes pelo cheiro, com o uso de cães treinados para esse tipo de reconhecimento durante as manifestações. O método, usado na antiga Alemanha Oriental, provocou revolta e perplexidade, até mesmo no interior do governo conservador liderado pela primeira-ministra democrata cristã, Angela Merkel.

Duramente criticados, os “falcões“ da repressão e do controle, liderados pelo ministro do Interior, Wolfgang Schäuble, recuaram de suas posições mais ostensivas, admitindo as manifestações e até elogiando organizações comprometidas com elas, como a Attac.
De fato, a Attac é a organizacäo mais em evidência nesta campanha anti-G8 e sua contra sua agenda voltada para as benesses do mercado. Ao se avizinhar o dia 2, apesar das severas medidas de seguranca na região, a manifestação prevista se encaminhava para uma festa e uma vitória da democracia.

Esta foi a sensação predominante durante a maior parte da marcha de protesto. Os manifestantes se reuniram em dois pontos da cidade, o Shutower Kreuz, na Hamburger Straße, local preferido pelos militantes de organizações, e o Hauptbanhof, a estação ferroviária, onde predominavam os manifestantes individuais. Por volta das 13 horas, depois de vários discursos, e debaixo de uma chuvinha fria e persistente, as marchas entraram em ação. As forcas policiais, concentradas aos milhares, mantinham uma presença discreta, à distância.

Na marcha, predominavam os protestos muito criativos, com bonecos engraçados, caricaturas dos governantes do G-8, palavras de ordem contra o consumismo, o desregramento climático provocado pela ação predatória da economia governada pelos mercados, outras em favor do socialismo, da democracia, contra a fome, denunciando a insensibilidade dos governos em tela, tudo muito ao ritmo e ao costume das marchas dos fóruns sociais mundiais em Porto Alegre, Mumbai, Caracas e seus desdobramentos em outras cidades do globo.

Mais tarde, os organizadores falariam em 80 mil manifestantes. É possível, pois a marcha tinha a proporção daquela de 2003, em Porto Alegre, contra a invasão do Iraque, quando da abertura da 3ª edição do Fórum Social Mundial, que reuniu 100 mil manifestantes. O número foi desprezado pela imprensa mais conservadora. O jornal Bild, porta-voz conservador, estimou os manifestantes em 25 mil, o que é um disparate, pois só num dos três acampamentos da juventude em Rostock há 27 mil jovens.

Um detalhe chamou a atenção deste enviado especial. A grande maioria dos manifestantes era de jovens, e a grande maioria seguinte era visivelmente, como este que vos escreve, de veteranos de 1968. Faltava, visivelmente, embora se notassem as excecões, a geracão intermediária, os da casa dos 40 e dos 50... Curioso caso de união entre avós e netos, saltando sobre o ceticismo dos país...

A manifestação convergiu para um gélido e chuvoso descampado no cais do porto, à beira do rio, onde haveria show de música e barracas com comidas, churrasquinhos, água, refrigerantes e cerveja. No caminho, houve alguns poucos incidentes, como o apedrejamento de bancos, identificados como os inimigos número 1 dos altermundistas. Os autores desse tipo de manifestação eram um grupo de jovens, estimados depois na imprensa e no rádio, em cerca de 3 mil, vestidos de preto, alguns poucos com máscaras a la ninja, que se identificam como os Chaoten, os Caóticos, e tambem são chamados de Os Autônomos. Não tem proposta política definida, nem este parece ser seu objetivo. Seu objetivo mesmo é o confronto com a polícia, e segundo informes da imprensa, congregam jovens de outros países que se deslocam especialmente para essas ocasiões. São citados especialmente o Japão, a Rússia e a Bulgária. Confesso que, embora eu estivesse por vezes muito próximo deles, não consegui identificar uma profusão de rostos orientais.

A chegada da manifestação ao local do show de encerramento foi triunfal, pois, apesar dos poucos incidentes, a marcha desmentira, até ali, os que viam seguidamente nela uma porta aberta, ou se quiserem os mais pós-modernos, um link para o que vinham falando insistentemente como o risco do terrorismo. Começaram as músicas, mas também – e é dificial dizer como ou quem comecou – a pancadaria.

Páginas de esquerda, como o Indymedia, apontam atitudes provocativas por parte da polícia. Nao as testemunhei, pelo menos antes da pancadaria começar, embora depois e ao longo da noite eu pudesse presenciar algumas. Jornais mais conservadores sublinham a atitude sempre provocativa dos Chaoten, o que faz parte já da tradição dessas manifestações em que eles se misturam. Posteriormente, pela televisão, porta-voz do Attac declarou que sua organização não os apóia, nem seus métodos.

A pancadaria foi prolongada, e num estilo completamente diferente daquele a que nós, brasileiros e latino-americanos em geral, estamos acostumados. A polícia usava cassetetes, gás lacrimogênio, cães, escudos, e investia fazendo os Chaoten recuarem. Não havia sinais nem de gás pimenta, nem de balas de borracha. A seguir, os Chaoten avançavam, com pedradas, fogos de artifício e sarrafos de madeira. Depois, vieram os jatos d´água por parte dos policiais, cujo poder de dissuasão é enorme, já que derrubam pessoas no chão e, no clima frio daquela tarde primaveril e chuvosa, uma pessoa encharcada é forçada a se retirar. Dois carros foram incendiados, e a pancadaria sobrou também para quem não era Chaoten, mas por ali estava para manifestar seu protesto de outro modo. Os confrontos se estenderam até as 20 horas. No dia seguinte o saldo apresentado era de cerca de 1000 feridos, 450 deles policiais, sendo dez em estado grave, e cerca de 500 detenções ou apreensões de documentos.

O clima de confronto e insegurança se estendeu pela noite. Da parte dos Chaoten houve tentativas de fazer barricadas no centro da cidade, desfeitas pela polícia. Da parte dos policiais, este escriba pode testemunhar algumas atitudes ininteligíveis, pelo menos para mim, acostumado ao ritmo das pauleiras latinas em que tudo se encaminha ou mesmo se decide em questão de minutos.

Na Dobleraner Platz, em frente a simpática pensão onde ficava meu quartel general e era a base de minhas operações, um grupo de jovens, alguns meio altos, cantava em frente a um restaurante turco, um kebab, como se diz por aqui. Alguns curiosos, do outro lado da calçada, apreciavam aquela manifestação mais de ruído, se tanto, do que de protesto. De repente um contingente de policiais se aproximou, isolou os jovens e os fregueses do restaurante, mais os de uma confeitaria de rosquinhas ao lado, fazendo inclusive um cordão de isolamento de carros em torno deles, parachoque contra parachoque, o que criou um clima de gafieira celebre no Brasil, aquele em que quem esta fora não entra, quem esta dentro não sai. Essa situação esdrúxula, para dizer o mínimo, durou horas, com mais carros do que jovens, sem falar nas dezenas de policiais em formação de combate. Depois, na rua ao lado, um outro bando de jovens começou a dançar no asfalto, bloqueando a passagem com uma barricada musical. Imediatamente houve um cerco policial enorme, de um lado e de outro do cordão que tinha mais de carnavalesco, ainda que fora de ritmo, do que de protesto. Depois de algum tempo de exibição do aparato, os policiais de retiraram e os jovens continuaram o fandango. É provavel, vou dar o beneficio da dúvida, que os policiais tivessem obtido algum tipo de compromisso de que o tráfego não seria bloqueado em caso de necessidade ou algo assim. Mas em ambos os casos ficou evidente que aquela exibição do aparato podia levar a um confronto grave, pois qualquer provocador que por ali passasse podia arremessar uma pedra sobre aquele equilíbrio instável, com conseqüências imprevisíveis. Felizmente as únicas provocações realizadas vieram da parte de um rapaz vestido como os Chaoten, mas de excelente humor, que gritava, sob os risos gerais, “liberdade para as rosquinhas!“, “rosquinhas para todos!“, “liberem o kebab!“ e coisas assim.

O resultado desses desenvolvimentos foram, além de uma ofensiva conservadora na imprensa, denunciando com maior ou menor veemência os manifestantes, ainda que a maioria das reportagens distinga os Chaoten dos demais, a recuperação da iniciativa política por parte do governo e seus falcões, e uma série de críticas à ação da polícia, vista como permissiva demais. Entretanto, para os próximos dias, porta-vozes da polícia disseram que não vão mudar de tática. Enquanto isso, os manifestantes mantêm sua programação, que ameaça bloquear estradas e o acesso a Heiligendamm. Como Napoleão deve ter dito alguma vez, aguardemos os acontecimentos.

Carta Maior, Brasil, 4-06-07

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