Brasil: disputa paralisa patentes de medicamentos

Idioma Portugués
País Brasil

A concessão de mais de cem pedidos de patentes que envolvem a produção de remédios a partir de recursos genéticos como veneno de cobra e babosa está na dependência da solução de uma disputa envolvendo diferentes órgãos do governo

Desentendimentos entre o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) comprometeram a produção de novos medicamentos a base de composto natural para tratamento de diabete e câncer, tratamento alternativo anti-hiv (AIDS), medicamento fitoterápico para o mal de Alzheimer, uso de plantas na produção de remédios para cólicas e cálculos renais, fava para cura de veneno de cobra, processo para obtenção de cristais de veneno de cobras, substâncias a base de veneno de escorpião, medicações a partir de babosa até pomada de uso curativo feita com repolho.

Hoje, dos quase 120 mil pedidos em análise no INPI, pelo menos 110 estão nessa relação, segundo um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA). Mas, pressões do próprio governo, em especial do Tribunal de Contas da União (TCU), podem pôr fim a essa disputa e acelerar a análise desses processos.

Até o final do ano, o Brasil poderá exigir a comprovação de acesso a recursos naturais ou a conhecimentos tradicionais para concessão desses registros. Além de demonstrar que o novo produto foi obtido de forma legal, através da celebração de contratos entre os participantes como, por exemplo, indígenas e gestores de reservas ambientais, o solicitante terá de repartir com eles os benefícios obtidos com o novo produto ou processo, o que irá exigir mudanças na atuação de empresas que fazem bioprospecção, comum nos setores farmacêuticos e de cosméticos.

Para ter acesso a esses recursos as empresas precisam receber autorização do Conselho de Recursos Genéticos do Ministério do Meio Ambiente (CGEN- /MMA). Esse é apenas o primeiro passo de um longo caminho até a patente ser concedida pelo INPI.

A divergência entre os dois órgãos começou há cinco anos e é travada em torno da aplicação do artigo 31 da Medida Provisória 2186-16/2001 que exige a informação da origem do material genético ou do conhecimento tradicional utilizado no processo ou produto sobre o qual se requer a concessão de patente. O INPI não cumpre a determinação por considerar que o artigo 31 não é auto-executável, ou seja, deveria ter sido regulamentado pelo poder executivo. Para o MMA, a concessão do direito de propriedade industrial ficou condicionada ao cumprimento da MP.

A Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI) defende a normatização dos artigos da MP 2186, em especial do artigo 31. O coordenador da Comissão de Biotecnologia da Associação, Gabriel di Blasi, diz que o Brasil foi pioneiro ao editar a medida provisória, mas um assunto complexo como a identificação de origem de material genético e a repartição de benefícios deveria ter sido tratado em Lei. “Nesses seis anos, praticamente a discussão não evoluiu, o que gerou um vácuo legal e muita insegurança. Outro problema é que esse é um tema muito recente, o que também gera muita divergência”, analisa.

Gabriel di Blasi acredita que seja possível, em curto prazo, um consenso entre o MMA e o INPI. Mas, ainda que haja a regulamentação do artigo, várias questões importantes que antecedem a concessão da patente devem ficar pendentes, como a forma efetiva de repartição dos benefícios, proteção do conhecimento tradicional e mesmo a definição da origem correta do material genético.

“Existem conhecimentos que são de uso público, difundidos em várias comunidades e regiões do País. O mesmo se aplica a localização de substâncias que podem ser encontradas de Norte a Sul. Essas questões ainda não foram respondidas”, disse. Hoje, segundo ele, não se trata apenas de regulamentar ou não artigos da MP, é preciso evoluir e definir principalmente como se dará essa autorização de acesso. “Essa declaração só é apresentada no momento do pedido de concessão de patente, mas, até que isso ocorra as empresas já realizaram a bioprospecção, investiram em pesquisa, desenvolveram um produto, para somente então ingressar com um pedido de patente”, disse. Outro problema, segundo ele, é que não basta apenas normatizar, é preciso criar a estrutura para que, de forma rápida, as empresas possam ingressar com uma pedido no CGEN e iniciar o trabalho. “Não se pode esperar que um investidor fique mais de um ano aguardando autorização para começar uma pesquisa”, acrescenta. Ele defende clareza nas normas e procedimentos e também ampliação da fiscalização. “Não basta normatizar, é preciso que haja fiscalização para que a lei seja cumprida. Sem isso, não adianta nada dizer que a biopirataria está aumentando no País”, acrescenta.

A mudança no processo de concessão desse tipo específico de patente está sendo discutida em várias esferas do governo e poderá ser implementada ainda esse ano. A medida também eliminaria uma distorção entre a política interna de registro de patente e as alegações do governo brasileiro, que através do Ministério das Relações Exteriores (MRE) pressiona, junto com outros países megadiversos, que reúnem as nações com as maiores reservas genéticas do mundo, a Organização Mundial do Comércio (OMC).

A intenção é adequar o Tratado sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) aos dispositivos da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), da qual o Brasil é signatário, e que exige a comprovação de legalidade de acesso e, principalmente, estabelece mecanismos para a repartição dos benefícios obtidos com as patentes.

Esse é o primeiro passo para que se institua no País um regime efetivo de compensação pelo uso dos recursos naturais. A discussão vem sendo travada no País desde 2001, mas havia perdido força até que recentemente o Tribunal de Contas da União (TCU) solicitou a Advocacia Geral (AGU) um parecer consolidando o entendimento sobre o tema que gera divergências entre o INPI e o MMA.

A assessoria da Advocacia informa que já recebeu o parecer do TCU, mas ainda não concluiu a avaliação, que não tem prazo para ser encerrada.

No relatório, além de solicitar a pacificação do entendimento a respeito da aplicação da norma, o Tribunal alerta para os prejuízos que podem ser gerados ao País por conta dessa indefinição como, por exemplo, o registro de patentes de substâncias nativas do Brasil sem o devido recolhimento de royalties, além do estímulo à biopirataria.
O diretor do Departamento do Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente, Eduardo Vélez Martin, acredita que esse impasse está próximo de uma solução.

Há mais de um mês, foi criado no Conselho um grupo de trabalho com participação de representantes do MMA e INPI para equacionar a divergência. O secretário acredita que, no máximo, até o fim do ano, essa situação estará solucionada.

DCI, Brasil, 22-9-06

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