Brasil: exploração em terras indígenas "atropela" Estatuto dos Povos

Idioma Portugués
País Brasil

Participação dos índios nos dividendos da atividade mineral, garantida pela Constituição, é questionada por projeto de Romero Jucá (PMDB-RR)

Indígenas querem que questão seja regulamentada pelos Estatuto dos Povos Indígenas.

Na próxima semana, faz 12 anos que o relatório final da proposta de Estatuto dos Povos Indígenas aguarda votação na mesa da Câmara dos Deputados. Às vésperas deste triste aniversário, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara realizou, nesta terça (28), um seminário para discutir a agenda legislativa da questão indígena para o próximo ano. O Estatuto, grande pauta no plano legal destas populações, no entanto, ficou em segundo plano e deu lugar ao que promete ser a principal discussão no Congresso no próximo ano: as regras para exploração de recursos minerais e hídricos em terras indígenas (TIs). O tema é polêmico e envolve os setores de mineração e produção de energia, considerados estratégicos na recorrente discussão sobre a agenda de “destravamento” do país levantada pelo presidente Lula nas últimas semanas.

O Artigo 231 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma série de critérios para a exploração de recursos naturais nas áreas ocupadas por indígenas. Segundo a Constituição, “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.

Este último termo, “na forma de lei”, indica que o uso dos recursos só poderia acontecer se regulamentado por uma norma específica. A primeira proposta legislativa a tratar do tema foi o Estatuto dos Povos Indígenas. A proposição prevê que as comunidades indígenas possam receber recursos da lavra a partir de um plano de uso que deve ser aprovado pela Funai. O texto também condiciona a aprovação da exploração de recursos ao Congresso Nacional e exige licenciamento ambiental para lavra.

O tema ganhou cara própria dentro do Congresso com o Projeto de Lei 1610/96, do Senador Romero Jucá (PMDB-RR). A proposta do senador atende às demandas das empresas mineradoras, retirando a influência da Funai sobre o plano de uso dos recursos advindos da repartição dos lucros obtidos da exploração, estipulando que o Congresso apenas chancele a decisão administrativa sobre a exploração, e acabando com a exigência do licenciamento ambiental para lavra. Uma das principais polêmicas, tanto da proposta de estatuto quanto do PL de Romero Jucá, é a manutenção do chamado princípio de prioridade para as empresas que entraram com pedido de exploração de recursos minerais antes da aprovação da Constituição, em 1988.

O uso deste expediente foi contestado por Raul Teles, advogado do Instituto Socioambiental (ISA). Ele questionou os argumentos de que a mudança do princípio de prioridade geraria uma onda de questionamentos judiciais contra o governo pelo grande número de autorizações concedidas pré-1988. “Isso seria tornar exceção uma regra, não há tantos direitos adquiridos como se alega”, disse. Segundo Teles, foram apresentados 1800 pedidos antes de 1988 e a aprovação da medida tal como propõem os dois textos legais garantiria o direito para todos estes pleitos, evitando a nova regra de licitação pública. O uso deste processo de seleção, por outro lado, geraria poucas contestações uma vez que somente quatro autorizações de exploração mineral em TIs foram concedidos no período pré-1988.

A posição foi partilhada pelo diretor-geral do Departamento Nacional de Produção Mineral, Miguel Nery, que anunciou a entrada do governo na briga com a apresentação de uma proposta de substitutivo no Congresso. O anteprojeto está nos últimos acertos no Ministério da Justiça e seguirá para a Casa Civil nas próximas semanas para em seguida ser enviado ao parlamento. Segundo Nery, a proposta acaba com o princípio da prioridade e adota o procedimento licitatório, que seria iniciado a partir da provocação de uma empresa interessada nos recursos de uma área indígena. O texto do governo prevê a análise do processo administrativo pelos órgãos de governo e mantém o poder do Congresso de aprovar a decisão do Executivo.

“É possível hoje fazermos entendimento. A lei tem que definir e, em assim definindo, teremos condições de deferir requerimentos tanto pós quanto antes de 1988”, afirmou para o senador Romero Jucá. O senador peemdebista se mostrou aberto a negociar alguns pontos do projeto e afirmou ser urgente a aprovação da legislação nesta área para evitar as disputas judiciais entre comunidades e empresas interessadas em recursos minerais em suas terras.

Jucá também defendeu que o anteprojeto do governo seja apresentado como substitutivo de seu PL para evitar toda uma nova tramitação. O membro do governo não se comprometeu argumentando que a estratégia de tramitação das matérias de iniciativa do governo é competência da Casa Civil. Na avaliação de Cláudio Beirão, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), não basta resolver o problema do princípio de prioridade. É preciso que a nova legislação garanta a participação das comunidades indígenas no processo administrativo em um processo que evite a pressão das mineradoras, que hoje é fundamental para garantir a anuência das comunidades a exploração de seus recursos.

Recursos hídricos

Em sua exposição, Romero Jucá colocou a necessidade de estender o esforço para resolver o nó da exploração mineral ao caso do uso de recursos hídricos, sobretudo para fins de produção de energia. “Temos que nos antecipar esta questão da construção de hidrelétricas”, defendeu. Hamilton Geraldo, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), apontou que a semelhança entre os procedimentos para exploração de minérios e de recursos hídricos pode ser usada para trabalhar em uma mesma lei os dois temas. De acordo com Geraldo, o Brasil só explora hoje 28,2% do seu potencial de 259 mil MW.

Ele citou explicitamente o caso da Região Norte, que usa apenas 8,9% do potencial de 112 mil MW, fazendo uma referência aos desafios de aproveitamento do potencial hidroelétrico da Amazônia, que esbarra principalmente na localização de muitos rios em Terras Indígenas. “Em função das necessidades futuras, vamos precisar dentro de um desenvolvimento sustentável buscar entendimento sobre este assunto. Precisamos ter regra clara. Se não tiver regra, a coisa fica bagunçada”, defendeu.

A inclusão de dispositivos sobre o uso de recursos hídricos em versões futuras do PL foi rechaçada pelo diretor do DNPM. “Tentar fazer hidrelétrica e mineração também teremos dificuldade de fazer um único projeto de lei”, afirmou Miguel Nery. Para Raul Teles, do ISA, a questão principal é a análise dos riscos e impactos da construção de hidrelétricas sobre aldeias indígenas. No caso da Amazônia, isso é ainda mais delicado pelo fato das comunidades manterem uma relação de dependência com as águas tanto em relação à alimentação quanto ao transporte. “No Parque do Xingu há uma pequena central hidrelétrica que deixou o rio sem peixe, o que aconteceu também em Tucuruí. Estudos indicam o mesmo risco na construção da usina do Rio Madeira”, alertou Teles. Para o representante do ISA, mais do que uma Lei é preciso fazer uma avaliação ambiental estratégica sobre quais bacias podem ou não ser usadas para a construção de hidrelétricas.

Estatuto

Durante o debate, Azelene Kaingang, do Warã Instituto Indígena Brasileiro, questionou os presentes afirmando que a opção por um PL apenas para a questão da exploração mineral esvaziaria o estatuto dos povos indígenas. Miguel Nery, do DNPM, deu a senha revelando a avaliação do governo de que a manutenção da questão no Estatuto dificultaria muito a sua aprovação. Nas falas dos presentes, ficou evidente que a aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas não é prioridade para o governo e que a disputa do próximo ano estará no conteúdo do PL de exploração mineral em terras indígenas e na decisão ou não sobre a incorporação da temática do uso de recursos hídricos para produção energética nestas áreas.

Para Cláudio Beirão, do Cimi, as informações sobre a estratégia do governo federal demonstram a manutenção da postura da gestão Lula nos últimos quatro anos. “O governo tinha compromisso de destravar e colocar projeto [do Estatuto] para frente, mas foi demonstrado aqui que tem anteprojeto só pra tratar de mineração, abandonando o estatuto”. Para Beirão, o caso é ainda pior uma vez que os povos indígenas e suas entidades sequer foram consultados sobre o anteprojeto, como vem se dando em outras áreas nas quais foram criados comitês, Grupos Interministeriais com participação da sociedade civil e envolvidos. A continuar este processo, restará às populações indígenas a disputa no Congresso, espaço que, a julgar pelo engavetamento da proposta de Estatuto, se mostra pouco acolhedor das demandas destes povos que guardam em si as origens e a história do País.

Carta Maior, Internet, 29-11-06

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