CPT: 40 anos de defesa da terra e da gente da terra

Idioma Portugués
País Brasil

"Espera-se que a inconformidade da CPT seja a de todas as organizações de defesa da terra e da gente da terra, empoderando um protesto nacional de massa capaz de reparar essa injustiça", escreve Jacques Alfonsin.

10 de junho de 2015 11h34

Legenda
Por Jacques Tavora Alfonsin

Em 2015, a CPT - Comissão Pastoral da Terra - está comemorando 40 anos de com uma extraordinária folha de serviços prestada ao povo pobre brasileiro.

Algumas das características reveladas por esse grupo de militância social, composto por agentes de pastoral das Igrejas, padres, bispos, religiosas/os, leigas/os cristãs/os, advogadas/os, agricultoras/es e voluntárias/os dispostas/os a dedicar seu tempo, seu espaço e sua vida em defesa da terra e do direito de todas/os terem acesso à ela, esses serviços são marcados por algumas características de valor histórico inconfundível. Mesmo longe de esgotá-las, vale a pena salientar algumas.

A primeira é a de um atuante testemunho místico e entusiasta de fé em Deus, capaz de identificar em cada pobre indígena, quilombola, sem terra e sem teto, o próprio Jesus Cristo ainda crucificado por uma opressão econômica, política e jurídica, pouco diferente daquela que Ele enfrentou em sua época, da qual ele tem de ser retirado e libertado.

A segunda é a da inculturação com a gente que ela serve, sua proximidade incondicional com ela, sem reservas, junto dela, dotada de uma humildade capaz de aprender com ela, sem se prevalecer da dominação presente no que possa saber a mais.

Uma convivência aliada a movimentos populares de pequenas/os agricultoras/es, de atingidas/os por barragens, mulheres camponesas, desempregadas/os, catadoras/es de material. Construída em parcerias, vitórias, derrotas e até de erros partilhados por confiar em alianças posteriormente reveladas como pusilânimes, manipuladoras, representantes de interesses alheios, eleitoreiros, ou de fidelidade duvidosa às iniciativas necessárias de mobilização massiva em defesa da libertação do povo pobre, ela se constitui em presença de assessoria ampla, disponível, ética, técnica e política.

A terceira é a da coragem. Durante esses 40 anos, uma inspiração profética de anúncio de verdades incômodas para quem maltrata a terra e oprime quem vive dela, sobre a causa real de injustiças históricas, escondidas pelo poder latifundiário, não calou nem reduziu a CPT à revelação dos perversos efeitos daí resultantes.

Reprimido por um poder econômico imoral, um modelo de exploração da terra excludente e predatório, capaz de escravizá-la, matar à ela e ao povo que dela vive, esse modo de atuar foi seguido por denúncias públicas de toda a ordem, ações políticas emancipatórias, manifestações massivas, romarias, cartilhas, livros, filmes, jornais, um tipo de comunicação aberta e crítica, preocupada em conscientizar sem medo, desconsiderando a desproporção imensa entre o seu frágil poder e o daquele contra quem ela trabalha.

A quarta é a do discernimento político, a capacidade de identificar os “sinais dos tempos”, aconselhada por Jesus Cristo. Fiel a um exercício de poder emancipatório, mesmo passando por crises internas e externas, como toda a organização de povo pobre passa, essa Pastoral se dedica a separar com rigor o joio do trigo, aponta responsabilidades socialmente inimigas do povo, aquelas com força para amanhar leis, despachos e sentenças em nome do lucro, descobre a troca do antigo capitão do mato pelo jagunço, a corrupção escondida no sepulcro caiado, a cultura hegemônica generalizada da imposta desigualdade social, aceita ideologicamente como normal e sem remédio.

A quinta é a da perseverança coerente. Ridicularizada pelo agronegócio, particularmente o que usurpa o direito às posses tradicionais, à alimentação e ao abrigo do povo, agredindo o meio ambiente, a CPT é criticada como romanticamente utópica e adversária do progresso. Perseguida pela polícia e pela mídia, porém, continua com a mão no arado e sem olhar para trás. O grão de mostarda que plantou ainda no século passado, hoje é uma árvore frondosa repleta de frutos de verdade, justiça, amor e paz, como quer o Seu Criador. Está plantada em terra fecundada pelo sangue de muitas/os mártires, gente agora ressuscitada em suas orações, romarias, cartilhas, filmes, livros, onde a fé não teme a política, ciente de que essa, sem aquela, fica desfalcada de um impulso místico vital, facilmente perde o rumo e o prumo.

A CPT não tem defeitos? Claro que tem. Até nisso, todavia, ela guarda uma saudável diferença de outras organizações autodenominadas como defensoras do povo pobre e de seus direitos sociais. Lendo e vivendo a Palavra de Deus no evangelho, ela se identifica com o publicano elogiado por Jesus Cristo, o homem que reconhece seus pecados, desvios e falhas, permanentemente disposto, por um sincero arrependimento, até a mudar de vida, se a tanto houver necessidade.

Bem ao contrário do fariseu, cuja oração não passa de um auto elogio tão caro às elites soberbas, cheias de virtudes alegadamente indiscutíveis, mas sustentadas somente em ritos de publicidade externa, sem outra aparência do que a da obediência a leis, de preferência aquelas suficientes para a conservação de privilégios e o horror à mudança, capazes de sacrificar a justiça.

Uma Pastoral desse porte, ás vezes vista com desconfiança pelas próprias igrejas, é uma das poucas organizações populares, como o MST, por exemplo, a ainda acreditar na reforma agrária, como forma indispensável de garantia do mais justo e legal meio de acesso do povo pobre a terra.

Ela comprova a urgência de implementação de uma política pública dessa importância, quando é obrigada a publicar, com muita dor, sofrimento, pesar e solidariedade com as famílias das vítimas, o anuário dos assassinatos praticados contra quem se atreve a lutar contra a injusta distribuição da terra em nosso país, sua inaceitável concentração em poucas mãos e sua exploração ecocida.

O número de brasileiras/os mortas/os, revelado pelos dados constantes nesse anuário, constitui uma condenação expressa da lerdeza política da administração pública da União e do Judiciário em dar andamento às desapropriações exigidas por essa reforma e da submissão servil do Poder Público à bancada ruralista no Congresso.

Se verdadeiros os anunciados cortes nos recursos orçamentários, destinados direta ou indiretamente à execução da reforma agrária neste ano, tem-se de prever o pior. Comparados com os bilhões de reais franqueados à próxima safra em favor do agronegócio, além de um completo descaso com o previsto na Constituição Federal sobre essa política (artigos 184 e seguintes), eles dão conta da indiferença que o governo da União tem com aquele repetido massacre.

Espera-se que a inconformidade da CPT com esse inaceitável desvio de poder seja também a de todas as organizações populares de defesa da terra e da gente da terra, empoderando um protesto nacional de massa capaz de reparar essa injustiça.

*Jacques Tavora Alfonsin é advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

Fuente: MST

Temas: Tierra, territorio y bienes comunes

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