Brasil: efeitos da produção de transgênicos ainda são desconhecidos

Idioma Portugués
País Brasil

Em entrevisa ao Observatório Eco, a professora de Direito Internacional de Meio Ambiente Márcia Brandão Carneiro Leão, afirma que estudos e testes devem ser realizados considerando as evidências de risco de dano potencial. "É necessária muita cautela nas decisões acerca das liberações, já que a contaminação da biodiversidade é irreversível”, alerta ela.

Por Roseli Ribeiro, do Observatório Eco

“Tudo ainda é muito novo, em matéria de biotecnologia aplicada à agricultura e os efeitos das culturas extensivas no que tange a biodiversidade, no longo prazo, ainda não são conhecidos”, afirma Márcia Brandão Carneiro Leão, professora de Direito Internacional de Meio Ambiente no Curso de Pós-Graduação lato sensu “Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Questões Globais” da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado).

De acordo com a especialista, como signatário do Protocolo de Cartagena, o Brasil deve trabalhar no sentido de ajudar a alcançar o objetivo específico do documento que é a abordagem dos riscos à biodiversidade que possam ser apresentados por organismos vivos modificados, aplicando o princípio da precaução.

Contudo em sua avaliação, a postura brasileira não se estabelece na direção do fortalecimento a proteção pretendida pelo Protocolo de Cartagena e o Protocolo Suplementar. “O compromisso parece começar a ‘incomodar’ o Governo brasileiro e isso é conseqüência de sua decisão – ao que parece - precipitada de se inserir no mercado de produção de transgênicos”, aponta.

“Estudos e testes devem ser realizados considerando as evidências de risco de dano potencial. É necessária muita cautela nas decisões acerca das liberações, já que a contaminação da biodiversidade é irreversível”, alerta Márcia Brandão Carneiro Leão formada em Direito pela USP (Universidade de São Paulo), onde também fez seu mestrado e doutorado em Direito Internacional.

Ela pondera que “os OGMs (Organismos Geneticamente Modificados) fazem, hoje, parte de nossa realidade”. Desta forma, a questão de sua movimentação e da responsabilidade dos países que os produzem, por danos à biodiversidade e à saúde humana foi, desde o início da CDB (Convenção sobre Diversidade Biológica), uma grande preocupação. Veja a entrevista que Márcia Brandão Carneiro Leão concedeu ao Observatório Eco com exclusividade.

Observatório Eco: Em decorrência dos resultados da COP 10 de Nagoya (Japão), que avanços podemos esperar com relação à preservação da biodiversidade e o combate à biopirataria?

Márcia Brandão Carneiro Leão: A COP 10 transcorreu num clima que se poderia denominar de “morno”. Sem a presença de chefes de Estado, sem grandes manifestações e, pode-se dizer, sem um “real” interesse por parte dos 193 países presentes em torno de um assunto de importância tão essencial quanto a Biodiversidade.

Basicamente foram três decisões. A primeira é a adoção de um novo “plano estratégico de dez anos” para 2020 contendo 20 pontos para orientar os esforços internacionais e nacionais no sentido de salvar a biodiversidade através de ação reforçada a fim de atingir os objetivos da Convenção sobre Diversidade Biológica.

Entre as 20 metas adotadas estão a proteção de pelo menos 17% dos ecossistemas terrestres e de água doce do planeta (hoje são 13%) e 10% dos marinhos e costeiros (contra os 6% atuais). A perda de habitats naturais deverá ser reduzida pela metade, podendo chegar perto de zero “onde for possível”, e 15% das áreas degradadas existentes deverão ser recuperadas.

A segunda trata de uma estratégia de mobilização de recursos revitalizando um caminho futuro para aumentar de modo substancial os níveis atuais de adesão pública ao desenvolvimento de um suporte à biodiversidade.

E a terceira é um novo protocolo internacional chamado de ABS - Access and Benefit-Sharing - em português, Acesso e Repartição de Benefícios, que poderá se transformar em um dos principais instrumentos no combate à biopirataria.

Tal compromisso – o único, entre os três resultados, com capacidade de vincular os países – deve entrar em vigor 90 dias após o depósito do 50° instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou acesso (art.33).

Vale dizer que depende de que 50 países signatários da CDB também concordem com este compromisso (muito embora o compromisso esteja aberto à adesão por países não-parte da CDB, nos termos de seu artigo 24).

Todas as disposições do Protocolo – que poderá ser um impulso em direção ao aperfeiçoamento e à aprovação do Anteprojeto brasileiro de Lei de Acesso a Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais – esbarram nas deficiências de conhecimento acerca da biodiversidade nacional e do sistema de fiscalização. Não há como coibir a biopirataria sem fiscalização e conhecimento.

Observatório Eco: O Brasil é o segundo maior produtor de produtos transgênicos do mundo. De que maneira conciliar as exigências do Protocolo de Cartagena nesta atividade.

Márcia Brandão Carneiro Leão: A questão dos OGM - Organismos Geneticamente Modificados (ou OVM-Organismos Vivos Modificados, na nomenclatura do Protocolo de Cartagena) retira sua importância do fato de que tais organismos têm o potencial de “contaminar” a biodiversidade através da polinização, por exemplo, no caso das plantas. Tal contaminação é irreversível e incontrolável, podendo ter efeitos danosos relativamente ao restante da biodiversidade, como no caso das plantas com genes inseticidas, cujo pólen pode afetar insetos.

Tudo ainda é muito novo, em matéria de biotecnologia aplicada à agricultura e os efeitos das culturas extensivas no que tange a biodiversidade, no longo prazo, ainda não são conhecidos.

O Protocolo de Cartagena reafirma o princípio da precaução (de número 15, na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento) segundo o qual, quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis ao meio ambiente, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas de precaução.

As regras definidas pelo Protocolo estabelecem dois princípios bastante simples, quais sejam: o direito de um país saber o que está importando antes da entrada do produto no país. E o direito de um governo negar-se a importar um produto, caso considere que ele pode representar uma ameaça alimentar ou ecológica.

No entanto, o Protocolo isenta da necessidade de autorização, as mercadorias OVM previstas para alimentação, ração ou processamento, por exemplo, milho, soja ou caroço de algodão, OVMs em trânsito ou OVMs destinados a uso controlado, por exemplo, organismos destinados somente à pesquisa científica em laboratório.

As remessas de mercadorias OVM, como milho e soja destinados ao uso direto em alimentação, ração ou processamento – conforme o Protocolo - devem estar acompanhados de documentação que afirme que tais remessas “podem conter” organismos vivos modificados e “não se destinam à introdução intencional no meio ambiente”.Essa disposição não leva em conta, por exemplo, a realidade africana ou asiática, na qual o que entra no país como alimentação acaba, freqüentemente, como semente nos campos, ficando sem sentido a distinção nos procedimentos adotados em função do destino final do produto.

O Protocolo não trata de questões de segurança alimentar, que ficaram a cargo de outros especialistas, em outros fóruns internacionais.

Também não se aplica o Protocolo a produtos não vivos derivados de plantas ou animais geneticamente modificados (como milho moído ou outros produtos alimentícios processados) e não exige a rotulagem dos produtos de consumo.

Observatório Eco: E de que forma essa questão é tratada no Brasil?

Márcia Brandão Carneiro Leão: O Brasil – através da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, conhecida como Lei de Biossegurança – reestruturou a CTNBio - Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, que passou a ter a “finalidade de prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança relativa aos OGMs, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e pareceres técnicos conclusivos referentes à proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente, para atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM e derivados”.

A CTNBio, é composta de membros titulares e suplentes, designados pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia, sendo constituída por 27 (vinte e sete) cidadãos brasileiros de reconhecida competência técnica, de notória atuação e saber científicos, com grau acadêmico de doutor e com destacada atividade profissional nas áreas de biossegurança, biotecnologia, biologia, saúde humana e animal ou meio ambiente.

Sua atuação, no entanto está cercada de grandes polêmicas, como a que aconteceu em 2007, quando seis representantes de ministérios e da sociedade civil abandonaram uma reunião da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) por discordarem da proposta de coexistência e monitoramento de transgênicos aprovada pela maioria dos membros da comissão.

As regras de coexistência e monitoramento foram impostas por uma decisão da Justiça Federal do Paraná e relacionam-se ao estabelecimento de distância suficiente entre plantações transgênicas e convencionais para evitar a contaminação, além do necessário acompanhamento periódico, monitorando a eficiência desse distanciamento.

A proposta aprovada pela CTNBio, além de estabelecer uma distância de 100m entre os cultivos – considerada insuficiente e sem o devido fundamento científico - não especificava como deveria ser feito o monitoramento e não exigiu das empresas estudos de impacto no meio ambiente e na saúde. Coube a cada empresa, desenvolver um plano de monitoramento próprio, sem acompanhamento, fiscalização nem avaliação por parte da CTNBio.

A alegação dos integrantes que se retiraram foi que, deliberadamente, a Comissão havia decidido desrespeitar a Justiça pois, logo após a votação da proposta que facilitava a contaminação, foi colocada em votação e aprovada a liberação comercial do milho transgênico MON810, da Monsanto.

A preocupação de então, revelou-se pertinente. Em abril de 2010, a Secretaria de Agricultura do Estado do Paraná – SEAB divulgou os resultados do “Plano de Monitoramento do fluxo gênico entre lavoura de milho transgênico e não transgênico na região Oeste do Paraná”. A pesquisa identificou espigas convencionais polinizadas por milho transgênico distantes até 120 metros da lavoura geneticamente modificada, mesmo dentro das regras estipuladas pela CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança). As amostras de milho convencional apresentavam traços do DNA e da proteína característica da variedade transgênica.

O risco de contaminação das espécies nativas – também denominadas “crioulas” – é também expressivo. Só no Brasil, há quase trinta espécies de milho, cuja preservação é de suma importância, não só em termos de biodiversidade, mas pela possibilidade de oferta de recursos genéticos capazes de gerar diversidades naturalmente mais resistentes e menos danosas ao meio ambiente.

É preciso lembrar que um número expressivo de variedades transgênicas é resistente a pesticidas – e não a doenças – o que aumenta a contaminação do solo e da água.

Como signatário do Protocolo de Cartagena, o Brasil deve trabalhar no sentido de ajudar a alcançar o objetivo específico do documento que é a abordagem dos riscos à biodiversidade que possam ser apresentados por organismos vivos modificados, aplicando o Princípio da Precaução. Estudos e testes devem ser realizados considerando as evidências de risco de dano potencial. É necessária muita cautela nas decisões acerca das liberações, já que a contaminação da biodiversidade é irreversível.

Estudos recentes, acerca da queda gradual da produtividade de tais plantações também devem ser levados em consideração, já que isso poderia tornar desnecessária a substituição das plantações convencionais.

Conciliar a as responsabilidades inerentes à situação de país megabiodiverso, signatário da CDB-Convenção sobre Diversidade Biológica e do Protocolo de Cartagena, com a posição de segundo maior produtor de transgênicos do mundo parece requerer bem mais do que está sendo feito, até o momento, no País.

Observatório Eco: O Protocolo de Cartagena estabelece o seguro por danos provocados pelos transgênicos, o país adota essa medida?

Márcia Brandão Carneiro Leão: Na realidade, o Protocolo não estipula claramente a questão da responsabilidade civil. Limita-se a registrar que deverá vir a ser desenvolvido tal sistema (art.27- Responsabilidade e Compensação).

O artigo estabelece que “a Conferência das Partes atuando na qualidade de reunião das Partes do presente Protocolo adotará, em sua primeira reunião, um processo em relação à elaboração apropriada de normas e procedimentos internacionais no campo da responsabilidade e compensação para danos que resultem dos movimentos transfronteiriços de organismos vivos modificados, analisando e levando em devida consideração os processos em andamento no direito internacional sobre essas matérias e procurará concluir esse processo num prazo de quatro anos”

Um esboço de Acordo Suplementar ao Protocolo sobre tais assuntos apenas ficou pronto em Junho de 2010 e foi apresentado na COP/MOP-5 do Protocolo, realizada em Nagoya, entre 11 e 15 de outubro

Observatório Eco: Quais os avanços que o encontro MOP trouxe para esse segmento?

Márcia Brandão Carneiro Leão: A Decisão BS-V/11do MOP aprovou o texto de um “Protocolo Suplementar sobre responsabilidade e remediação ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança”.

No entanto, com relação à questão do seguro – que estava previsto como mandatório na proposta original do Protocolo – nada ficou definido.

Na redação final, fica reservado às partes o direito de proporcionar, à luz de seu direito interno, o seguro financeiro e estabelecido que a primeira COP/MOP, após a entrada em vigor do Protocolo Suplementar solicitará ao Secretariado que realize um estudo amplo abordando: as modalidades dos mecanismos de seguro financeiro. Uma avaliação dos impactos ambientais, econômicos e sociais de tais mecanismos, em particular nos países em desenvolvimento e uma identificação das entidades apropriadas para proporcionar tal seguro financeiro.

É preciso ter em mente que, segundo o artigo 18 do documento, a entrada em vigor acontecerá 90 dias após o depósito do 40° instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou acessão, pelas Partes no Protocolo de Cartagena. Não é possível prever quanto tempo decorrerá até que tal meta possa ser atingida.

Finalmente, torna-se importante destacar que o Brasil foi ao encontro, preparado para rechaçar a proposta original de estabelecimento de seguro financeiro para responsabilidade e remediação de danos decorrentes da movimentação de OVMs.

O artigo originalmente proposto tornava mandatório aos signatários exigir dos “operadores” (exportadores, importadores, transportadores e desenvolvedores da tecnologia) a adoção de garantias financeiras para cobrir possíveis danos causados por esses organismos à biodiversidade e era defendido por países africanos e Malásia. Já o Brasil, América Latina e Japão eram contrários e a União Europeia preferiu a “discrição”, segundo negociadores

Conforme, ainda, reportagem disponível no sítio do Itamaraty ( veja aqui) o Brasil considerava que, pelo fato de ser signatário do Protocolo, ficaria em desvantagem com relação aos EUA, Argentina, Austrália e Canadá que não ratificaram o protocolo para não se comprometerem.

Na realidade, não existem seguros para transgênicos, assim como não existem para a indústria nuclear, portanto, é impossível mensurar os impactos econômicos de uma obrigação dessa natureza.

O que se sabe é que muitos outros setores seriam afetados tais como: alimentos, energia e desenvolvimento de novas tecnologias.

O Brasil levou para Nagoya a proposta de substituir o estabelecimento do seguro compulsório por uma menção à realização de estudos técnicos que mostrem o impacto econômico que ele traria ao comércio e a sua real eficácia, no que se refere ao meio ambiente. O objetivo foi alcançado.

A expectativa era de “empurrar” o debate para a próxima reunião, em 2012. Agora, a discussão dependerá da entrada em vigor do Protocolo Suplementar e não se sabe quando isso acontecerá.

A postura brasileira não se estabelece na direção do fortalecimento a proteção pretendida pelo Protocolo de Cartagena e pelo Protocolo Suplementar. O compromisso parece começar a “incomodar” o Governo brasileiro e isso é conseqüência de sua decisão – ao que parece - precipitada de se inserir no mercado de produção de transgênicos.

E, afinal, se os OVMs são mesmo, tão seguros e não colocam em risco a biodiversidade, porque o setor não assume a responsabilidade?

Observatório Eco - EcoAgência

Temas: Transgénicos

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