"Brasil emperra Protocolo de Cartagena": coordenadora institucional do IDEC

Idioma Portugués
País Brasil

Entrevista a Marijane Lisboa, coordenadora institucional do Instituto de Defesa do Consumidor, e ex-secretária de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA): argumenta que o governo privilegiou o resultado da balança comercial, esquecendo o propósito do protocolo, que é a defesa do meio ambiente

Reunidos de 30 de maio a 3 de junho em Montreal, Canadá, 119 países tinham a última chance para estabelecer as regras para indicação de produtos transgênicos nas cargas de exportação. Ou seja, de que forma explicar ao comprador qual tipo de organismo geneticamente modificado (OGM) ele está – ou pode estar – comprando.

O Protocolo de Cartagena, documento que estabelece essas regras, foi criado em setembro de 2003, mas com o comprometimento de ser debatido em dois anos, para que se criassem regras mais claras. A 2ª Reunião das Partes, ocorrida em Montreal na semana passada, terminou sem uma decisão, graças à oposição do Brasil e da Nova Zelândia ao Artigo 18-2 – que se referia à rotulagem dos produtos. A falta de um consenso faz com que a indicação permaneça a mesma, dizendo apenas que o produto “pode conter transgênico”. Isso, pelo menos, até março do ano que vem, quando ocorre, em Curitiba (PR), a 8ª Convenção de Diversidade Biológica e, logo depois, a 3ª Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena.

ONGs e movimentos sociais contra os transgênicos que participaram do evento demonstraram sua insatisfação com a atitude dos dois países. Marijane Lisboa, coordenadora institucional do Instituto de Defesa do Consumidor, e ex-secretária de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA), argumenta que o governo privilegiou o resultado da balança comercial, esquecendo o propósito do protocolo, que é a defesa do meio ambiente. Em carta ao ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu [veja em Links Relacionados], Lisboa condenou a escolha da delegação que foi a Montreal, composta por 24 pessoas, sendo apenas dois representantes do MMA.

Rets - Qual a conseqüência da oposição do Brasil e da Nova Zelândia ao Artigo 18-2?

Marijane Lisboa - Com esta atitude, ele [o Brasil] se opôs justamente a definir regras detalhadas de rotulagem, já que o prazo vencia agora, em setembro. O prazo dado pela Convenção de Diversidade Biológica era de dois anos após a entrada em vigor do Protocolo [de Cartagena], o que aconteceu em 15 de setembro de 2003. Então essa era a última reunião para aprovar este e vários pontos, de modo a poder apresentar os resultados na próxima Conferência das Partes, que será em março do ano que vem, em Curitiba (PR).

Rets - O protocolo precisa de consenso para ser aprovado?

Marijane Lisboa - Como todas as reuniões e conferências do protocolo da Convenção de Biodiversidade, a regra é o consenso. Mas a interpretação do consenso, segundo vários juristas, não é unanimidade. Depende de a Convenção entender o consenso como uma maioria, digamos, esmagadora. E podia ter feito isso. Não fez, mas podia ter feito. Além do que, pelas regras da convenção, as conferências dos órgãos subordinados não estão sujeitas a consenso, [o documento] poderia ser aprovado com dois terços. Mas o presidente – que é sempre o ministro do Meio Ambiente do país-sede – resolveu não fazer isso, o que significa que ele leva a comunicação à Convenção da Biodiversidade de que não foi possível cumprir o que tinha sido assumido pelos países.

Rets - Por que apenas Nova Zelândia e o Brasil se opuseram à rotulagem?

Marijane Lisboa - No caso do Brasil, foi clara a interferência do aspecto econômico no posicionamento adotado. A delegação era composta, majoritariamente, por pessoas que não entendem nada da questão ambiental relacionada aos transgênicos. Foram representantes do Ministério da Agricultura, da Ciência e Tecnologia e de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que têm posição favorável aos transgênicos. Eles só levam em conta a balança comercial, a exportação, desconsideram a preocupação com o meio ambiente.

Diz-se também que houve interferência do ministro [da Casa Civil] José Dirceu. Através de um representante, ele exigiu que o país não aceitasse a rotulagem proposta pelos outros países.

A Nova Zelândia, todo mundo sabe que esta sendo usada como testa-de-ferro do Grupo de Miami [formado pelos principais países exportadores de transgênicos]. Como os Estados Unidos, principal interessado em manter a rotulagem como está, não são signatários do protocolo, não têm poder de voto. Assim, o Grupo de Miami está usando a Nova Zelândia como testa-de-ferro.

Rets - Mas qual o interesse do EUA no protocolo, se o país não é signatário e não está sujeito ao que for decidido?

Marijane Lisboa - A partir do momento em que houver uma regra determinada, e a grande maioria dos países aceitar essas regras, os produtos norte-americanos ficarão desvalorizados, já que terão uma regulamentação menor. O produto norte-americano não terá nenhuma identificação, o que poderá causar desconfiança, e assim os países preocupados com sua população podem dificultar a entrada dos produtos norte-americanos.

Rets - O Brasil não é o único país que sofre a pressão do agronegócio. Qual o motivo, na sua opinião, de ele ter sido o único a ceder a essas pressões?

Marijane Lisboa - Essa é uma pergunta que deveria ser feita aos representantes da Casa Civil. Realmente, não sei por que o Brasil fez esse papelão. O México, por exemplo, também sofre forte pressão do agronegócio, mas aceitou a proposta suíça.

Rets - A questão da rotulagem foi o único ponto polêmico do protocolo?

Marijane Lisboa - Não, houve vários pontos polêmicos. Nesse tipo de reunião é normal as divergências aparecerem. Mas nos outros casos se chegou a um consenso, a negociação foi possível. Na verdade, só neste ponto que não houve um acordo, graças ao Brasil e à Nova Zelândia.

Com o impasse, a Suíça apresentou uma proposta que não agradava totalmente a ninguém, nem ao Grupo de Miami, nem aos outros países, que queriam uma rotulagem mais rigorosa. Quando começou o risco de se sair sem nada, os outros começaram a ceder. Houve muitas declarações dizendo que “não era isso exatamente o que a gente queria, queríamos medidas mais rígidas, mas em função de termos que chegar a um acordo para podermos apresentar algo ano que vem, a gente aceita e se dispõe depois a continuar discutindo”.

No começo da reunião, o que a gente tinha? Brasil, Nova Zelândia e alguns países como México, Peru, e Argentina, que não é parte, querendo manter o que já havia, que era um mero rótulo dizendo “Este carregamento pode conter transgênico” – em inglês, may contain –, que foi um acordo, na época, para poder assinar o protocolo. Mas há um artigo deste protocolo que diz que dois anos depois de ter entrado em vigor, os países teriam que produzir uma orientação clara sobre como rotular, segregar etc. No início havia alguns poucos defendendo a proposta desse “may contain”, e outros todos discutindo várias modalidades de como rotular, se o navio vem com carga misturada, se ele vem com uma carga, se ele já sabe o país para onde vai, se ainda não tem um destino claro. Isso porque o comércio de grãos é complicadíssimo. Às vezes o navio sai e vai recolhendo grãos de cada país diferente, põe um em cima do outro no porão do navio, e nem sabe para quem vão vender. Eles vão fazendo as compras enquanto o navio está no oceano.

Tinha muitas modalidades. Alguns queriam que, quando recebesse algo, o exportador já dissesse: “Estou exportando para você tal coisa”. Só que muitas vezes eles iam comprar um grão quando o navio estivesse no meio do caminho. Quem vendeu, vendeu para um atravessador e não sabia para onde ia o seu produto. Então, tecnicamente, é enrolado. O que se exige? Exige-se que o vendedor diga que aquilo que ele está vendendo é permitido no país importador. Se ele não sabe qual é o país de importação, também não vai saber. Então se levou muito tempo para chegar a uma fórmula complicadíssima. E sempre tinha briga. Uns queriam mais coisas; outros, menos coisas, e aí a Suíça teve essa proposta de meio termo, que, na verdade, contemplava um pouco todo mundo que queria um certo rigor, mas puxava para o lado da turma do “may contain. Tinha até a possibilidade de ter “este navio pode conter”, mas cada país que vender os seus transgênicos para um determinado navio deve dizer: “no nosso país, tais tipos de transgênicos são permitidos e produzidos” ou “pode conter estes tipos”. Não quer dizer que contenha, mas pode conter. Até porque ninguém vai importar uma coisa que está proibida no próprio país produtor. Era uma forma de conciliação mesmo. E foi aí que o Brasil e a Nova Zelândia disseram que não.

Rets - Qual era o posicionamento do Brasil na reunião? Ele procurou expor seus argumentos para esse posicionamento?

Marijane Lisboa - Não posso te falar como testemunha ocular porque essas reuniões são fechadas, mas, segundo relatos de delegações conhecidas, o Brasil adotava uma postura de não falar nada, e aí todo mundo discutia sabendo que tinha que esperar o que o Brasil dissesse. Não procurou convencer, expor suas razões. Teve uma hora em que eles tinham de montar um grupo bem pequeno, para ver se chagavam a um acordo, e chamaram um representante de cada país. O Brasil disse que tinha que ter dois. Ora, por que dois? Se cada país tivesse dois, ficava um grupo muito grande. E o Brasil não dava explicação, dizia que precisava de dois. Dizem as más línguas que um representante da delegação não confiava no outro.

Rets - Mas acabavam tendo a mesma opinião.

Marijane Lisboa - Mas numa negociação de última hora, nos momentos finais, você tem que ceder mesmo. Então se não houver uma clara comunhão quanto ao que deve ser cedido e não cedido, de fato é um risco, mandar uma e não outra pessoa que pode ter opiniões diferentes. Aparentemente, deve ter sido isso. Os dois diplomatas foram juntos, para um vigiar o outro.

Rets - Essa posição do Brasil já era esperada?

Marijane Lisboa - Já, totalmente. Só pelos representantes que foram enviados e pelas atitudes anteriores, já se sabia que a delegação brasileira teria esse posicionamento.

Rets - E como a senhora analisa a atuação das ONGs e dos movimentos sociais que lutam contra os transgênicos?

Marijane Lisboa - As ONGs latino-americanas fizeram um apelo para que o Brasil e a Nova Zelândia recuassem da posição que tomaram. Uma companheira chilena leu o nosso pronunciamento sobre o caso [ver em Links Relacionados]. Procurei o representante da Casa Civil, telefonei para a ministra [do Meio Ambiente] Marina Silva. Acho que ela tentou procurar o José Dirceu e o ministro [das Relações Exteriores] Celso Amorim, mas nada fazia essa delegação desistir.

Houve uma declaração final, de todas as ONGs, de repúdio à atitude brasileira, depois que o Brasil tinha bloqueado. Eu que fiz essa declaração, porque eles me pediram, pois eu era uma das poucas brasileiras de ONG por lá.

Rets - Quem era esse representante da Casa Civil?

Marijane Lisboa - Ele se chama Caio Leonardo Bessa Rodrigues. Ele é, segundo se apresentou, assessor do [José Antonio Dias] Toffoli. O Toffoli é assessor do Dirceu [Toffoli é subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil]. É um assessor do segundo escalão, mas com um poder incrível.

Rets - Qual a conseqüência para o dia-a-dia do consumidor dessa falta de consenso no Protocolo?

Marijane Lisboa - Para os consumidores brasileiros, nós vamos continuar comprando coisas sem saber o que são. Por exemplo, milho transgênico que venha da Argentina, dos Estados Unidos, que não estão autorizados no Brasil. Podem até vir esses tipos que são perigosos, como o Starlink, que são produzidos na Argentina. Nós podemos estar comendo direta ou indiretamente. Indiretamente, via animais alimentados com a ração, e diretamente, porque esse milho pode estar misturado na comida ou em biscoitos etc.

Para o meio ambiente, pode ser mais grave ainda do que para o consumidor. Porque o Brasil é um centro de diversidade do milho. Os nossos índios foram fazendo diversos experimentos, e foram surgindo variedades novas. E o milho é de fácil polinização, porque ele é polinizado pelo ar, pelo vento, por passarinho, borboleta, abelha. Esse milho chegando aqui da Argentina ou dos EUA sem uma rotulagem clara, ele pode ir caindo ao longo das rodovias, os agricultores que recebem esse milho para alimentar seus animais podem resolver plantar para ver o que acontece, sem saber se é ou não transgênico. Assim, ele pode se disseminar pelo meio ambiente, cruzando com os milhos nossos, com as nossas variedades nativas. E se ele for mais capaz de resistir, pode predominar sobre os demais. Ninguém sabe, porque nunca se usou isso. Quer dizer, no México ele estava se dando bem, estava se espalhando.

O dano ambiental para nós pode ser muito pior do que o dano ao consumidor. O Protocolo de Cartagena não trata de direitos de consumidores, está tratando de proteger o meio ambiente. É essa a preocupação deles. É um protocolo de legislação ambiental. Não é nem de consumidor, nem de comércio.

Rets - Como este protocolo não foi aprovado, e o prazo era até setembro, o que acontece a partir de agora?

Marijane Lisboa - Isso significa que vão continuar a ser comercializados transgênicos, organismos vivos geneticamente modificados – que podem se multiplicar, germinar –, sem a exigência de uma rotulagem detalhada. Quer dizer, vão continuar acontecendo acidentes como o que aconteceram na Europa, que depois de quatro anos toma conhecimento de que estava comprando milho de tipo transgênico, inclusive um que não era autorizado no continente. Ou então o caso do milho, que é ainda mais grave, do ponto de vista ambiental, no México, que é centro de origem do milho, onde foi desenvolvido pelos povos indígenas, e, de tanto importar milho dos EUA, descobriram milho transgênico em todo território mexicano. Ou seja, é possível que as variedades nativas estejam ameaçadas de extinção, se o milho transgênico se der melhor na seleção natural. Os panamenhos também estão preocupados, porque o Canal do Panamá é rota desses navios, o que pode ameaçar seu meio ambiente também.

Agora é assim: terminou o mandato desse protocolo. Quando chegar a Curitiba, para a 3ª Conferência das Partes, a Convenção da Diversidade Biológica vai tomar conhecimento formal de que eles fracassaram. E aí vai decidir o que fazer. Ela pode formar outro grupo, dar um outro mandato, ou dar um mandato ali mesmo, obrigando os países a chegarem a um acordo em três dias. Isso significa que nenhum dos países que tinham chegado a aceitar a proposta da Suíça, com vistas a uma conciliação, se sente mais obrigado a continuar dali para adiante. Eles podem voltar atrás, porque aquela foi uma proposta para fechar negociação na semana passada. Vários declararam isso explicitamente nos seus discursos de encerramento. Poderemos ter, na verdade, posições, muito mais duras do que aquelas que estavam ali. Assim, o agrobusiness pode ficar com uma realidade muito pior do que essa que eles poderiam ter feito lá, que é os países voltarem a trazer as velhas propostas de rotulagem completa, pedindo autorização prévia, dizendo o que tem e o que não tem. A União Européia declarou que não se sentia obrigada a aceitar a proposta suíça, já que tinha falhado tudo, porque o Brasil e a Nova Zelândia não quiseram aceitar. Acho que a Malásia também declarou isso, e a Etiópia, em nome da África. Na verdade, volta à estaca zero. Cada um leva a proposta que quiser, se a Convenção der um novo prazo. E ela dará, porque essa é a vontade majoritária.

Esse Protocolo de Cartagena só surgiu porque é necessário fiscalizar o transporte de grãos, porque os grãos vão para os alimentos e acabam se disseminando pelo meio ambiente, podendo causar danos ambientais graves. Os países estão convencidos de que é um problema ambiental e têm de enfrentar. Porque eles não vão aceitar essa palhaçada do Brasil e da Nova Zelândia.

Rets - Acaba que os próprios agricultores podem sair prejudicados com essa posição.

Marijane Lisboa - Claro! Os agricultores, a população em geral, a nossa soberania alimentar. Porque se o milho nativo sofrer algum baque grande e os milhos transgênicos apresentarem problemas de nutrição, problemas ambientais, perdemos um dos elementos principais da população brasileira, principalmente da população de baixa renda.

Rets - As ONGs e os movimentos contra os transgênicos já têm algum plano de ação para a reunião de Curitiba?

Marijane Lisboa - Nós ainda não temos um planejamento, mas vamos ter já. E nós certamente não vamos deixar, agora que a reunião será aqui, e não lá longe, que os interesses comerciais e do agrobusiness predominem sobre os interesses ambientais, sociais etc. Vamos nos preparar, sim, para divulgar ao máximo a conferência, para expor ao máximo a política brasileira, para que não insista nesse rumo. Uma coisa é falar em nome do Brasil no Canadá, calando a boca dos representantes do Ministério do Meio Ambiente da delegação brasileira. A outra coisa é a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, presidir a convenção, e o [ministro da Agricultura] Roberto Rodrigues conseguir o que ele quer. Isso vai ser muito difícil. Ela pode não conseguir interferir, como aconteceu no Canadá, mas acho que vai ser muito difícil ele forçá-la a fazer o que ela não quer. Então acho que as condições do ano que vem são muito diferentes das da semana passada.

Foi uma grande burrada da delegação, que, preocupada com a questão comercial, não se deu conta do contexto. Inclusive local, porque será no estado do Paraná, que está fazendo todo esforço possível para se manter livre de transgênicos, garantir a produção de soja com certificado de não-transgênica. É o pior espaço para eles e o melhor para nós.

Rets - Fica, portanto, sem previsão o fechamento de um protocolo?

Marijane Lisboa - Sim, mas provavelmente será lá mesmo, porque lá tem a reunião da Convenção e, logo em seguida, a Reunião das Partes do Protocolo. Nessa reunião, os países, com certeza, receberão um novo mandato para definir uma proposta.

Italo Nogueira

Revista do Terceiro Setor, 10-Jun-2005

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