Brasil: reforma agraria deficiente

Por ADITAL
Idioma Portugués
País Brasil

Antônia Ivoneide Melo Silva, a Neném, cearense, assentada, há nove anos no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) - na coordenação nacional do Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente - afirma nesta entrevista a Adital que a reforma agraria no Brasil tem sido tratada como política para resolver conflitos agrários e não uma política de mudança na estrutura fundiária calcada no latifúndio

"O que tem se criado são projetos de assentamento para amenizar certos conflitos, um certo problema agrário com os trabalhadores sem terra que ocupam uma área, ou com certo proprietário".

Neném declara que no modelo do agro-negócio adotado pelo Brasil se juntaram duas figuras: o latifúndio a indústria aliada ao capital internacional que passa a financiá-lo. "Hoje o dono da fazenda é o mesmo dono da empresa, é o mesmo dono da indústria".

Adital: A reforma agraria não está andando, está atolada. Quais as causas principais que vocês do MST estão vendo, as causas que não deixam a reforma agraria deslanchar?

Antonia Ivoneide Melo: Em primeiro lugar a gente está avaliando que o modelo agrícola e econômico implementado no Brasil desde o início é baseado na concentração da terra, da renda, da tecnologia, do conhecimento... Enfim, esse modelo tem como mola principal o latifúndio. Portanto é um modelo que se baseia e se firma no latifúndio. A segunda questão é que a reforma agraria no Brasil tem sido tratada como política para resolver conflitos agrários e não uma política de mudança nessa estrutura fundiária. O que tem se criado são projetos de assentamento para amenizar certos conflitos, um certo problema agrário com os trabalhadores sem terra que ocupam uma área, ou com certo proprietário. O governo para amenizar e até para compensar a perda dos trabalhadores (contra eles, normalmente, há crimes, há mortes), ele desapropria algumas áreas. Esses assentamentos não são a reforma agraria. Eles não estão ligados a outras políticas sociais e de desenvolvimento. É só analisar hoje com o atual governo e mesmo com o governo Fernando Henrique que implementou no Brasil o modelo neoliberal e a entrada do capitalismo bem forte no campo. Ele implementou modelos. Por exemplo, o modelo agrícola de desenvolvimento no Brasil, está baseado na monocultura para exportação. Esse modelo precisa de muita terra, de muito capital e de pouca mão de obra. Logo, a reforma agraria vai na contra mão desse modelo. Então, por conta disso, o governo para fazer reforma agraria no Brasil, hoje, tem que ter disposição e coragem para romper com esse modelo.

Adital: Portanto, o grande capital e o latifúndio são dois elementos que juntaram seus interesses para barrar a reforma agraria?

Neném: No modelo do agro-negócio se juntaram essas duas figuras, o latifúndio que era o coronel que conhecemos muito bem aqui no Ceará, que tinha terras e mais terras. Ele se junta à indústria e ao capital internacional que passa a financia-lo. Hoje o dono da fazenda é o mesmo dono da empresa, é o mesmo dono da indústria. Eles estão ligados e isso dificultou muito mais o nosso avanço. É essa discussão que o movimento está fazendo. Continuamos do mesmo jeito, ocupando a terra que é a forma de luta pela qual nós surgimos, mas hoje, até nessa forma de luta requer mais qualificação e também muito mais disposição da própria sociedade para enfrentar o modelo.

Adital: Mas o Brasil cresce, exporta...

Neném: É, foi criada uma imagem para convencer, para disputar a hegemonia da sociedade dizendo que é esse modelo que faz crescer no Brasil. É esse modelo que dá nome até em nível internacional ao Brasil. É esse modelo que está exportando, enquanto a agricultura familiar e a reforma agraria não significam nada para esse modelo. Mas nós perguntamos: qual é o desenvolvimento social interno do país? Nós continuamos com a mesma miséria da fome. Com a mesma concentração da terra, com a violência e com tudo que está surgindo hoje nas cidades, o aumento das favelas, da violência, e de tudo mais.

Adital: E em relação à questão técnica, a questão do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria), como vocês vêem este órgão que já tem uma certa idade? Facilita ou não a reforma agraria?

Neném: No INCRA há problemas sérios. O INCRA foi sucateado. Os técnicos que tinha cinco ou dez anos atrás são os mesmos que continuam hoje. E muita gente no INCRA foi colocada lá para não fazer reforma agraria. Portanto, são técnicos que não gostam de movimentos sociais, são técnicos que tem uma outra concepção de sociedade. A demanda hoje para o INCRA funcionar como cinco anos atrás é de quatro mil e quinhentos novos servidores. Até agora foram contratados menos de quatrocentos. E agora se lançou um edital para selecionar mais mil e trezentos servidores, mas nesse ano só vai contratar seiscentos e cinqüenta, até dezembro e seiscentos e cinqüenta no inicio do ano que vem. Nós temos dúvidas se realmente, ainda nesse governo, esses mil e trezentos funcionários vão começar a atuar. Não há uma perspectiva de desenvolvimento do INCRA. Realmente a máquina está muito pesada. É uma coisa que não anda. Para se desapropriar uma área, que devia ser no máximo seis meses, está levando de dois a três anos. Então como é que vamos fazer reforma agraria com essa marcha de tartaruga?

Adital: A ‘Residência Agraria’ é um projeto que está sendo testado. O Ceará está sendo um campo experimental para a formação de técnicos que não tenham só uma relação trabalhista ou química com a terra, mas uma relação com os trabalhadores, com a questão do campo. Em que consiste, o que visa e que resultados pode trazer? O MST participa?

Neném: O programa Residência Agraria foi criado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário, MDA. Sua origem vem dos movimentos estudantis que faziam estágios de vivência nos assentamentos do meio rural para aproximar os estudantes das áreas agrarias com o campo, já que a maioria desses alunos não é do campo, são da cidade e, no entanto, estão se formando e têm interesse pela área rural. Então, o ministério juntamente com o PRONERA, Programa Nacional de Educação na Reforma Agraria, fez uma discussão e convidou os movimentos sociais, principalmente o CONTAG e o MST, para fazer esse processo de discussão, para implementar um programa que pudesse fortalecer um estágio de vivência nos próprios assentamentos. Será para o último semestre dos alunos das áreas de ciências agrarias para que eles possam viver um período com as famílias de lavradores nas áreas de reforma agraria. Também depois de formados eles fariam um curso de especialização com um tempo de escola e um tempo na comunidade. São hoje quinze universidades envolvidas nestes cursos. No Nordeste são vários cursos. Um envolve o Ceará, com a Universidade Federal, um no Piauí, no Rio Grande do Norte em Mossoró, na Paraíba, na Bahia, Pernambuco e Sergipe. Para nós é importante responder a esta questão do ponto de vista dos movimentos sociais. Achamos que tem três coisas importantes avaliando esse programa. Uma delas a gente já citou que é a seleção dos alunos que vão ter um envolvimento com a área rural. Depois, podemos avançar no campo da pesquisa. Nós temos poucas pesquisas na área rural para entender melhor, por exemplo, qual é o papel da assistência técnica para as famílias rurais e em que a assistência técnica pode ajudar a desenvolver os assentamentos. Outra questão é o crédito. O crédito realmente da forma como está, desenvolve os assentamentos? São temas que esses estudantes podem ajudar a aprofundar. E vamos ter técnicos mais comprometidos com o meio rural, porque a maior parte dos agrônomos hoje... Por exemplo, não têm veterinários na área rural, no estado do Ceará, porque todos os veterinários são formados na capital e não conseguem ficar no Sertão Central porque é muito quente. Não estão se formando pensando na melhoria do rebanho lá do campo. Para nós é uma atividade com que estamos aproximando cada vez mais movimentos sociais e universidades. Estamos tendo um processo de aprendizado conjunto que leva a quebrar certos preconceitos em relação ao campo, aos trabalhadores e aos movimentos sociais do campo.

Adital: O financiamento para o setor rural cresceu no governo Lula ou não e que resultados está trazendo na vida dos lavradores?

Neném: Como eu coloquei inicialmente, o modelo de desenvolvimento hoje no Brasil, no nosso ponto de vista, não é sustentável por longos tempos, nem ambiental, nem socialmente, pois ele está desagregando as famílias, degradando o meio ambiente. É o Agro Negócio que recebe investimentos e concessões. No meio rural a gente vê que mesmo o governo tendo aumentado o teto da agricultura familiar com o tal plano safra, ele é um crédito que ainda não está sendo acessível no geral pela burocracia que não mudou para facilitar o acesso aos bancos. Uma outra coisa é que como ele não se casa com uma política de comercialização, como uma política de assistência técnica consistente, uma política de capacitação dos trabalhadores no campo e nos assentamentos, principalmente na área de gestão. Esse crédito termina muito mais endividando do que desenvolvendo os trabalhadores. Então essa é uma preocupação que estamos tendo inclusive para debater um novo crédito para trabalhadores para que este governo deixe alguma coisa boa. Se ele recebeu uma herança maldita do Fernando Henrique ou dos outros governos, não pode deixar a mesma ou pior herança para os trabalhadores. Nós temos o que propor para deixar alguma coisa nova principalmente na linha de crédito que envolva a comercialização, que envolva o seguro agrícola, por exemplo. Se nós tivermos uma seca a gente não tem um seguro que cubra esse prejuízo dos trabalhadores. O que a gente tem, é o PROAGRO que só cobre 70% da despesa com o banco. Onde os trabalhadores vão arranjar mais trinta por cento para pagar o crédito que pegou do banco e o restante para sustentar a família para não morrer de fome durante o período da estiagem, até a próxima safra? Então para poder dizer que o crédito vai desenvolver os assentamentos, nós precisávamos ter casado o crédito com outras políticas públicas e sociais para o campo.

Adital: Qual a relação e colaboração entre os movimentos sociais do campo e este governo? Há uma abertura real para o diálogo ou está emperrado?

Neném: Do ponto de vista do diálogo há uma abertura grande, principalmente em alguns ministérios e com o próprio governo no geral, mas há também por parte dos movimentos uma coisa que já está se esgotando, cansando, porque a gente conversa, reúne, faz negociação, faz acertos, mas depois essas metas não são cumpridas. Nós precisamos assentar hoje no Brasil, quatro milhões e meio de famílias sem terra que tem a intenção de voltar para o campo, ou já estão no campo, para trabalhar. Nós achávamos que no governo Lula era importante que ele assentasse um milhão que geraria um salto bom no avanço da reforma agraria. O governo propôs quatrocentas mil famílias assentadas e o que estamos vendo é que não vai chegar nem a cinqüenta por cento dessa meta que o próprio governo propôs. É importante discutir, estar negociando, mas a gente vai negociando questões intermediárias, questões periféricas, mas não o central. Se não desapropria a terra como vamos ter mais assentamentos? Então não adianta ter cesta básica para os acampados, não adianta ter mil e poucos técnicos se a gente não está avançando no processo. Então tem tido bastante diálogo, não dá para comparar o atual governo com o que era antes que sempre nos recebia com a policia. Sim, há uma forma de dialogo, há bastante discussão, estamos propondo por partes dos movimentos sociais não só do MST, mas da CPT, do MAB, do NPA, de todos os outros movimentos do campo, há uma vontade de propor, de discutir, mas há também essa questão geral que é o não avançar, não ver as próprias propostas do governo avançar. E a gente vai ficando e vendo que os outros setores têm bem mais avanços. A gente realmente tem essa necessidade que as coisas avancem. A nossa preocupação é que o ano que vem comece em março e termine em maio. Então como é que nós vamos avançar nesses processos que até agora estão emperrados.

Adital: A formação de adultos e crianças nos assentamentos é uma das primeiras e principais preocupações do MST, como também a formação dos quadros do movimento...

Neném: Esse é um grande debate do movimento. De fato uma das primeiras coisas do assentamento que a gente tenta implementar é as experiências da educação. Nós estamos vendo que conseguimos nestes últimos anos dar um avanço na formação técnica dos nossos filhos e dos nossos assentados. Hoje, nós estamos em parceria com quarenta e cinco universidades, trabalhando com recursos do PRONERA, fazendo cursos de diversos tipos, seja cursos técnicos, de agropecuária, cursos de Agronomia, de Pedagogia, de Magistério de História, agora está começando de Direito. Estamos discutindo para começar cursos de Veterinária, para qualificação técnica dos filhos dos trabalhadores para que a gente aproxime a educação ao campo. E mais: nós estamos avaliando que é preciso dar mais um avanço massivo nesse trabalho da educação. Nós investimos e trabalhamos na linha da alfabetização dos nossos trabalhadores, conseguimos erradicar em alguns assentamentos, principalmente aqui no Ceará, erradicar o analfabetismo, mas ainda não é em todos os assentamentos. Não tivemos o resultado que queríamos ter e isso está ligado, por exemplo, ao fato que nós não conseguimos construir nenhuma escola nesses últimos anos. A maioria dos assentamentos não tem escola para os alunos estudarem. E os jovens ainda estão saindo dos assentamentos para ir estudar na cidade. Na marcha a Brasília, foi tirado um acerto com o Ministério da Educação que garantiu a construção de quinhentas escolas no meio rural. No mínimo cem dessas seriam feitas nas áreas de reforma agraria. Só que até agora, saiu a lei, já começamos a discutir, mas não sabemos quando é que vai começar a construção dessas escolas nos assentamentos. E nós precisamos também de mais investimento na educação, de mais qualificação dos educadores para avançar nesse processo. Apesar de ser uma preocupação do movimento, isso é obrigação do estado, é obrigação do governo. O nosso papel é propor para eles. Nós temos pedagogia, nós temos propostas, nós temos lutado para conseguir mais recursos para isso e garantias. Mas tem que ser uma política publica de governo, não só para o MST, não só para as áreas de reforma agraria, mas para o conjunto dos trabalhadores em geral. (ADITAL)

Fuente: ADITAL

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