Proposta para uma Política Nacional de Biossegurança (PNB), Miguel Pedro Guerra e Sílvio Valle

Esta política deve incluir o Princípio da Precaução, com transparência, publicidade e controle social

A Lei de Biossegurança, sancionada pelo presidente da República, em janeiro de 95, sofreu vetos aos artigos que criavam e conferiam as competências à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).

Seu decreto de regulamentação, de dezembro do mesmo ano, incorporou, equivocadamente, parte de artigos anteriormente vetados quando da sanção da lei.

Decorridos sete anos de vigência do aludido marco legal, uma decisão judicial considerou que a CTNBio era virtual e que suas decisões não possuíam legalidade. No intuito de resolver o imbróglio jurídico, foi editada, em dezembro de 2000, uma Medida Provisória que restabeleceu parte dos artigos anteriormente vetados pelo presidente da República.

No âmbito da rotulagem dos alimentos contendo organismos geneticamente modificados (OGMs) e seus derivados, o Poder Executivo baixou, em julho de 2001, um limitado decreto com o intuito de regulamentar a matéria a partir de dezembro de 2001, mas até a presente data a rotulagem não se efetivou.

Uma das funções primordiais da CTNBio era propor a Política Nacional de Biossegurança (PNB), atribuição fundamental e estratégica para a implementação de uma biotecnologia sustentável, mas que, por diversas razões, jamais se quer elaborada.

A falta de diretrizes e a maneira de elaboração de Instruções Normativas e tomadas de decisões por parte da CTNBio causam perplexidade e problemas para os diversos atores interessados nos rumos da biotecnologia.

Assim, propõem-se, neste artigo, as bases para uma discussão sobre essa política.

Para ilustrar, tomamos o caso onde fiscal da Divisão de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura e do Ibama, além de não conseguirem localizar a maioria dos experimentos com plantas transgênicas a serem vistoriados, também não conseguiram emitir laudo de multa, devido à ausência de normas específicas, que deveriam ser emitidas pela CTNBio.

A PNB deve constituir-se no instrumento base que possibilite as ações e os procedimentos dos órgãos governamentais responsáveis pela autorização de funcionamento e fiscalização das atividades com OGMs, bem como servir de instrumento orientador para as empresas de biotecnologia e para a sociedade.

Assim, é apropriado que a PNB inclua o Princípio da Precaução, com transparência, publicidade e controle social.

Além disso, deve orientar como se darão as parcerias, não só entre órgãos federais de vigilância (saúde, agricultura e meio ambiente), mas também entre estados e municípios. É fundamental interagir com as demais legislações concorrentes.

O Princípio da Precaução, contemplado na legislação brasileira, estipula que a ausência de certeza científica não deve ser usada como razão para postergar a tomada de medidas preventivas efetivas e proporcionais, para evitar danos graves e irreversíveis à saúde humana e ao ambiente.

Segundo esse princípio, as políticas ambientais e de saúde devem visar à predição, prevenção e mitigação dos danos, devendo considerar a alternativa de menor degradação ambiental.

Este princípio se opõe à diretriz 'ausência de evidência como evidência da ausência' que tem sido adotado nas recentes decisões governamentais, e, por certa desinformação, permeia parcela importante da comunidade científica, a qual poderá ficar perplexa por estar acostumada a tomar decisões baseadas no que é conhecido e não levando em conta as incertezas.

Seria desejável que a CTNBio dividisse com a sociedade a discussão e a decisão sobre temas de tamanha relevância para o país, pois não são assuntos meramente técnicos, mas, sim, multidisciplinares.

A ausência de consenso entre os diversos órgãos governamentais só poderá ser superada após a elaboração de uma PNB consistente.

Sua inexistência e a falta de liderança em nível federal na condução de questões de biossegurança levaram vários estados e municípios brasileiros a criarem e implementarem legislações de biossegurança.

Essa atitude reflete a evidente falta de confiança que a sociedade brasileira possui na CTNBio e que precisa ser urgentemente alcançada.

A PNB deve, então, estabelecer as bases das parcerias entre os órgãos dos governos federal, estaduais e municipais, visando não só a garantia da execução desta política, mas também dividir as responsabilidades sobre as liberações e fiscalizações.

Estas parcerias facilitariam um programa de biovigilância, em especial para fins comerciais. Do ponto de vista da saúde pública, esta estratégia é de importância crucial devido ao processo de descentralização existente nas ações do Sistema Único de Saúde (SUS).

Existe a necessidade de considerar a Política Nacional do Meio Ambiente. Assim, é urgente a necessidade de aprovação das normas de licenciamento ambiental para OGMs e derivados, em fase de elaboração pelo Conama, para permitir ao órgão ambiental operacionalizar suas atividades.

O licenciamento ambiental, apesar de ser instrumento legal, possibilita também o avanço no conhecimento científico, a avaliação de impactos sócio-econômicos e a geração de empregos de alta qualificação científica, tecnológica e gerencial.

Considerando o direito do consumidor de saber a origem e as características do produto que consome, é de fundamental importância uma PNB que contemple a rastreabilidade dos OGMs.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) acaba de aprovar o regulamento técnico para o Registro Especial Temporário (RET) de OGMs com características de agrotóxicos e afins e o Ministério do Meio Ambiente está em fase de elaboração de seu regulamento específico.

A comunidade científica tem papel relevante neste processo, pela sua capacidade de entender, debater e propor encaminhamentos sobre estes assuntos.

Nesse sentido, é importante que as diversas correntes científicas sejam explicitadas, juntamente com as questões sócio-econômicas e culturais, para que o debate alcance os mais diversos setores da sociedade.

Desta forma, a PNB deve fundamentalmente contemplar preocupações relacionadas com o ambiente e a saúde pública. Para tanto, o Princípio da Precaução é imprescindível. O consenso dentro do governo e as parcerias com estados e municípios são prementes.

A introdução de tecnologias agrícolas não pode ficar somente a cargo e por determinados segmentos de agricultores e cientistas.

Vejamos o caso da cultura da cana-de-açúcar que hoje é considerada como uma das responsáveis pelo efeito estufa devido às queimadas, ou da Revolução Verde pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e que gerou vários problemas de saúde pública, como foi constatado pelo Centro de Informações Toxicológicas da Fundação Oswaldo Cruz.

Apesar de estar 'sub judice', e conseqüentemente aguardando a sensata decisão do Tribunal Federal Regional de Brasília, qualquer que seja, é premente que se estabeleça uma PNB, e que leve em consideração os interesses nacionais e que a introdução dos transgênicos necessitam de uma análise interdisciplinar.

Finalmente, há que se estabelecer um pacto com a sociedade, no qual a ciência deve avançar com efetivo diálogo social.

Num país democrático, a sociedade tem o direito de decidir livremente sobre os novos produtos e serviços gerados pelas novas tecnologias, nos quais as incertezas são maiores que os riscos conhecidos, apesar de consideramos o potencial de benefício que o uso controlado da tecnologia poderá proporcionar.

Rubens Nodari e Miguel Pedro Guerra são professores da UFSC, Silvio Valle é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz

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