Brasil: Uma contraproposta ao pensamento único

Idioma Portugués
País Brasil

Em tour de lançamento de seu livro “O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos”, o economista equatoriano Alberto Acosta viu e ouviu um Brasil diverso.

Alberto Acosta é uma das principais vozes críticas ao desenvolvimentismo primário-exportador que domina as economias e políticas na América Latina. Com uma trajetória pouco ortodoxa – levando-se em consideração que sua vida profissional teve início nas fileiras da estatal Petroequador –, o economista equatoriano, de 67 anos, atuou como diplomata de seu país na Alemanha, foi ministro das Minas e Energia do Equador no início do governo de Rafael Correa, em 2007, e foi presidente da Assembléia Constituinte (2007/08) que gerou a que é considerada a mais avançada constituição da América Latina.

Hoje, é parte do corpo docente da Flacso, em Quito, escritor, e estudioso de um paradigma de mundo que desafia a lógica monocórdica que domina largamente a leitura das nossas sociedades nos dias atuais: o Bem Viver, espelho do universo que há muito permeia o ser e estar dos indígenas andinos.

Foi o produto de suas mais recentes reflexões, o livro “O Bem Viver – uma oportunidade para imaginar outros mundos”, traduzido para o português por Tadeu Breda e publicado pela Editora Elefante e pela Autonomia Literária, que trouxe Acosta ao Brasil; para falar da obra, mas também para ouvir e ver o país, conviver e discutir com diferentes colegas, e entender realidades brasileiras que por vezes divergem e as vezes convergem com o seu mundo andino.

A primeira parada desta viagem aconteceu no centro de São Paulo, no Espacio 945, num encontro com o historiador Célio Turino e o antropólogo Salvador Schavelzon. Da capital paulista, Acosta seguiu para um novo encontro no Rio de Janeiro com o ativista boliviano Oscar Camacho e a socióloga Camila Moreno, encerrando sua tour na sofrida cidade de Mariana, em Minas Gerais.

O que é o Bem Viver?

As várias conversas e trocas de ideias que ocorreram nestes três dias buscaram aprofundar algumas questões cruciais: o que é o Bem Viver? O que propõe como alternativa a que, e porque é tão urgente pensarmos nas novas reconfigurações mundiais da economia e da sociedade? E como o Brasil poderia se relacionar com este impulso divergente?

Primeiro, explica Acosta, o Bem Viver não é uma tese, não é um conceito, não tem regras e não é uma fórmula política. “O único que não quero que alguém me diga é o que é o Bem Viver e me dê um manual, porque isso seria o fim do pensar algo diferente. O Bem Viver tem que nos abrir as portas da discussão, não fechá-las”, inicia.

O cerne da ideia do Bem Viver é compreender que o dito desenvolvimento, a necessidade de crescimento e acúmulo às custas tanto da natureza quanto de muitas das populações que dela vivem diretamente, é insustentável e que se faz urgente entender que nós, os seres humanos, não somos dissociáveis do ambiente que nos cerca, tanto o natural quanto o social.

Ou seja, é preciso entender que as teorias do desenvolvimento, mesmo as que têm “sobrenomes” – como desenvolvimento “sustentável”, desenvolvimento com “igualdade de gênero”, desenvolvimento “inclusivo” – não são capazes de romper com os ciclos das desigualdades. E cita como exemplo o progressismo que marcou a política de muitos países da região: “Vemos que estes governos progressistas, quando ganham as eleições, o que fazem é meter a mão na natureza. Mas não são capazes de meter a mão nos bolsos dos mais ricos, todavia os grandes beneficiários destes mesmos governos”.

Contra o pensamento único:

Neste sentido, explica Salvador Schavelzon, o Bem Viver coloca o desafio de pensarmos como é a vida quando sistemas sociais e econômicos não estavam dominados pelo capitalismo; mas a ideia não é recriar formas ancestrais, desfazer expectativa, mas sim desmontar a cobrança de uma resposta universal que sirva para qualquer lugar em qualquer momento.

Ao que acrescenta Célio Turino: “Não é uma volta ao passado; é buscar o fio da história para inventar e criar. A cultura funciona assim, entre tradição e invenção. Cultura é permanência e ruptura ao mesmo tempo”. Ou seja, é preciso integrar no nosso universo outras formas de pensar, mas não como algo exótico. É preciso colocar o pensamento do Bem Viver no mesmo nível das percepções do nosso tempo, descolonizar nosso pensamento e exercitar buscas de outras alternativas.

De acordo com Alberto Acosta, o impulso do Bem Viver apresenta algumas propostas centrais, como libertar-nos da religião do crescimento econômico infinito; pensar uma nova redistribuição dos recursos que se contraponha à eterna persistência da permanência de ricos e pobres; a desmercantilização da natureza; a descentralização do poder e, nesse sentido, a idéia de desurbanização; e potencializar a democracia.

A esquerda no século XXI:

Mas estes desafios nem sempre se encaixam na idéia de socialismo de parte da esquerda latino-americana, ponderam Turino e Shavelzom, principalmente onde o progressismo se confunde com o neodesenvolvimentismo primário-extrativo. Por que?

“O que significa ser de esquerda no século XXI? A esquerda tem que dar respostas aos problemas de exploração e da exclusão do capitalismo que não estejam centradas apenas na exploração da mão de obra. Há outras formas de exploração e de exclusão, como o racismo, o machismo, o colonialismo”, explica Acosta – no que foi respaldado pelo boliviano Oscar Camacho no debate que a UniNômade organizou na UFRJ do Rio de Janeiro: “Nossas esquerdas devem ser as primeiras a serem descolonizadas” (leia aqui).

Tragédias do desenvolvimentismo:

Para analisar os impactos da nova reconfiguração mundial do capital sobre a América Latina e os novos impulsos contestadores que nela vem surgindo, a socióloga Camila Moreno tomou como exemplo o Brasil. “No último período do lulo-petismo, o Brasil construiu sua identidade como um país BRICS, o grande bloco neodesenvolvimentista (composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que hoje está implodindo. A China salvou a economia global a partir de 2008, comprando tudo de todos pra fazer seu desenvolvimento interno”, defende.

“Assim, tudo que sai da Amazônia, por exemplo, e vai se materializar na China, que tem corporificado a aposta no desenvolvimentismo mais maluco que diz que até 2050 todas as pessoas vão ter saído do campo. O campo, esvaziado, será então o lugar da mecanização massiva, da agricultura inteligente ligada aos grandes pacotes tecnológicos, e da exploração de commodities”, explica Camila.

Este panorama, ao mesmo tempo que criticado por setores das esquerdas clássicas, deu margem à diversas teses bastante idiossincráticas. De acordo com a socióloga, o projeto para o país desenhado pelos governos petistas se materializou por meio de uma aliança com setores dos trabalhadores, com o agronegócio, com a construção pesada (empreiteiras), os bancos privados e o BNDES, e se apontava, como horizonte de resolução de graves problemas de desigualdade, a renda petroleira do Pré-sal para financiar a reforma agrária e todas as políticas sociais. “É aí que reside o problema, a nossa esquerda não dialoga com a profunda reconfiguração do capitalismo internacional. E de onde estão saindo os novos impulsos mais contestatórios ao capital?”, questiona.

“Por exemplo, os indígenas munduruku lutando contra o complexo hidrelétrico e hidroviário do Tapajós, não é um movimento pequenininho bloqueando uma obra de infraestrutura. Lá está o coração do projeto de desenvolvimento do agronegócio e do extrativismo primário-exportador brasileiros, que junto com a ferrovia Transoceânica faz parte de uma rota de escoamento de commodities que chegará ao canal que está sendo planejado na Nicarágua e cortará caminho para as exportações chinesas, o que tem um impacto na cadeia global de valores”.

Os crimes ambientais da Chevron e da Samarco:

O alto preço que o desenvolvimentismo e o extrativismo primário-exportador cobra da natureza e das populações mais vulneráveis – realidade que Acosta conhece bem em seu país, que sofreu a desastrosa atuação da multinacional petroleira Chevron na Amazônia equatoriana e, posteriormente, o desmonte da Constituição com a decisão do governo de explorar petróleo no extremo oriente do Parque Nacional Yasuní – foi vivenciado de forma dolorosa pelo economista na chegada à cidade mineira de Mariana, atingida pelo recente rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, de propriedade da Vale e da BHP Billiton.

Nessas condições, falar do Bem Viver, no auditório do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal de Ouro Preto, ficou difícil.

O lançamento se converteu num diálogo de ativistas, estudantes e professores sobre o “Mal Viver” causado pela grande mineração e de outras formas de extrativismo, na América Latina (leia aqui). Acosta lembrou as altas taxas de câncer, na Amazonia equatoriana, área do crime ambiental causado pela Texaco/Chevron.

Na conversa com a antropóloga Andréa Zhouri (GESTA/UFMG), a advogada Isabela Corby, do Coletivo Margarida Alves, Sammer Siman, das Brigadas Populares e Letícia Oliveira do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), Acosta destacou mais exemplos de resistências e vitórias frente à megamineração, nas comunidades de Famantina ou Esquel, na Argentina, ou no departamento colombiano de Tolima: “Muito vezes, as empresas fazem tudo para confundir as comunidades – temos que preparar-nos bem, para resistir com criatividade”.

Mais de 80 pessoas participaram do debate. No auditório, um estudante de jornalismo distribuiu a excelente edição do “jornal-laboratório” Lampião dedicada ao maior desastre ambiental na história brasileira (leia aqui). Mas o caminho em Mariana ainda é longo e um dos desafios é fortalecer as articulações de base e chegar além da comunidade académica, como mostrou a falta de atingidos no público. No mesmo dia, alguns deles, junto a representantes de Mariana, tinham participado de audiência pública, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

Diante da grave crise civilizatória dos nossos tempos, Alberto Acosta pondera: “Nem o Estado, nem o mercado vão resolver nossos problemas. Estes se resolvem a partir da participação comunitária, com democracia direta, com ação direta, que tenham como horizonte duas coisas: a vida das pessoas agora e a construção de uma utopia possível. O grande desafio é combinar curto e longo prazos. Mas uma coisa é certa: o Bem Viver é para todas e todos, senão não é Bem Viver”.

Fonte e fotos: Fundação Rosa Luxemburgo

Temas: Ciencia y conocimiento crítico

Notas relacionadas:

Por qué los glaciares podrían empezar a derretirse más rápido en la próxima década, según científicos

Por qué los glaciares podrían empezar a derretirse más rápido en la próxima década, según científicos

Platos listos para comer no aptos para microondas, el nuevo informe del Observatorio de Corporaciones Alimentarias

Platos listos para comer no aptos para microondas, el nuevo informe del Observatorio de Corporaciones Alimentarias

¿Los alimentos ultraprocesados pueden provocar adicción en algunas personas?

¿Los alimentos ultraprocesados pueden provocar adicción en algunas personas?

Comentarios