Com vitória da direita no Chile, Triângulo do Lítio e metade das reservas globais ficam sob governos alinhados aos EUA; entenda

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Kast no Chile completa bloco pró-EUA no Triângulo do Lítio e pressiona povos dos salares.

A vitória de José Antonio Kast no Chile, no segundo turno das eleições presidenciais de outubro, consolida um novo cenário geopolítico na América do Sul. Pela primeira vez desde que o lítio passou a ser considerado um insumo estratégico global, os três países que formam o chamado Triângulo do Lítio – Argentina, Bolívia e Chile – passam a ser governados por presidentes abertamente alinhados aos Estados Unidos e aos interesses do capital transnacional.

Juntos, os três países concentram cerca de 50% das reservas conhecidas de lítio no mundo, de acordo com informe de 2025 do Serviço Geológico dos Estados Unidos. Bolívia e Argentina têm reservas estimadas em 23 milhões de toneladas cada, e o Chile tem 11 milhões de um total mundial estimado em 115 milhões de toneladas.

A reconfiguração política que se expressa nessa região pode representar uma ampliação do controle das grandes potências sobre as cadeias minerais ligadas à chamada transição energética, baseada na substituição dos combustíveis fósseis por fontes renováveis e eletrificação da frota de veículos.

Com a virada chilena à direita, o bloco regional se completa. Na Bolívia, o recém-eleito Rodrigo Paz prometeu revisar os contratos firmados com empresas chinesas e russas, retomar o diálogo com os Estados Unidos e transformar o país em um dos principais exportadores de lítio do mundo. Sua vitória, em novembro, pôs fim a duas décadas de governos socialistas no país. Na Argentina, Javier Milei já vinha implementando uma política mineral agressiva, com redução de exigências socioambientais e incentivo à mineração estrangeira.

A nova correlação de forças amplia as preocupações de movimentos populares, pesquisadores e lideranças regionais. O que está em disputa, alertam, não é apenas a exploração de um mineral estratégico, mas os termos sob os quais se dará o futuro da América Latina em meio à crise climática global e ao declínio da hegemonia estadunidense, que faz crescer o interesse imperialista sobre o continente.

Kast no poder e o futuro incerto da política do lítio no Chile

Com a vitória de José Antonio Kast, o Chile pode caminhar para abandonar a Estratégia Nacional do Lítio (ENL), política implementada sob o governo Gabriel Boric com o objetivo de ampliar o protagonismo estatal na cadeia produtiva do mineral. A mudança de governo representa um ponto de inflexão na política chilena de mineração, especialmente no que diz respeito à presença pública e ao controle social sobre os recursos naturais.

“O Chile é um dos países que, nas últimas décadas, buscaram disputar uma parcela maior do valor agregado do lítio e do cobre, indo além do papel histórico de simples exportador de matéria-prima”, analisa o economista Gabriel Strautman. Segundo ele, Boric tentou dar um passo adiante nessa trajetória ao propor uma atuação mais direta do Estado sobre os salares, incluindo metas de industrialização e acordos com comunidades indígenas. Kast, no entanto, qualificou essa proposta como “fantasiosa” durante a campanha e prometeu desregulamentar o setor.

Apesar disso, o atual presidente da agência de desenvolvimento econômico do Chile (Corfo), José Miguel Benavente, defendeu recentemente a continuidade da política. Em entrevista, afirmou que “a qualquer governo, de qualquer cor política, interessa aumentar a produção de um material estratégico como o lítio”. Para ele, o contrato firmado entre Codelco e a empresa privada SQM – considerado um marco da política de Boric – deve ser mantido, já que é um contrato legalmente reconhecido pela Contraloria do Estado chileno. Benavente estima que só esse acordo pode render mais de US$ 50 bilhões ao Estado até 2030.

O contrato entre a estatal chilena Codelco e a empresa privada SQM (Sociedad Química y Minera de Chile) é para a exploração conjunta de lítio no Salar de Atacama, a principal região produtora do país.

Esse contrato é um dos pilares da Estratégia Nacional do Lítio (ENL) lançada pelo governo Boric, que prevê parcerias público-privadas com controle estatal, visando manter o lítio como recurso não concessionável, mas com abertura à iniciativa privada sob coordenação da Codelco.

Segundo o executivo da Corfo, o Chile deverá crescer sua produção de lítio até o fim da década, atingindo cerca de 600 mil toneladas por ano. Esse volume colocaria o país como o mais competitivo do mundo em termos de custo–benefício. Isso porque os salares chilenos apresentam alta concentração do mineral e estão próximos de portos de escoamento, o que reduz os custos operacionais.

O economista Gabriel Strautman observa que, mesmo durante governos anteriores à esquerda e à direita, o Chile vinha mantendo um histórico de tentativa de adensamento produtivo, especialmente nos setores de cobre e lítio. “Havia uma tradição, ainda que limitada, de buscar reter maior valor dentro do país. O que se projeta agora é um retorno mais radical à lógica de exportação primária controlada por transnacionais”.

O país já é hoje o segundo maior produtor mundial de lítio e um dos maiores produtores de cobre do planeta. O setor de mineração tem papel central na economia chilena há décadas e foi inclusive reforçado durante os anos da ditadura de Augusto Pinochet. A chegada de Kast, ex-militar e admirador declarado do general, sinaliza um alinhamento ainda mais firme ao mercado internacional e aos Estados Unidos, sobretudo em relação à extração de minerais estratégicos.

Para Charles Trocate, do MAM, o Chile sob Kast deve aprofundar suas raízes como um “Estado minerado”, com suas instituições capturadas pelos interesses das empresas extrativistas. “A depender da política que ele adote, vai passar a boiada no Chile como se tentou no Brasil”, alerta.

Maiores produtores mundiais de lítio (2024)

  1. Austrália: 88.000 t
  2. Chile: 49.000 t
  3. China: 41.000 t
  4. Zimbábue: 22.000 t
  5. Argentina: 18.000 t
  6. Brasil: 10.000 t
  7. Canadá: 4.300 t
  8. Namíbia: 2.700 t
  9. Portugal: 380 t
    (Fonte: pubs.usgs.gov)

Maiores reservas

  1. Argentina: 23.000.000 t
  2. Bolívia: 23.000.000 t
  3. Chile: 11.000.000 t
  4. Austrália: 8.900.000 t
  5. China: 6.800.000 t
  6. Canadá: 5.700.000 t
  7. Alemanha: 4.000.000 t
  8. Congo (RDC): 3.000.000 t
  9. México: 1.700.000 t
  10. Brasil: 1.300.000
    (Fonte:  pubs.usgs.gov)
Triângulo do Lítio: a corrida pelo ‘ouro branco’ e o dilema latino-americano

A importância do Triângulo do Lítio aumentou na última década, na esteira da corrida por soluções energéticas de baixo carbono. O metal é considerado indispensável para a fabricação de baterias, o que fez seu preço disparar nos últimos anos. Strautman lembra que, em 2022, o valor do lítio teve uma valorização de cerca de 400% em relação ao patamar anterior, num movimento que ele descreve como abrupto e altamente especulativo. “Com a mesma forma que ele subiu, ele depois desceu”, diz, ao apontar que essa volatilidade alimentou uma corrida global pelo mineral.

Na avaliação do pesquisador, o choque de preços impulsionou novos projetos e uma disputa acelerada por áreas de exploração, inclusive fora do Triângulo. Ele avalia que, ainda assim, a demanda deve continuar sustentando o setor no curto e médio prazo. “A demanda por lítio deverá continuar aquecida nos próximos 5, 10 anos”, afirma.

“A produção vai acontecer com qualquer governo, seja de direita ou de centro-esquerda. O que muda é a forma como o Estado se relaciona com as empresas”, resume Strautman. Ele afirma que, na prática, existe um consenso em torno da exploração dos chamados minerais da transição energética, e que as diferenças aparecem no grau de regulação, na centralidade do Estado e nos espaços de defesa de direitos e participação social.

Para o economista, a mudança simultânea nos três governos da região representa “uma inflexão geopolítica importante” no continente. “A primeira mudança é geopolítica. A segunda é sobretudo na forma como o lítio vai ser explorado daqui para a frente”, diz. Strautman avalia que a tendência é de maior estímulo ao setor privado e de atração de investimentos estrangeiros, o que pode reforçar a presença de empresas transnacionais e reconfigurar as disputas entre capitais.

Na Bolívia, onde o lítio ainda enfrenta obstáculos para alcançar escala comercial, o presidente eleito Rodrigo Paz prometeu colocar o país entre os principais exportadores, abrindo mão do modelo de exploração controlado pelo estado, ao mesmo tempo em que busca reaproximação com os Estados Unidos. Strautman destaca que a Bolívia tem a maior reserva do mundo, mas não figura entre os principais produtores, por dificuldades técnicas e logísticas, o que torna a orientação do novo governo uma peça central do tabuleiro regional.

Na Argentina, por sua vez, o governo de Javier Milei tem aprofundado uma agenda de liberalização e abertura ao capital estrangeiro. O país é o quinto maior produtor mundial de lítio e concentra projetos em províncias do norte, onde os conflitos territoriais vêm se intensificando.

A dependência da exportação de bens primários é um dilema histórico da América Latina. Nos últimos anos, países como Chile e Bolívia tentaram estruturar políticas para reter maior valor agregado na cadeia do lítio, seja com maior presença do Estado, seja com exigências de industrialização local. No entanto, Strautman avalia que a nova correlação de forças aponta para um recuo. “A tendência agora é o reforço de um modelo em que o Estado deixa de ser protagonista e passa a ser um articulador para que empresas privadas operem e capturem esses excedentes”, afirma.

Para Charles Trocate, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o momento combina crise econômica, ofensiva imperialista e corrida por minerais. “Quanto mais os Estados Unidos perdem hegemonia no mundo, mais eles pressionam a América Latina”, afirma. E completa: “O que nós estamos vivendo agora é uma nova rodada de precificação da natureza, em especial os minerais”.

Na ponta do processo, os efeitos recaem sobre territórios e comunidades. Strautman chama atenção para o fato de que a “transição energética” vendida como solução climática aprofunda desigualdades e injustiças ambientais. Trocate, por sua vez, alerta que, na Cordilheira dos Andes, minerar lítio significa também agredir um ecossistema que tem papel decisivo no clima global, o que amplia o peso das decisões tomadas agora no Chile, na Argentina e na Bolívia.

Povos e territórios pagam a conta da “transição”

O avanço da mineração de lítio no Triângulo do Lítio tem um endereço repetido: os salares altoandinos, territórios ocupados há milênios por povos indígenas e comunidades tradicionais. É nesses espaços, marcados por ecossistemas frágeis e escassez de água, que se concentram os impactos socioambientais que raramente aparecem quando o lítio é apresentado como solução “limpa” para a crise climática.

Strautman chama atenção para a assimetria estrutural dessa transição. Os países do Norte global concentram a indústria e o consumo, enquanto os países produtores ficam com os custos ambientais e sociais. “Isso evoca uma série de conceitos, inclusive o do racismo ambiental, das injustiças ambientais”, afirma. Na prática, diz ele, a transição energética reproduz a divisão internacional do trabalho: “Em nome de salvar o planeta, nós estamos apostando numa saída política que é repetição de uma divisão internacional histórica, em que à América Latina cabe ser exportadora de matérias-primas”.

Essa pressão se dá independentemente da orientação política dos governos. Strautman avalia que, mesmo sob administrações de centro-esquerda, a exploração avançou e gerou violações, ainda que existam mais “brechas” para disputa social. “Em um contexto de um governo de centro-esquerda, porque você encontra brechas para defender as questões. No governo de direita, é uma redução dramática dos espaços de luta por direitos”, afirma, ao comparar com a experiência recente do Brasil.

Para Charles Trocate, a formação de um bloco regional alinhado aos Estados Unidos tende a estreitar ainda mais essas possibilidades e intensificar o ritmo de destruição. Ele chama atenção para o caráter estratégico dos chamados minerais críticos e para o papel que a geopolítica passa a desempenhar na definição dos rumos da mineração no continente.

“O projeto de dominação, sobretudo do controle dos bens minerais para o desenvolvimento das tecnologias, se radicalizará”, afirma. E alerta para o impacto em escala planetária: minerar lítio na Cordilheira dos Andes, diz, significa “implodir o papel que [a cordilheira] cumpre no equilíbrio do clima mundial”.

Trocate também aponta que o debate sobre transição energética vem sendo conduzido a partir de modelos que preservam a lógica de acumulação e tornam a natureza um ativo a ser explorado. Para ele, o problema não é apenas “descarbonizar a mercadoria”, mas encarar a crise como um limite do próprio sistema.

Strautman segue na mesma direção ao afirmar que, sob a lógica do capital, a mineração e a produção de energia tendem a pressionar por flexibilização de leis e direitos: “Toda a mineração produzida sob uma lógica do capital vai pressionar sempre por flexibilização de leis, flexibilização de direitos”.

E o Brasil?

No Brasil, a corrida pelo lítio também deixou marcas, ainda que o país não faça parte do Triângulo. Strautman lembra que o boom de preços acelerou o interesse empresarial e ampliou a disputa por territórios.

Apesar de haver prospecções em diferentes lugares do país, a extração segue concentrada principalmente em Minas Gerais, com impactos e conflitos já conhecidos na região do Vale do Jequitinhonha. O economista avalia que o tabuleiro regional pode influenciar o mercado e reposicionar rotas de exportação, mas pondera que isso depende de variáveis técnicas e geopolíticas. “Se de repente os países do Triângulo se voltarem para o atendimento do mercado estadunidense, vai abrir mercado chinês para Brasil, para Austrália”, diz, ressaltando que se trata de uma hipótese.

Para Trocate, o alinhamento regional aos Estados Unidos reforça pressões também sobre a política mineral brasileira, sobretudo pela atuação de setores empresariais e parlamentares interessados em ampliar a exploração dos chamados minerais da transição energética. Ele descreve um cenário de avanço de interesses privados e de tentativa de reorganizar o país como fornecedor de matérias-primas, sem que isso se converta em soberania industrial. “O que nós precisaríamos era de uma indústria que pudesse converter todo esse potencial numa nova economia”, afirma.

- Editado por Nathallia Fonseca.

Fonte: Brasil de Fato

Temas: Crisis energética, Extractivismo, Minería

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