A máquina dos Sem-Terra

Idioma Portugués
País Brasil

Atualmente, as ocupações de terras feitas pelo MST constituem a principal forma de pressão para conseguir a desapropriação das terras. É uma forma de fazer a lei atuar e obter o direito à terra, uma forma de pressionar o governo para ele provar que respeita e aplica a lei. Mas a ocupação é também para essa organização “uma forma de luta contundente, não deixa ninguém ficar em cima do muro [...] é uma forma aglutinadora, não é um grito isolado”

rb.moc.arret@olarileihsan

À guisa de Introdução

A ocupação é o que deu vida à luta pela terra.
Sem ocupação, o MST não nasceria e sem ela morre.
Bernardo Mançano Fernandes (2)

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra tem sido identificado como um movimento com um caráter surpreendentemente novo e inédito. Segundo Dom Tomás Balduíno ele se diferencia de outras organizações principalmente por ter três características: 1) A ocupação massiva da terra, 2) a proposta de um novo modelo de produção, e 3) a abertura a uma diversidade de objetivos que vão além da reforma agrária (Balduíno apud Stédile e Fernandes, 1999). Ao meu modo de ver, é através desse conjunto de elementos e suas diferentes dimensões que conseguimos enxergar nos acampamentos e assentamentos, não só “a forma”, mas também “o fundo” desse movimento chamado sem-terra (3). Nesta ocasião explorarei empiricamente qual é o significado do primeiro desses três elementos “a ocupação massiva da terra”. Parece-me necessário explicitar que o olhar pretendido será levado a cabo numa tentativa de reconstituir e relacionar os diferentes pontos de vista e encontrar o significado que têm a ocupação de terras para os sem-terra do assentamento Sumaré II e do acampamento Terra Sem Males. Este trabalho consistirá também no desafio pessoal de tentar “não se deixar seduzir pelas representações nativas, sobretudo por aquelas que mais agradam à nossa visão de mundo” (Sigaud, 2000: 92).

1) A ocupação de terras no tempo e no espaço

Segundo o MST, a ocupação de terras constitui a essência do movimento. Mas o que o movimento entende por ocupação?

A ocupação é diferente da invasão e a diferença está radicada não na prática mas no significado mesmo dos termos: “Invasão significa um ‘local ocupado ilegalmente´[...] O que o MST faz é ocupar, que significa ‘ter ou possuir por direito´” (Boletim Informativo do Movimento Sem Terra Regional Metropolitana de Campinas, março, 2002).

Segundo Stédile (1999), a ocupação de terras não é algo novo no cenário da luta pela terra no Brasil; o que é novo é a ocupação em massa. O MST aproveitou essa forma legitima e a incorporou como estratégia fundamental de mobilização para conseguir as desapropriações de terra (4).

Stédile continua,

“Se não ocupamos, não provamos que a lei está do nosso lado. É por essa razão que só houve desapropriações quando houve ocupação [...] A lei só é aplicada quando existe iniciativa social, essa é a norma do direito” (1999: 115).

Para entender esse argumento é preciso lembrar que a nomenclatura e os significados relacionados com a apropriação da terra mudam no tempo e no espaço. Cada contexto oferece diferentes matizes.

Para Pessoa (1999) por exemplo, o período entre 1822 e 1850 poderia ser chamado o período das ocupações livres. Segundo este autor, é o primeiro estágio da história dos assentamentos que hoje conhecemos (5). No passado, a prática da ocupação ou da posse no Brasil teve várias dimensões e era ligada a uma idéia de “terra livre”. O camponês ocupava e depois tomava posse do que, segundo Moura (1986), era chamado de morada ou terreno que servia de lugar de habitação e trabalho. Mas o posseiro ou sitiante sempre se encontrava em uma autonomia relativa já que era constantemente ameaçado pela fazenda em formação, era uma espécie de camponês livre, que em qualquer momento, poderia se tornar agregado à fazenda. Segundo esta autora, a idéia de terra livre é mais lembrada então como um projeto do que como uma concretização de sua condição, pois se opõe à idéia de estar à disposição do fazendeiro. Por outro lado, para Ellen e Klaas Woortmann (1997) a terra livre era a terra solta ou terra liberta, nela configuravam-se frentes de expansão camponesa que constituiriam apropriações da terra formando “territórios camponeses”.

Quanto à época mais recente, a primeira ocupação vitoriosa no Brasil, na qual alguns membros do que hoje é o MST estiveram envolvidos, foi feita na fazenda Macali no município de Ronda Alta no Rio Grande do Sul, em 7 de setembro de 1979. Com aquela ocupação se conseguiu a desapropriação das terras e, como numa imagem de uma espiral ou de uma pedra jogada na água, essa ação detonou outras ocupações, contribuindo para a consolidação do MST. Esse foi um processo longo e complexo, que gerou múltiplas discussões entre os agentes envolvidos nessas ocupações. O próprio Stedile (1999) explica como o MST tem incorporado novos elementos, ações e estratégias, através da reflexão das experiências de outras lutas históricas pela terra e das próprias experiências vividas no MST. Hoje em dia, podemos ver que a ocupação se constitui para essa organização como a estratégia fundamental para conseguir a desapropriação das terras. Isto se fez visível desde que foi incorporada como palavra de ordem: “Ocupação é a única solução”, no primeiro Congresso Nacional do MST, realizado em Curitiba em janeiro de 1985. No entanto, a ocupação como estratégia tornou-se mais forte no final dos anos 80 e começo dos anos 90. Stedile e Fernandes (1999) comentam que um dos fatores que favoreceram essa onda de ocupações encabeçadas pelo MST foi o contexto histórico de democratização do país, vivido com o término da ditadura militar (1964-1984). Podemos argumentar que nesse contexto, o marco da Constituição Federal de 1988 foi um incentivo para as ocupações já que, desde então, as propriedades que não cumprem com a sua “função social” podem ser desapropriadas (6).

Atualmente, as ocupações de terras feitas pelo MST constituem a principal forma de pressão para conseguir a desapropriação das terras. É uma forma de fazer a lei atuar e obter o direito à terra, uma forma de pressionar o governo para ele provar que respeita e aplica a lei. Mas a ocupação é também para essa organização “uma forma de luta contundente, não deixa ninguém ficar em cima do muro [...] é uma forma aglutinadora, não é um grito isolado” (Stedile 1999: 113). Mas, numa tentativa de não cair na tentação da sedução dessa frase, exploremos empiricamente o que isto significa a partir da análise de um estudo de caso realizado no acampamento Terra Sem Males, tomando como contraponto o assentamento de Sumaré II.

2) A maquina da ocupação: a espiralidade da luta (7)

Na ocupação da fazenda Capuava (que deu nascimento ao acampamento Terra Sem Males) participaram não só aqueles que foram convidados pelo trabalho de base (8) feito em cidades da região de Campinas, mas também alguns que já tinham realizado outras ocupações e pertenciam a outros acampamentos. Depois, a história se repetiu: os próprios acampados do Terra Sem Males acompanharam várias outras ocupações. A última delas foi no município de Cajamar. Segundo as versões dos próprios acampados, eles foram ocupar aquela terra junto com o acampamento Irmã Alberta, com a finalidade de “ajudá-los a pegar essa terra”. Esse tipo de ação dos acampados constitui parte das obrigações a serem cumpridas. Está explicitado no Regimento interno do acampamento que a obrigatoriedade da participação em ocupações e no trabalho de base “é um dever de todos os acampados”. Numa das assembléias (9)realizadas, no Terra Sem Males esse item, foi lembrado para todos os acampados: “voltem para suas cidades e façam trabalho de base”. Isso significava convidar outras pessoas para irem ocupar uma terra. A ordem foi clara: “não façam o convite para se juntar ao acampamento Irmã Alberta ou ao Terra Sem Males”, mas para se unir a um terceiro acampamento, o Dom Pedro Casaldaliga, que está localizado a 500 metros daqueles dois acampamentos.

Nesse tipo de ação, como o convite destinado a uma ocupação, e inclusive na própria ocupação, não participam apenas os que já formam parte de algum acampamento, mas também aqueles que já estão assentados. Esse foi o caso de alguns membros do assentamento de Sumaré II. Quando alguns deles me falavam “esse acampamento [o Terra Sem Males] saiu daqui”, pareciam fazer referência a várias coisas: (1) a que eles [os já assentados] contribuíram no trabalho de base na cidade de Sumaré “fazendo o convite para ir ocupar umas terras”; (2) a que esse trabalho de base, sustenta-se em redes de parentesco, amizade e vizinhança; (3) e que também foram eles mesmos participantes ativos da ocupação.

Eliane Brenneisen (2003) mostra-nos em um trabalho sobre uma ocupação que aconteceu há vários anos no oeste de Paraná como, dentre as 17 famílias que conformavam aquele acampamento, não só havia pessoas “novas” na prática da ocupação mas uma importante presença de membros de outros acampamentos, posseiros, agricultores que tinham tido outras experiências de ocupação, lideranças do MST e filhos de assentados. Como exemplo disso, observamos que na ocupação que deu vida ao Terra Sem Males, misturou-se no mesmo espaço, uma diversidade de participantes, “novos” e “velhos” sem-terra que, naquele momento estavam, ou já tinham passado pelo processo “educativo” do MST.

Isso também aconteceu com a própria formação do assentamento de Sumaré II. O assentamento I está localizado na mesma área que o assentamento II, no Horto Florestal de Sumaré. O trabalho de base que reuniu as pessoas para fazerem a primeira ocupação daquele grupo I foi feito por membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), ligadas a Comissão Pastoral da Terra (CPT) da região de Sumaré. Esse grupo das CEB´s tinha estabelecido contato, através de alguns membros do Partido dos Trabalhadores (PT) -que estavam envolvidos em mobilizações na região- com membros do MST na região de Andradina (Rapchan, 1993) (10).Segundo Fernandes, esse contato foi estabelecido também “quando algumas pessoas [de Sumaré] que haviam visitado alguns parentes e amigos [na ocupação que foi feita] na fazenda Primavera no final do ano de 1982, trouxeram alguns convites para participarem de uma reunião em Andradina” (1999: 118). Estabelecendo-se esses contatos entre a CPT, PT, MST e pessoas que já moravam na região de Sumaré, realizou-se a primeira ocupação em 1983, na usina Tamoio, no município de Araraquara, SP. Depois de vários despejos, finalmente o grupo fez uma negociação com o governo do Estado e foi assentado em janeiro de 1984, numa área da FEPASA, (11) de 237 ha (Rapchan, 1993). Foi a partir do assentamento desse primeiro grupo em Sumaré, que surgiu a primeira ocupação do grupo que, mais tarde, tornar-se-ia Sumaré II. Assim, aqueles assentados que agora formam parte do grupo II foram convidados pelos já assentados, por militantes do MST, por membros do PT, e por pessoas da CPT para fazer uma ocupação. Fernandes (1999) comenta que o grupo I cedeu para essa ocasião, um caminhão de madeira para a construção dos barracos. Mas o grupo I de Sumaré não só participou com a logística e o material para a ocupação do grupo II, mas também fazendo o convite e a ocupação junto com eles . Fernandes explica:

“Com as experiências do grupo I, os trabalhadores organizados no Movimento dos Sem-Terra de Sumaré resolveram negociar com o recém-criado IAF –Instituto de Assuntos Fundiários- o assentamento de outro grupo que estava se formando. A formação do grupo II aconteceu durante o processo de fundação do MST” (Fernandes, 1999: 122).

Mas, conheçamos, através das trajetórias das pessoas que aceitaram formar parte do grupo II de Sumaré, as experiências, as expectativas, os desejos , bem como as propriedades sociais delas. Estas se tornam fundamentais para entender a própria trajetória do movimento, o envolvimento dessas pessoas com o MST e o significado que para estas têm, ou teve, a ocupação de terras.

Dona Edith foi uma das pessoas que aceitou esse convite para fazer parte do grupo II de Sumaré. Ela morava naquela época em Hortolândia, cidade vizinha de Sumaré. Ela tem 50 anos e seis filhos, cinco deles nasceram no estado de Paraná, de onde Edith há pouco mais de 20 anos migrou junto com seu marido. Conforme Edith, eles vieram morar no estado de São Paulo em busca de uma vida melhor. Lá no Paraná os dois moravam no sitio, mas de acordo com Edith, não conseguiam colher nada : “a terra era ruim, ou estava muito molhado ou dava seca e a gente perdia tudo”. O marido trabalhava junto do pai, nas terras de uma fazenda que ele administrava. Sua família, vários anos antes, tinha migrado do estado de Minas Gerais. Tanto Edith como seu marido conheciam o trabalho na roça. Como a própria Edith disse “a gente foi criado na roça, então tudo o de roça, eu já conhecia, já tinha feito, eu já era acostumada com a roça, da cidade eu não gostava”. O marido dela “veio para a cidade” com um dinheiro que o irmão, que já morava em Hortolândia, tinha “arrumado para ele”. Ele veio com a expectativa de “arrumar um serviço na cidade”. O marido de Edith ficou um tempo sozinho até encontrar um emprego e, assim que ele encontrou, mandou a Edith vender tudo o que tinham lá no Paraná e vir se reunir com ele. Assim, Dona Edith veio para Hortolândia junto com suas crianças. Ela ficava em casa cuidando delas até que seu marido perdeu o emprego e ela teve que trabalhar de bóia-fria para ajudá-lo (12). Segundo ela, seu marido nunca ficou muito tempo em um emprego, sempre estava mudando. Ela lembra que ele já tinha sido convidado para formar parte da primeira ocupação do grupo I, mas uma das condições para fazer ocupação era ser desempregado, e ele ainda tinha emprego. Seis meses depois ele estava desempregado de novo e decidiu ir “atrás da terra”. Embora já existisse o vínculo com o MST no momento em que os assentados do grupo II assistiram àquilo que denominam de reuniões da terra, estes assentados lembram que foram convidados às primeiras reuniões, principalmente, por membros da igreja.

Dona Edith comenta como foi esse processo:

Aí a gente ficou sabendo desse grupo I e ele [o marido] queria participar das reuniões, lá falaram que era só para quem estivesse desempregado e ele não era, mas ali depois [ele estava desempregado] surgiu essa outra [reunião] e ali ele foi [...] aí a comunidade da igreja, os vizinhos de Hortolândia convidaram a gente. Eles falaram que era para ir acampar, que se as crianças passavam fome, era para ir.

Dona Yolanda, cunhada de Edith também é assentada no Sumaré II, ela e seu marido, seu Antonio, também atenderam ao chamado para ir ocupar terra.

Dona Yolanda e seu Antonio moraram num sítio no estado do Paraná mas, segundo eles: “a terra não deu para manter todo mundo”. Eles decidiram vir para o estado de São Paulo, na região de Campinas onde, finalmente, “pegaram a terra”: Vejamos nas próprias palavras de Yolanda qual foi o caminho percorrido por ela e seu marido:

Lá [no Paraná] a gente arrendou [outras terras], esse ano a terra não deu nada, nem o dinheiro que a gente gastou para arrendar, mas era terra muito ruim, chegou um sol e acabou com tudo, aí a gente teve que sair para trabalhar fora, para poder comprar comida porque as crianças estavam pequenas [...] aí venceu o contrato. Com o que ganhamos em outro trabalho, depois deu para alugar outro sítio, lá a gente ficou três anos e a gente voltou de novo para a terra do meu pai, nossa! A gente andou! Depois a gente veio para cá [Sumaré] porque lá estava muito difícil, as terras muito fracas e com um monte de filho para criar [...] meu irmão tava aqui, aí meu marido veio e falou: “quem sabe eu arrumo um emprego” e eu fiquei lá com as crianças aí depois eu vim, depois meu outro irmão veio e a gente arrumou emprego para ele. Aí eu trabalhei de [empregada] doméstica 8 meses e depois de bóia-fria dois anos catando feijão, depois trabalhei noutra casa [de empregada doméstica], voltei para bóia- fria de novo, e ele [seu Antonio] foi mandando embora do seu trabalho lá de Campinas, e foi cortar cana, e aí saiu a reunião das terras e falei “você vai participar da reunião das terras porque na cidade não dá para resistir não, com monte de filho pequenininho.

Fernandes (1999) menciona que na década de 80, na região de Campinas houve um importante crescimento industrial que atraiu grande número de trabalhadores para as cidades e municípios próximos à cidade de Campinas. Inclusive, a maioria das pessoas que conformaram o grupo I e II de Sumaré já estava na cidade e fazia parte de um contingente de “expropriados ou expulsos do campo [que] haviam migrado em busca de condições de sobrevivência” (1999: 117).

Uma outra assentada, Dona Thereza, moradora do Sumaré II, afirma que uma das motivações que a levou a fazer parte dos sem-terra foi a idéia de criar, tal como ela foi criada, os filhos na roça. Mas também porque esta parecia ser a única alternativa, naquele momento, para ter uma vida mais digna para ela e sua família.

Dona Thereza relatou-me uma série de condições que a levaram a assistir “às reuniões da terra” e depois “animar-se a fazer ocupação”.

Vejamos suas próprias palavras:

A gente veio pegar a terra por causa da necessidade, da fome. Meus filhos não tinha estudo e todos tinha que trabalhar e morando naquelas favela e eles ganhavam aquela mixaria e na cidade pagando aluguel, meu marido bebia muito [...] Meu filho foi mandado embora do trabalho, ele trabalhava no mercadão lá em Rossolem (13) onde a gente morava, aí o patrão dele disse que não ia dar para pagar mais ele [...] meu marido trabalhava numa firma mas ganhava muito pouco e não dava para pagar aluguel, pagar água, pagar luz aí eu estava cheia de sofrer tanto, estava toda atordoada da cabeça porque meu filho começou a beber, a usar droga [...] meu caçula estava com 7 anos, todo mundo estava passando fome na cidade. [...] Aí a prima do meu marido me convidou a participar [das reuniões] e eu sempre sonhei com ter um pedaço de terra para mim plantar e ter todos meus filhos perto. Aí eu participei mesmo, mas meu marido xingava e xingava, mas aí eu fui na reunião lá em Matão, eu tinha os neto para cuidar e, aquele sofrimento! aí saiu a noticia de que iam ocupar a terra aí pedi dinheiro prestado, paguei o ônibus e fui aí tinha monte de pessoas que tinha ido porque estava desempregado mas eu não ia com essa intenção não, eu queria trabalhar.

O grupo II de Sumaré formou-se animado por uma série de motivações e condições particulares. Além de uma situação econômica difícil, estas assentadas apontaram o fato de estar vivendo também uma situação emocional da qual não gostavam. Afinal, o mundo social também é feito disso. Nos depoimentos apresentados destaca-se o forte desejo que essas assentadas tinham de criar os filhos em um ambiente melhor. Sem dúvida, esse conjunto de condições fez com que a ocupação do grupo II acontecesse. Mas também outro fator fundamental foi o fato dessas pessoas serem parentes, vizinhos ou conhecidos do grupo I.

Sumaré II demorou muito mais tempo do que o grupo I para ser assentado. A primeira ocupação foi realizada em 1985, e só em 1988 os acampados foram definitivamente assentados no terreno que atualmente ocupam, numa área também da FEPASA que estava sendo alugada para a usina Santa Bárbara. É interessante ressaltar a relação que os agora assentados no Sumaré II estabelecem com a própria história do assentamento. No mês de maio de 2003 foi feita uma festa no assentamento comemorando os 18 anos “da conquista do sonho”, fazendo referência à primeira ocupação naquele lugar ou, em outros termos, “quando entraram nessas terras”. Faz 15 anos que foi decretada a emissão de posse do assentamento II mas, faz 18 anos que o Sumaré II começou a existir como grupo. Assim, quando se pergunta a qualquer assentado sobre a história do lugar sempre fazem referência à primeira ocupação e não quando se tornaram assentados. Esta possibilidade de brincar com a temporalidade lembra-nos que as estratégias também consistem em brincar ou manipular o tempo, o tempo da ação (Bourdieu, 2002).

Os assentados do Sumaré II haviam participado desde o primeiro ano de acampamento “quando entraram nas terras”, do trabalho de base de outras famílias que, anos depois, conformariam o Sumaré III, grupo assentado em Porto Feliz-SP. Segundo as informações colhidas em campo, tal como aconteceu com o grupo I e II, os integrantes do grupo III que aceitaram ir para o que eles chamam de reuniões da terra, já conheciam alguns assentados do grupo I e II. Afinal, também muitos deles eram vizinhos em Hortolândia, Sumaré ou Campinas e, inclusive, parentes.

Um autor explica que as reuniões, entre trabalhadores rurais, “criam um espaço de sociabilidade que contribui para a consolidação de redes de relações que atravessam a estrutura formal das organizações” (Comerford,1999: 47).

Um trecho de uma poesia escrita por Dona Thereza, é significativa a esse respeito:

“Eu peço com fé e esperança para os meus irmãos...
Para eles conseguir as outras terras para defender o pão...
Que é o grupo III do meu coração”.(De Souza e outros. s.d.)

Hoje em dia, são os assentados e os próprios filhos dos assentados que acompanham outras ocupações como aquela do acampamento Terra Sem Males.

Para Fernandes (1999), esse tipo de ação que parte dos assentamentos, conforma o que ele chama de “territorialização da luta”:

“Territorialização da luta pela terra é o processo de conquista da terra [...] A luta pela terra leva à territorialização porque com a conquista de um assentamento abrem-se as perspectivas para a conquista de um novo assentamento. Cada assentamento é uma fração do território conquistada e a esse conjunto de conquistas chamamos territorialização” (Fernandes, 1999: 78).

Deste modo, retomando uma frase de Carvalho (2002), é provável que um dos “segredos íntimos” do sucesso e da capacidade organizativa e de mobilização da Organização dos Trabalhadores Rurais Sem-terra seja a sua capacidade de “constituir-se como um tipo de sociedade em rede” (Carvalho, 2002: 244), onde as relações interpessoais, os laços de vizinhança e amizade pré-existentes tornam possíveis as ocupações de terras.

Alguns autores (Sigaud, 2001; Brenneisen, 2003) que têm trabalhado sobre acampamentos chamam a atenção para o fato de que as redes de conhecidos constituem um fator decisivo para quem decide participar de um acampamento determinado. Estas redes às quais faço referência são um conjunto de inter-relações pessoais através das quais se vincula um conjunto de indivíduos (Barnes, 1987).

Vejamos mais de perto essas redes e as motivações que levaram algumas pessoas a se reunir em um mesmo espaço, tomando por referência a trajetória de alguns acampados do Terra Sem Males. Isto levando em conta, como menciona Bourdieu, que a trajetória é “uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente –ou mesmo grupo-, em um espaço ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes” (Bourdieu, 1996: 189).

Cleusa e seu Alfredo, que moravam na periferia da cidade de Sumaré, foram uns dos que aceitaram o convite para participar da primeira ocupação do Terra Sem Males.

Seu Alfredo conta como seu compadre, assentado em Sumaré , insistiu para que eles fossem “ganhar a terra”. Seu Alfredo lembra que na primeira ocupação na fazenda Capuava ele chegou primeiro junto com um filho. Um mês depois, Dona Cleusa tinha deixado seu emprego de doméstica na cidade de Sumaré para juntar-se no acampamento a seu marido e seus três filhos. Ambos pensavam “que a terra ia sair rápido” mas, pouco a pouco, conversando com outros acampados que vinham de outros acampamentos, souberam que era um processo demorado.

Alfredo explica que ele aceitou o convite do compadre porque “na cidade não dá para criar os filhos, tem muita droga. Meus filhos tinham muitos amigos lá... uns que não prestavam”.

Seu Alfredo e Cleusa venderam a casa que tinham na periferia de Sumaré por 2000 reais e decidiram unir-se ao Terra Sem Males. Segundo eles, depois de mais de um ano de acampamento e de mudar de um lado para outro, o dinheiro da casa acabou mas, apesar disso, eles continuamente expressavam a vontade de não querer morar mais na cidade, pelo menos nas condições que eles tinham lá em Sumaré. Alfredo é aposentado e, para ele, sendo acampado “não perde nada e sim pode ganhar muito”, pois “se pegar terra não vou ter que trabalhar para mais ninguém”.

Este raciocínio pode ser, igualmente, encontrado no depoimento de outros acampados. Beto, como é apelidado Luiz Florêncio, também participou da primeira ocupação do Terra Sem Males. Foi convidado por seu José, um conhecido que estava acampando em uma fazenda perto do sítio onde ele trabalhava em Sarapuí.

Deixemos Beto contar como chegou até o Terra Sem Males :

Seu José, que mora lá, que é o... no caso assim o... cabeça lá de dentro [do acampamento], né? Ele me convidou...que ia ter esse assentamento aí, e era pra mim vir. Era para eu estar lá mas não fui, via pela televisão e a gente vê que é um polícia batendo nos outros e tal, eu fiquei com medo né. [...] Eu tava lá na fazenda. Eu comprava cavalo dele, vendia pra ele, né? De repente eles ganharam as terra [...] Eles demoraram, deixa ver... mais ou menos um ano, eles ganharam. Claro que já vinha, já há 4 anos de outro lugar né? Andando, pra lá pra cá, depois eles entraram na fazenda, aí ele falou: “já que você não ganhou terra aqui, é melhor você acampar [...] E meus vizinhos [falavam]: “aí, vai bobo! cê vai apanhar aí, vai” [...] fiquei dois meses pensando, quando eu tava em casa um dia de sexta-feira, ele [José] chegou “Amanhã o caminhão vai passar aqui, que vai pegar o pessoal”, eu nem acreditei. Tomei até um susto! “Vai passar o caminhão e um ônibus” eu falei “é verdade?, então ta bom” Agora resolvi vim, já tem um ano, vai fazer um ano e dois meses.

Beto mencionou, que tinha medo de ir fazer ocupação: “o pessoal falava na televisão, que... vai apanhar! A polícia vai bater em você, tal” e eu ficava com medo, né?” Mas ele decidiu arriscar, ou como ele mesmo relata: “resolvi vir, já tem um ano, vai fazer um ano e dois meses e espero que dê tudo certo, né? Se Deus quiser, dê tudo certo pra gente, né?”

Beto, tal como Cleusa, Yolanda e Edith, expressou a vontade de querer não só uma vida melhor para ele mas também para seus filhos, e nessa busca também pretende encontrar uma mulher. Esse parece ser também um dos motivos pelos quais Beto aceitou o convite do seu amigo.

Tal como seu Alfredo e Beto, o desejo de ser autônomo também é destacado por José Pereira, apelidado como Chicão, como um dos motivos que o levou a fazer ocupação. Como ele costuma dizer, “eu sou uma pessoa que gosto de viver independente”. Chicão explica que desde que era novo gostava do trabalho e de não depender de ninguém.

Para este acampado o fato de estar acampando para “ganhar a terra” representaria não só não ter patrão mas também não ter que pedir nada para os filhos, muito pelo contrário, poderia oferecer um lugar para eles. Mas, por outro lado, “ganhar uma terra” representa também uma alternativa ao desemprego. Para ele, esses são, entre outros, os motivos pelos quais aceitou ir “atrás da terra”. Chicão morava em Campinas e foi convidado pelo seu irmão, que já tinha participado de outras ocupações. Ele [seu irmão] conhecia o MST e “convidou-o a conhecer o movimento”.

Deixemos o próprio Chicão contar esse acontecimento:

A história que eu vim parar nos sem-terra é devido que a cidade... ela tava, como eles dizem lá fora, né? Os político, tava um pouco inchada né?, o baixo salário que tá hoje, o desemprego tá muito grande, na cidade, tá difícil [...] Eu estava desempregado. Aí eu fui e fiz aquela, aquela inscrição no correio pra requerer terra do INCRA, e de lá fui conhecer o movimento, e nessa luta, meu irmão foi embora, retornou a Campinas. Ele foi junto com nós lá na fazenda Capuava, ficou menos de um mês e foi embora [...] Mas o que me trouxe aqui foi o financiamento, foi isso que levou meu pai para a cidade, foi por causa disso que nós viemos parar na cidade.

Para Chicão, financiamento significa dívida. Segundo ele, foi por causa de uma dívida com o banco que o pai dele perdeu o sitio que ele tinha no Paraná e foi também por causa de uma dívida que Chicão decidiu acampar para “pegar uma terra e não dever pra ninguém” ou, como ele mesmo disse, “é isso que trouxe nós com os sem-terra”. Assim, Chicão que tinha uma casa da Cohab (14)em Campinas, deixou-a para seu filho e decidiu fazer ocupação na fazenda Capuava e, portanto, fazer parte do Terra Sem Males.

Como vimos, através dos depoimentos acima apresentados, esses ocupantes do Terra Sem Males, tal como os assentados do Sumaré II, são pessoas que foram criados no campo e migraram para as grandes cidades procurando alternativas de emprego e sobrevivência. E, vindo de origens tão diversas encontraram-se, também por motivos diversos, em um mesmo espaço, o acampamento Terra Sem Males, onde se tornaram, em abril de 2002, “novos acampados” (15). Assim “as trajetórias de vida [dos assentados e acampados] guardam semelhanças em certos aspectos, as diferenças são maiores o que faz que seja cada uma, uma história singular” (Brenneisen, 2003: 54).

Em todos os casos acima apresentados, os acampados foram convidados por um parente ou conhecido que já conhecia o movimento ou que já tinha participado de outras ocupações. No acampamento também encontramos esses “velhos acampados”, pessoas que já tinham prática em ocupações.

Como exemplo estão Gracilda e seu Adelmar apelidado como Índio, que à diferença de Cleusa, Alfredo, Beto e Chicão, já tinham estado em outros acampamentos. Faz cinco anos que acompanham os sem-terra indo de acampamento em acampamento participando de ocupações para “poder ganhar terra e criar seus filhos na terra”. Índio disse não ser militante do MST, mas só sem-terra (16). Índio tomou conhecimento dos sem-terra há cinco anos atrás, através de um vizinho que tinha em Vitória [Espíritu Santo], seu estado de origem. O último acampamento onde Gracilda e Índio estiveram foi no Vale de Paraíba. De acordo com eles, os militantes de lá os mandaram para a Regional de Campinas e daí para o Terra Sem Males porque ia ser mais fácil que fossem assentados nas terras perto de Campinas. Índio está interessado em trabalhar não só na terra mas trabalhar “mexendo com negócio de peixe”. Mencionava que, sendo do litoral, conhece bem desse assunto. índio saiu do acampamento Terra Sem Males junto com sua família para juntar-se ao acampamento Tomás Balduíno onde, segundo ele, será organizada uma cooperativa de criadouro de peixes, quando os acampados forem assentados.

Seu Zé Antonio também é dos “velhos” acampados no Terra Sem Males. Diferentemente de Índio, Alfredo, Cleusa e Chicão, há mais de 15 anos que participa como militante no MST. Ele tem ido de acampamento em acampamento “ apoiando o movimento”. Já estando acampado no Terra Sem Males, e cumprindo com seu compromisso com o movimento, foi fazer trabalho de base em Limeira, onde ele morava.

Este caso ilustra aquilo que o MST chama de “frente de massa”, que Lopes (2002) define como “inúmeros militantes que se deslocam pelo interior do país e arregimentam famílias de posseiros, moradores em periferias das cidades, núcleos rurais, etc” (Lopes, 2002: 290). Está prática, como já vimos, é traduzida pelas redes sociais das quais os sem-terra fazem parte e portanto “prevalece [e ao meu modo de ver é fundamental] o que costumamos chamar de “boca a boca”: alguém que soube do acampamento conta para outro que, por sua vez, passa adiante, até alcançar a família ou os indivíduos ou os grupos que se dispõem arriscar alguma possibilidade junto ao Movimento” (Lopes, 2002: 290).

Seu Zé Antonio explicava como, ao fazer o convite para ocupar a terra, não deve se falar para as pessoas para irem atrás de um sonho mas sim de um objetivo. Ele explica:

Não vai com um sonho não, porque a gente tem costume de falar no movimento sem-terra de “realizar nosso sonho” só que ali já falou o contrário, não vai pro movimento sem-terra com um sonho, vai com um objetivo, porque o sonho... você acorda e ele passou, por isso muita gente que vem com “um sonho”, por isso que não pára dois, três meses num acampamento, ele vem com “um sonho” e na hora que ele acordar já tá ali. Agora, aquele que vem com um objetivo vai lá na frente, não sei quando mais a gente está chegando lá, no objetivo ele vai chegar, vai buscar. Agora... o camarada do sonho não.

Lemieux (1999) menciona que nas redes sociais não só circulam recursos materiais, mas também informacionais. Essa circulação de recursos torna-se fundamental na “territorialização da luta”. Assim, no convite que se faz durante o trabalho de base para ocupar uma terra, a circulação de informação se mostra como elemento principal. Não circulam somente recursos materiais mas também, retomando o próprio discurso dos nativos, sonhos e objetivos.

Do mesmo modo que os casos já relatados até aqui, outros tantos podem ser apresentados. Vivaldo, que morava em Limeira, agora acampado no Terra Sem Males, foi convidado por seu Zé Antonio para ir ao acampamento. Ele não esteve desde o começo da ocupação mas ficou sem emprego e decidiu “ir atrás da terra”, sabendo por advertência do seu Zé Antonio que “no acampamento, ia encontrar e viver coisas muito duras e que não seria fácil agüentar, mas é o que vem depois dessas coisas... que vale a pena”.

Já dona Cida, líder do assentamento de Sumaré II, costumava convidar as pessoas falando para ir atrás de um sonho que ela já tinha conquistado. Neia e seu Cena, acampados no Terra Sem Males, atenderam ao convite da Dona Cida. Eles moravam na cidade de Sumaré e fazia tempo que a conheciam. Inclusive, em duas ocasiões encontrei seu Cena na casa de Cida, em razão de uma visita. Cena relatou-me que: “foi Cida que nos convidou para ir fazer ocupação”. Segundo Cena, ele “se animou” para ir fazer a ocupação depois que Cida “falou muito do sonho da terra”. Quando lhe perguntei o que era esse sonho, Cena comentou: “isso que a Cida diz de plantar na terra da gente, de ter um lugar nosso onde morar, como a Cida tem”. Cena agora também faz trabalho de base em Sumaré e cumpre com suas obrigações de acampado convidando seus conhecidos e faz circular no convite “o sonho da terra”.

As redes sociais existentes entre os sem-terra podem, portanto, ser de parentesco, de afinidade, de apoio e de mobilização circulando sempre, além de recursos materiais, informacionais (Lemieux, 1999). Essa circulação de sonhos e objetivos se estende para além dos acampamentos e assentamentos dos sem-terra, mas se faz visível nesses espaços. Wanderley (2003) realizou um estudo de caso em um assentamento em Pernambuco, menciona que os laços de amizade e parentesco constituíram a base de circulação de informações sobre a ocupação que levou os sem-terra daquele assentamento a se constituírem como tais. Nas palavras dessa autora, “a união de todos [os assentados] é uma referência unânime dos entrevistados. Ela foi particularmente favorecida pelo fato de que, a maioria dos que viveram no acampamento eram vizinhos, se não parentes ou compadres, portanto, já se conheciam há muitos anos” (Wanderley, 2003: 213).

No assentamento de Sumaré II a concretização dessas redes sociais se faz visível inclusive espacialmente. Geralmente, no terreno destinado à moradia dentro de cada quintal do assentamento, encontramos não só uma casa, mas várias casas pertencentes comumente à unidade de produção familiar extensa onde avós, pais, e filhos juntam-se num mesmo espaço, formando pequenas comunidades conectadas entre si por laços de parentesco, consangüíneo e afim. No acampamento encontramos o mesmo fenômeno, onde não só as famílias mas também os amigos constroem suas barracas perto umas das outras. Portanto, nestes espaços também encontramos o que Lemieux (1999) chamaria de redes de afinidade. Redes de amigos ou conhecidos que, sem serem aparentados, partilham entre si elementos de identificação. Um exemplo é a comunidade evangélica existente tanto no assentamento como no acampamento. Embora alguns sejam parentes e outros não, muitos compartilham o mesmo espaço de moradia e realizam trabalhos coletivos.

Essas redes de afinidades também são aproveitadas para “territorializar a luta”, pois, é também dentro desses espaços, o assentamento e sobretudo o acampamento, que surgem outras identificações e afinidades, e criam-se novas redes sociais. Mas isso não seria possível se os acampados e assentados não cumprissem os compromissos e obrigações com o MST.

3) Compromissos e obrigações

A participação em atividades do MST, entre elas o trabalho de base, faz parte, para alguns acampados e assentados, de um compromisso ou de uma obrigação, de uma troca que tem que ser feita com o movimento.

No Sumaré II, por exemplo, algumas pessoas participam “voluntariamente” das atividades políticas do MST (como marchas, ocupações, caminhadas, etc.). Dona Edith, por exemplo, disse não ter vínculo com o MST , mas que participa das atividades por sentir um compromisso já que “ajudaram a gente a pegar essa terra”. Ela não participou do trabalho de base feito em Sumaré, mas participou já de várias passeatas, a última delas foi uma marcha para Brasília, na qual foi acompanhada da filha. Dona Edith explica:

O MST mandou um ônibus e pediu para gente ir dois de cada família... e assim fomos... eles [o MST] não obrigam a gente a participar mas a gente tem esse compromisso

Dona Malvina explica que ela não participa mais dessas atividades fora do assentamento , mas sim seu filho : “quando falam que tem que ir um da família para passeatas e essas coisas, é meu filho que vai e antes era meu marido que ia”. Mas, segundo ela, sempre tem alguém que cumpre com essa obrigação.

Dona Yolanda, por exemplo, disse que ela não é do MST mas que participa das atividades porque “enquanto houver um sem-terra, ela continuará sendo sem-terra”, com isso ela fazia referência à existência de um compromisso de ajudar para que outros “ganhassem terra”. Ela disse sentir-se comprometida com o movimento já que ela, sua família e os vizinhos do assentamento tiveram “muita ajuda para ter o que tem”. Deste modo, sua participação torna-se um elemento da troca a ser feita com o MST.

Dona Cida considerava-se parte do MST [no duplo sentido de ser militante e fazer parte do movimento] e, como tal, sentia o compromisso de ajudar. Mencionava que aqueles que já são assentados [como ela] “têm que continuar na luta pela reforma agrária e, para isso, o trabalho de base é importantíssimo”. Para ela, cada assentado e cada acampado tem a obrigação de participar no trabalho de base, nas passeatas, nas marchas já que com isso estará contribuindo “a que cada vez existam mais sem-terra com-terra”. Parece-me importante destacar que, principalmente no assentamento, quem cumpre com algumas obrigações como o trabalho de base ou participa das marchas são as gerações mais jovens, os filhos e filhas dos assentados e os militantes como Dona Cida. Mas, como mencionei antes, não só são os assentados que cumprem com as obrigações e os compromissos estabelecidos com o MST, mas também os acampados.

Em várias das minhas estadas no assentamento encontrei acampados do Terra Sem Males que estavam lá de visita, pois haviam passado por seus bairros onde moravam, na mesma cidade de Sumaré, para fazer trabalho de base. Eles comentavam que faziam esse trabalho cumprindo com suas obrigações, mas também, por se sentirem comprometidos não com o MST mas sim com alguns militantes com os quais já tinham estabelecido uma relação de amizade, ou sentiam estar devendo a ajuda que eles tinham lhes proporcionado no acampamento.

Cena e Brauná, por exemplo, falavam que se sentiam comprometidos especialmente com Cida, que é militante dessa organização e foi quem os convidou para fazer ocupação. Inclusive, entre outras coisas, esse compromisso que sentiam impedia-lhes de mudar de acampamento ou de “desistir do acampamento”.

Brenneisen (2003) relata, em seu trabalho sobre um acampamento no oeste de Paraná, como alguns acampados, no momento em que se deu um rompimento com lideranças que faziam parte da ocupação, tomaram o partido das lideranças por se sentirem comprometidos com uma liderança regional do MST que os havia selecionado para participar da ocupação. Esta autora menciona que esse compromisso se traduz como lealdade. No acampamento Terra Sem Males essa lealdade também é reconhecida pelos militantes que fazem o convite. Seu Zé Antonio, por exemplo, sentia-se orgulhoso de que nenhum dos que ele tinha convidado “tinha desistido da luta” o que significa que nenhum deles tinha deixado o acampamento.

Segundo Dona Maria, outra “velha acampada” ela ajudou “um monte de gente a ir para terra”. A irmã dela já é assentada no Carlos Lamarque na região de Sorocaba, também no estado de São Paulo. Segundo Dona Maria, ela contribuiu para que sua irmã “fosse para terra”. Dona Maria é originária do interior da Bahia. Lá ela tinha estado em 10 acampamentos diferentes do MST.

Ela explicava:

Nunca tinha morado em um acampamento, ficava só 8 dias, 10 dias apoiando o movimento, até que um dia surgiu um acampamento novo e me colocaram como a coordenadora daquele acampamento e aí tive que ficar, mas nunca fiquei muito tempo, eu tinha família, tinha filhos para cuidar [...] meu marido odiava isso. Ele não gostava, ele tinha raiva, ele não gosta dos sem-terra, ele xingava de monte de vagabundo. Quando eu saía de lá e ia para casa eu levava o boné e a camisa na bolsa porque ele não deixava. Aí ele falava assim, “como minha mulher você é ótima mas como militante você é uma droga! Aí eu brigava e brigava com ele e com a direção [do MST] também, aí era essa confusão toda[...] Aí depois eu saí [do movimento] por causa desses problemas mas foi por causa de mim que minha irmã se acampou, também por causa da minha sobrinha que quase levou a minha irmã na marra para o acampamento.

Dona Maria mencionou que sua vida “sempre foi cheia de altos e baixos” mas que ela voltou para o movimento por sentir um compromisso não só com o MST mas com os sem-terra. Quando perguntei para ela se compromisso significava ter uma obrigação, ela explicou:

A gente tem uma obrigação sim de ajudar no acampamento. Por exemplo fazer arrecadação [de alimentos] (17) participar do almoxarifado, da farmácia, ajudar né?, mas a gente tem esse compromisso de ajudar os outros, os sem-terra.

Como vemos, as obrigações para os sem-terra parecem ter um significado mais concreto, elas se traduzem através da prática e das atividades do dia a dia no acampamento e no assentamento: a rrecadar alimentos, participar das atividades, reuniões, fazer trabalho de base, fazer ocupação, participar de passeatas ou marchas. Por outro lado, os compromissos parecem adquirir um sentido mais geral e abstrato, mas também se inserem numa dinâmica de obrigatoriedade e traduzem-se através do cumprimento do conjunto dessas obrigações que se manifesta como uma espécie de troca com o MST, com os sem-terra em geral ou com uma pessoa em particular, no caso o compadre, o amigo ou o parente que fez o convite. José de Souza Martins (2003), que foi organizador de um trabalho comparativo de cinco estudos de caso em assentamentos rurais em todo o Brasil, menciona que “em todos os casos estudados, as pesquisadoras observaram a importância tanto da rede de parentesco na mobilização, na luta e no modo de inserção nos assentamentos, como da rede de parentesco simbólico, de lealdades comunais e de solidariedades antigas baseadas em deveres de reciprocidade e de troca de favores” (2003: 19).

Esta lógica das obrigações e compromissos permite-nos entender então a própria lógica das ocupações. Atores, que cumprem certas obrigações e compromissos, mobilizam outros atores, conectados entre si. Assim, a “territorialização da luta” adquire uma forma, como se fosse uma grande espiral. Um assentamento sempre está conectado com um acampamento e, por sua vez um acampamento sempre terá um vínculo com outro, em formação ou já formado.

Sem dúvida nenhuma, essa forma se torna um elemento inovador da “luta pela terra” no Brasil e, especificamente, da ocupação de terras. E a ocupação de terras funciona como uma espécie de máquina de fazer sem-terra, de “territorializar a luta”.

* * *

Neste trabalho procurei mostrar a conexão e relação estreita que existe entre os espaços chamados de acampamentos e assentamentos, neste caso, do acampamento Terra Sem Males e o assentamento de Sumaré II, assim como a existência de redes sociais, através das quais, algumas famílias dos espaços estudados estão vinculadas entre si por laços de parentesco, amizade e vizinhança. A existência dessas redes denotou também uma série de compromissos e obrigações que os acampados e assentados estabelecem com o MST e como outros sem-terra. Todos os elementos anteriores não só permite a continuidade do movimento mas também cria e recria “a maquina da ocupação” que por sua vez forma parte da “máquina dos sem-terra”.

Notas

1. Uma versão preliminar deste trabalho, foi apresentada no III Congreso Argentino y Latinoamericano de Antropología Rural realizado do 3 ao 5 de março de 2004 en Tilcara-Jujuy-Argentina. Os dados empíricos aqui apresentados foram colhidos durante o trabalho de campo realizado de março de 2003 a julho desse mesmo ano.
2. Extraído de (Stedile e Fernandes, 1999: 113).
3. Vou me referir à organização dos Trabalhadores Rurais Sem–Terra com estas siglas (MST), e MST em itálicas quando seja usado como termo nativo. Parece-me necessário explicitar que quando utilizo o termo movimento também o faço na sua acepção nativa, i.e., é assim que os sem-terra entrevistados fazem referência à organização dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Outros termos que apareçam em itálico farão referência também ao termo nativo.
4. Faço uso do termo “estratégia” inspirada nas definições propostas por Bourdieu e Pina Cabral. Para o primeiro, estratégia “é o produto do senso prático como sentido do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido [...] Ela supõe uma invenção permanente indispensável para se adaptar a situações indefinidamente variadas, jamais perfeitamente idênticas” (1987: 79, tradução minha). Pina Cabral, retomando Bourdieu, argumenta que estratégias “não supõem decisões conscientes individuais mas sim práticas sociais que surgem como o resultado agregado do fato que diferentes membros de um grupo social estão igualmente confrontados com contextos de ação semelhantes” (Pina Cabral, 1996: 46).
5. Sonia Bergamasco faz um histórico dos assentamentos e comenta que esse termo, “assentamento”, apareceu pela primeira vez no vocabulário jurídico e sociológico no contexto da reforma agrária Venezuelana, em 1960, difundindo-se depois para outros países. Ela explica: “de uma forma genérica, os assentamentos rurais podem ser definidos como a criação de novas unidades de produção agrícola, por meio de políticas governamentais visando o reordenamento do uso da terra, em benefício de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra” (1996: 7).
6. “Em 1993, a lei 8629 especifica a noção de “função social”: torna a improdutividade, calculada a partir de indicadores técnicos, um dos critérios para caracterizar seu descumprimento” (Sigaud e outros 2001: 39, tradução minha).
7. Entre os sem-terra, o termo “luta” pode ter diversos significados dependendo do contexto e de quem a reivindica.
8. Trabalho de base ou convite são os termos nativos usados pelos sem-terra para descrever o convite que é feito para as pessoas irem fazer uma ocupação.
9. Assembléia é o termo usado para designar uma reunião na qual participam todos os acampados. Diferencia-se de reunião de grupo e reunião de setor, que envolvem só alguns acampados dependendo do grupo ao qual se pertence dentro do acampamento e do setor do qual se participa.
10. A gênese do MST no estado de São Paulo é registrada com a ocupação da fazenda Primavera na região de Andradina, e o posterior assentamento naquela área de 264 famílias, realizada em 8 de julho de 1980 (Fernandes, 1999).
11. Ferrovia Paulista S/A.
12. Bóia-fria é um termo que designa os trabalhadores rurais que vivem como assalariados temporários (Stédile e Fernandes, 1999). Esses autores mencionam que essa designação teve origem entre os assalariados cortadores de cana.
13. Rossolem é um bairro de Hortolândia, cidade contígua à cidade de Sumaré, ambas localizadas a poucos quilômetros da cidade de Campinas no estado de São Paulo.
14. Companhia de habitação Popular de Campinas.
15. É assim que os próprios acampados chamam os recém chegados: alguns deles nunca tinham estado num acampamento antes e outros já eram acampados em outros lugares, mas são novos nesse acampamento.
16. Segundo os depoimentos que foram colhidos durante o trabalho de campo, a maioria dos acampados e assentados faz essa distinção entre ser do MST e ser só sem-terra, que como já vimos, não significa que formem parte dessa organização.
17. Esse é o termo nativo usado para descrever o trabalho que fazem os acampados, cumprindo com suas obrigações, de ir para as ruas das cidades, para lojas, supermercados e instâncias de governo pedindo comida para levar aos acampamentos.

Nashieli Cecilia Rangel Loera: Doctorado en Antropología Social de la Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: rb.moc.arret@olarileihsan

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Fuente: Revista Theomai

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