Brasil: reafirmando a autonomia dos Povos das Águas, a defesa do ecossistema manguezal e da vida comunitária

Idioma Portugués
País Brasil

"Entendemos que sustentabilidade e melhoria da qualidade de vida das comunidades costeiras dependem da garantia dos seus recursos naturais, a exemplo do ecossistema manguezal, e dos espaços de moradia, trabalho e demais dimensões da vida.. O que aparece como desenvolvimento e modernidade pode significar um grande retrocesso no que diz respeito à qualidade de vida, quando se considera somente as possibilidades de lucros e captação de divisas em dólares, em detrimento das necessidades reais das populações tradicionais"

Carta aberta

 

O “Seminário Manguezais e Vida Comunitária: os impactos socioambientais da carcinicultura” e o documento que dele resultou, “Carta de Fortaleza dos Povos das Águas”, têm sido alvos de análises distorcidas por aqueles que se posicionam contrários os interesses do coletivo que construiu esse evento, demandando do mesmo alguns esclarecimentos que restabeleçam a verdade dos fatos e o debate saudável, necessários quando grupos e/ou pessoas disputam sentidos e significados sobre os modos de vida e organização social.

Referimo-nos especificamente ao documento lançado em 1º de Setembro de 2006 pela Associação Brasileira de Criadores de Camarão- ABCC, que traça sobre a “Carta de Fortaleza dos Povos da Águas”, e sobre o citado encontro, uma série de afirmações equivocadas, demonstrando, no mínimo, um profundo desconhecimento dos sujeitos que participaram do Seminário. Os esclarecimentos aqui contidos não só colaboram com a ampliação dos conhecimentos da ABCC, mas também informam aos demais sobre a construção coletiva do Seminário em questão e o documento que dele resultou — e, sobretudo, convidam a sociedade brasileira para um debate sensato e responsável sobre a carcinicultura.

Primeiro é preciso saber que o público principal do evento foram comunidades costeiras, ribeirinhas, indígenas, remanescentes de quilombos, ONGs, Pastorais Sociais e outras entidades representativas do Movimento Social dos pescadores e pescadoras, de todas as regiões do Brasil. Os debates e trocas de experiências foram sistematizados na “Carta de Fortaleza dos Povos das Águas”. Desse modo, este documento representa a visão coletiva de sujeitos que, a partir de suas vivências e experiências, se posicionam em relação a uma temática que é, por razões óbvias, de seu maior interesse.

Nesse sentido, a importância desse documento, e desse evento, reside no seu caráter democrático — expressando a opinião e a voz dos povos que, tradicionalmente, mantêm relação direta com o meio ambiente costeiro, vivenciando no cotidiano todas as problemáticas advindas da carcinicultura, sendo, portanto, em nossa visão, sujeitos cuja legitimidade é inquestionável.

Sabemos que, nesse debate, interesses contraditórios estão postos: de um lado, os produtores medem a sustentabilidade a partir da geração de lucros, e, de outro, as comunidades, os movimentos sociais e as entidades que o compõem, pautam a sustentabilidade a partir da garantia dos bens culturais e dos meios de existência das populações tradicionais. Conseqüentemente, é natural e legítimo que grupos de interesses opostos manifestem suas opiniões e procurem fazer a disputa da opinião pública.

Entretanto, quando essa disputa parte de pressupostos falsos, seja por desconhecimentos, seja por se ter como escolha consciente o levantamento de acusações inverídicas e maldosas sobre os que defendem interesses que lhes são contrários, compromete-se o princípio dialógico do debate. De qualquer modo, ao publicar afirmações falsas e que põem em xeque a idoneidade dos participantes do evento em questão, a ABCC nos provoca a um esforço de restabelecimento da verdade.

Ao contrário do que afirma a ABCC, o seminário não foi “capitaneado” pela ONG Terramar, mas organizado por um grupo de parceiros, a saber: Conselho Pastoral dos Pescadores, Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará, Movimento Nacional dos Pescadores, o Fórum de Pescadores e Pescadoras do Litoral Cearense e o Instituto Terramar. Ressalte-se que no processo organizativo dessa atividade, não existiu hierarquia entre os parceiros — portanto, em nenhum momento se pode afirmar que um ou outro capitaneou ou comandou o evento. Fica também claro que o Deputado João Alfredo, citado pela ABCC como um dos “capitães” do evento, sequer fez parte de sua organização, mas dele participou como convidado, por seu reconhecido trabalho dentro do GT de Carcinicultura da Câmara Federal.

Em sendo o evento realizado por múltiplos sujeitos, conclui-se que a suposição de que o Terramar é a única entidade que apóia a “Carta de Fortaleza dos Povos das Águas” é no mínimo uma profunda ignorância dos processos que já foram explicitados. Mas não se condena aqui tão somente a ignorância — esta é própria de uma determinada condição humana, por sinal bastante superável. Entretanto, não se pode, a partir dela, divulgar informações enganosas. Tal desinformação empobrece o debate e limita-se a difamar e pôr em dúvida o caráter de uma entidade historicamente comprometida com a justiça ambiental, como é o Instituto Terramar.

É preciso destacar que, nesse caso, difamar o Terramar significa subestimar e difamar os outros sujeitos envolvidos na organização, realização e desenvolvimento do evento e de seus resultados. As acusações, além de não considerarem a participação desses outros, se fazem por premissas bastante ofensivas. Senão, vejamos.

A ABCC afirma que o Terramar se aproveita da carência do povo para garantir seus recursos; desse modo, questiona a própria capacidade das comunidades refletirem e concluírem qualquer posição sobre sua realidade, já que simplesmente se deixariam levar por opiniões de outras pessoas e entidades. A falsidade dessa afirmativa é severamente comprovada dentro da própria “Carta de Fortaleza”, que discorre opiniões dessas comunidades com bastante clareza e fundamentação.

Além disso, não custa informar que este Seminário surgiu de uma demanda dos pescadores e pescadoras que sofrem os efeitos destruidores da carcinicultura no seu cotidiano. E, desta forma, procuram, por si mesmos, criar condições de superar o seu isolamento, condição favorável à violência física e psicológica que muitas vezes lhes são imposta por grupos que praticam a atividade de carcinicultura.

Outra premissa diz respeito à incapacidade das outras organizações que construíram o evento, de decidir autonomamente sobre suas políticas e práticas. Ou seja, estariam meramente subordinadas aos interesses do Instituto Terramar. Isso expressa uma injustiça e um equívoco: o não reconhecimento das outras organizações da sociedade civil que questionam a sustentabilidade socioambiental da carcinicultura e que trabalham pela resistência e afirmação das comunidades tradicionais da Zona Costeira.

Continuando a ofensiva aos povos tradicionais e às organizações parceiras do evento, a ABCC desqualifica os reais e legítimos objetivos da “Carta de Fortaleza” ao afirmar que esta tem como mero objetivo garantir a continuidade dos financiamentos do Instituto Terramar. Não bastando a inconseqüente desqualificação, a ABCC cita, erroneamente, como financiadoras do Terramar, a Inter-American Fundation-IAF e a Fundação Bank Boston.

Ainda em seu documento, a ABCC demonstra intolerância com posições divergentes, descrédito e desrespeito para com o conhecimento científico dos nossos pesquisadores ao desconsiderar a legitimidade de estudos realizados nos Estados do Nordeste pelo IBAMA, EMBRAPA, Departamento de Geografia da UFC, Plataforma DhESCA-Brasil (Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) e Relatório da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados, sobre os danos socioambientais promovidos pela indústria de camarão em cativeiro. Dentre os impactos verificados por esses estudos destacamos:

· desmatamento do manguezal, da mata ciliar e do carnaubal;

· extinção de setores de apicum;

· soterramento de gamboas e canais de maré;

· contaminação da água por efluentes dos viveiros e das fazendas de larva e pós-larva;

· salinização de aqüíferos;

· redução e extinção de habitats de numerosas espécies;

· extinção de áreas de mariscagem, pesca e captura de caranguejos;

· expulsão de marisqueiras, pescadores e catadores de caranguejo de suas áreas de trabalho;

· impedimento ou dificuldades no acesso ao estuário e ao manguezal;

· doenças respiratórias e óbitos com a utilização do metabissulfito;

· pressão para compra de terras;

· biodiversidade ameaçada.

Em relação à alegativa do grande potencial de geração de emprego e renda — a mais forte argumentação dos empreendedores —, os dados comprovam que o índice médio de empregos diretos observado na totalidade das fazendas é até 3,20 vezes menor do que o divulgado pela ABCC. No rio Acaraú, por exemplo, foi definido um índice 6,3 vezes menor do que o propalado pelos carcinicultores.

Os dados trazidos por estes estudos e as afirmações das comunidades na “Carta de Fortaleza dos Povos das Águas” dão conta de uma diversidade de opiniões, que não podem ser desconsideradas e, muito menos, desqualificadas sob os argumentos reducionistas expressados pela ABCC. Por outro lado, justificam, e muito, a organização comunitária em torno da problemática, no sentido da garantia da sua qualidade de vidas e da sustentabilidade de seu entorno.

Entendemos, por fim, que sustentabilidade e melhoria da qualidade de vida das comunidades costeiras dependem da garantia dos seus recursos naturais, a exemplo do ecossistema manguezal, e dos espaços de moradia, trabalho e demais dimensões da vida. Não adianta criarmos um emprego na carcinicultura destruindo as condições para manter atividades tradicionais como, por exemplo, a catação de mariscos, coleta do caranguejo, e comprometendo o ambiente do qual dependem muitas espécies marinhas exploradas pelas populações tradicionais.

Nesse contexto, o que aparece como desenvolvimento e modernidade pode significar um grande retrocesso no que diz respeito à qualidade de vida, quando se considera somente as possibilidades de lucros e captação de divisas em dólares, em detrimento das necessidades reais das populações tradicionais.

Fortaleza, 20 de Setembro de 2006

Conselho Pastoral dos Pescadores
Movimento Nacional dos Pescadores
Instituto Terramar
Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará
Fórum dos Pescadores e Pescadoras do Litoral Cearense

Comentarios