Carta política da Rede GTA: “Nenhuma liderança social da Amazônia quer virar herói embaixo da terra”

Idioma Portugués
País Brasil

A atual política econômica do Brasil vem privilegiando as “commodities” de exportação como os grãos, a carne e os minérios. Para as comunidades da Amazônia Brasileira, essa decisão continuada de vários governos coloca em risco os projetos sociais e ambientais voltados para o desenvolvimento justo e sustentável da região. Traz a necessidade externa de barragens nos rios ainda intactos e um desmatamento que nos níveis atuais pode acabar com a floresta em apenas vinte anos. Está em campo uma luta não apenas territorial, mas também simbólica, contra os direitos da sociobiodiversidade formada não apenas pela natureza mas por todos os grupos rurais, tradicionais e indígenas

Assembléia da Rede GTA divulga sua carta política
“Nenhuma liderança social da Amazônia quer virar herói embaixo da terra”

As centenas de lideranças sociais da Amazônia Brasileira reunidas na VI Assembléia Geral da Rede GTA (Grupo de Trabalho Amazônico) vêm alertar as entidades filiadas, os outros movimentos sociais, as autoridades constituídas e o público em geral sobre o grave cenário enfrentado pelas comunidades da floresta e mesmo pelos programas e políticas voltadas para seu desenvolvimento.

A atual política econômica do Brasil vem privilegiando as “commodities” de exportação como os grãos, a carne e os minérios. Para as comunidades da Amazônia Brasileira, essa decisão continuada de vários governos coloca em risco os projetos sociais e ambientais voltados para o desenvolvimento justo e sustentável da região. Traz a necessidade externa de barragens nos rios ainda intactos e um desmatamento que nos níveis atuais pode acabar com a floresta em apenas vinte anos. Está em campo uma luta não apenas territorial, mas também simbólica, contra os direitos da sociobiodiversidade formada não apenas pela natureza mas por todos os grupos rurais, tradicionais e indígenas que conservam a região e que formam, para a maioria dos investidores capitalistas, apenas um obstáculo para a expansão de seu modelo predatório.

Os diversos ataques de setores do Governo, do Parlamento e do Judiciário aos direitos sociais, culturais e ambientais das comunidades amazônicas, configurando-se como porta vozes de setores da sociedade vinculados aos crimes e a manipulações da opinião pública voltadas para a desvalorização da produção familiar e da biodiversidade, demonstram a conivência com a internacionalização de grandes áreas da floresta e com o racismo visível em diversas áreas encobertas pelo discurso técnico.

Na homenagem realizada no evento, muitos outros nomes de pessoas assassinadas em conflitos socioambientais - além da irmã Dorothy Stang - foram lembrados, como testemunhos dessa situação que precisa ser compartilhada com todos aqueles que não esperam o futuro da Amazônia como algumas áreas verdes em meio a uma imensa devastação e injustiça. As lideranças comunitárias da Rede GTA trabalham pelo futuro em que acreditam, com o respeito a suas terras, seu ambiente e seus conhecimentos, mas ninguém pretende virar mártir por causa de interesses que devem preocupar a sociedade brasileira e mundial. E que as ameaçam porque as experiências e propostas das comunidades amazônicas são suficientes para orientar um futuro que não pode ser decidido apenas nos gabinetes ou bolsas de valores. Apresentamos alguns dos temas discutidos no encontro.

Produção Familiar Sustentável

A produção familiar da Amazônia vem se preparando nos últimos 20 anos para ser um importante ator do desenvolvimento sócio-ambiental da região. Contudo, agricultores/as, extrativistas, pescadores/as artesanais, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, continuam a enfrentar velhos problemas para a realização de uma produção sustentável, como a burocracia para o acesso ao crédito, a carência e inadequação da assistência técnica e das pesquisas de ciência e tecnologia às especificidades das populações e dos ecossistemas amazônicos, dificuldades de escoamento da produção, armazenamento, transporte, beneficiamento, acesso ao mercado e garantia de preços mínimos aos produtos.

Os delegados e delegadas do GTA afirmam que a resolução destes problemas encontra-se nas várias experiências alternativas exitosas desenvolvidas por estas populações, desde o manejo até o beneficiamento dos produtos, que precisam deixar de ser pilotos e tornarem-se políticas públicas. Para isto é necessário garantir a adequação das políticas públicas às especificadas regionais e dos povos da Amazônia, como no Plano Safra e nos produtos previstos nas compras da CONAB. Além disso que novos valores, além do econômico, sejam inseridos nas planilhas de viabilidade, como a preservação ambiental, a inclusão social, a garantia dos direitos humanos. É urgente que o governo concretize e amplie o PROAMBIENTE como política de desenvolvimento sócio-ambiental para a produção Familiar, que articula a assistência técnica, o financiamento e a remuneração dos serviços sócio-ambientais gerados por estes segmentos produtivos.

Diversidade Social e Ambiental

A preservação ambiental, a conservação e a sustentabilidade social, cultural e da biodiversidade da Amazônia são compromissos da Rede GTA. Para tanto, é necessário que se promovam ações para um zoneamento ecológico-econômico participativo que fundamente um ordenamento territorial, no qual o manejo de uso múltiplo sustentável comunitário garanta sua conservação e utilização por parte das populações tradicionais, preservando ecossistemas através do equilíbrio das espécies com o seu ambiente, áreas protegidas e terras de uso da sociodiversidade.

Trabalhando as diferenças, e com o apoio de todas as forças da sociedade, contribuiremos para que os grandes projetos econômicos e de infraestrutura, sejam confrontados com os legítimos interesses dos Povos da Floresta. A implementação das propostas esbarra em diversas dificuldades inerentes à realidade social e econômica da Amazônia, mas também oriundas da inércia e ineficiência da máquina administrativa do Estado. A dificuldade de acesso às linhas de crédito por parte das populações tradicionais impossibilita o avanço no sentido da melhoria das condições de vida e de produção, incorrendo na busca por alternativas de geração de renda que não condizem com a proposta de sustentabilidade (ex. garimpo, venda ilegal de madeira, etc.).

A situação na Terra do Meio, que provoca os desmandos e crimes contra trabalhadores rurais, as dificuldades de implementação das Reservas Extrativistas e de manutenção de comunidades tradicionais que ainda não têm terras regularizadas, com ameaças renovadas de novos assassinatos não serão resolvidas com a presença circunstancial do Exército e Polícia Federal, mas com o poder público institucionalizado na região.

A morte de indígenas, como as crianças Guarani-Kaiowá, Xavante e Cinta-Larga, por doenças como a desnutrição indicam a falta de uma política governamental de atenção aos povos indígenas. E o tratamento banal dado pelo governo ao caso é dramático diante da a omissão do Estado às demandas amazônicas.

Monitoramento de Conflitos

Tendo em vista uma estratégia de monitoramento de conflitos para Rede GTA destacam-se os seguintes pontos e aspectos:

Os empreendimentos minerais e o garimpo têm que ser observados e pensados como geradores de conflitos. A implantação do projeto de mineração de bauxita pela Alcoa em Juriti no Pará, a ampliação da operação da Vale do Rio Doce nos estados do Maranhão e Pará, e o garimpo em diversos pontos da Amazônia, têm o potencial de acirrar a disputa por qualidade ambiental e territorial.

A cultura de grãos em larga escala, a pecuária, a exploração madeireira e a carcinicultura, são atividades concentradoras de terras e de disputa por recursos naturais. São promovidas por exploração insustentável dos recursos naturais, grilagem, exploração de trabalho escravo e desmatamento. Tem que ser monitoradas de perto, utilizando-se os melhores recursos tecnológicos disponíveis.

O IBAMA atua de forma ineficiente, pouco confiável e ausente em muitos lugares. São inúmeros os casos de corrupção no órgão, destacando Altamira (PA), onde se relatou que o órgão além de sucateado, tem fiscais não confiáveis, e a situação vivida dos ribeirinhos de Gurupá (PA), onde o IBAMA não analisa nem vistoria os planos de manejo comunitários de baixa produtividade, levando os ribeirinhos para ilegalidade. Nas áreas de limites com outros paises, como a tríplice fronteira no alto Solimões e fronteira Brasil/Bolívia em Rondônia a ausência do estado, o contrabando de madeira e o trafico de drogas tornam os conflitos corriqueiros e violentos.

Obras de infraestrutura privada como barragens anunciadas antes das consultas a comunidades locais (rios Xingu, Tapajós, Madeira, Araguaia e Tocantins) ou o porto da multinacional Cargill em Santarém (construído sem o relatório de impacto ambiental), o asfaltamento de estradas e políticas de financiamento de “commodites” na Amazônia pelos bancos e agências públicas têm atraído grande numero de migrantes de outras regiões do ´país e exterior, em uma corrida por terras que provoca a expulsão violenta ou financeira das famílias de terras de uso tradicional.
.
Comunicação Comunitária

A Assembléia Geral da Rede GTA aprovou a convocação das forças sociais da Amazônia para uma campanha denunciando a situação das rádios comunitárias no Brasil, especialmente a inadequação da Lei de Radiodifusão Comunitária para as características da região. Diversas lideranças sociais como de Benjamin Constant (AM), Marabá (PA) ou Macapá (AP) reforçaram o tema com a descrição de constrangimentos provocados pela Anatel e pela Polícia Federal na aplicação de uma legislação que ampara somente os grandes monopólios dos meios de comunicação no país e não reconhece o caráter cultural e ambiental das rádios verdadeiramente comunitárias da floresta. A criminalização de defensores da floresta é inaceitável e a alternativa para o problema é a mudança da legislação, o reconhecimento do papel social das emissoras de gestão coletiva, o apoio para iniciativas para a expressão cultural e o acesso à comunicação das comunidades que permitam sua efetiva participação decisória sobre os grandes projetos e investimentos externos na região.

Educação para a Sustentabilidade

Acreditamos que o modelo de educação para a sustentabilidade perpassa questões que devem resgatar a discussão sobre preservação ambiental, cultura, formação política e desenvolvimento local. Temos algumas iniciativas exitosas, como as Casas Familiares Rural, Escolas Famílias, Escola Sindical, projetos de Organizações da Sociedade Civil com parcerias do poder público e outras. Os povos da floresta amazônica reconhecem essas ações como propícias para serem reproduzidas nas comunidades com ausência do poder público - e também onde houver demandas. Essas propostas de educação devem levar em consideração a diversidade e as especificidades de cada região da Amazônia.

Nosso entendimento é que a educação não pode ser confundida com estrutura física, deve-se considerar a qualidade da educação que passa pela discussão de currículos próprios que venha atender as necessidades das populações tradicionais. Como proposta para garantir o funcionamento e a implantação de novos Centros de Educação voltados para a Pedagogia da Alternância reivindicamos que o FUNDEF inclua os Centros de Alternâncias como prioridade para o repasse dos recursos, o fortalecimento e ampliação das parcerias municipais, estaduais e federal, que os órgãos de validação e regulamentação de educação reconheçam os Centros respeitando sua autonomia administrativa e pedagógica, assim como os governos estaduais. Denunciamos casos como de Amaturá (AM), onde o programa bolsa família e bolsa escola está beneficiando famílias que não se enquadram nesses programas federais.

Gênero e Cidadania

Os debates apontam para a necessidade de se trabalhar as relações sociais de gênero por meio da promoção da igualdade de oportunidades, desde o contexto familiar até as organizações sociais e políticas públicas. Propõem-se ações afirmativas que promovam uma maior inclusão dos homens e mulheres no debate de gênero e o respeito aos direitos humanos tais como os direitos sexuais e reprodutivos e o combate à violência.
No campo dos movimentos sociais faz-se necessário fortalecer e integrar as organizações de mulheres, interna e externamente, onde se propõem a criação de um “Fórum de Mulheres da Amazônia”, bem como criar estratégias que ampliem a influência das mulheres nos espaços de tomada de decisões. A capacitação também é uma etapa necessária. Através dela se fortalecerão as rádios comunitárias, o intercâmbio e uma linguagem não-sexista. Serão necessárias formações que favoreçam a capacidade de gestão, o planejamento, a elaboração de projetos e o acesso a créditos por parte das mulheres, assim como a criação em alguns momentos de espaços de participação exclusiva das mulheres. Afirmamos a necessidade de levantar o perfil do movimento de mulheres na Amazônia, incluindo a questão étnica, e das experiências produtivas de manejo sustentável no campo feminino, para que possam ser potencializadas e disseminadas com o aporte necessário de assistência técnica adequada e acesso às linhas de crédito.
Destacamos também a importância da inclusão de jovens lideranças como parte da estratégia da rede.

Cooperação Panamazônica

Nos incomoda a militarização de nossas fronteiras, fato que nos leva perceber um enfraquecimento da democracia, tornando os povos fronteiriços reféns da violência e arbitrariedades que a forca dos fuzis lhes impõe nessas regiões. Ao mesmo tempo a chamada integração regional ameaça gravemente a diversidade cultural e biológica da região.

Diante desses desafios somos impulsionados a solidariedade entre os povos, através de uma maior integração dos movimentos sociais da bacia amazônica. Acreditamos que iniciativas como o Fórum Social Pan Amazônico são espaços privilegiados para o dialogo e construção de um modelo de desenvolvimento sustentável para as fronteiras.

Hoje nossas fronteiras têm sofrido verdadeiro saque dos seus recursos naturais, além da exploração do trabalho de populações fronteiriças – situações que devem ser enfrentadas através da ampliação dos “Encontros sem fronteiras”, para que os problemas vivenciados nestes locais possam fazer parte da pauta prioritária dos movimentos sociais dos países que constituem a Pan Amazônia.

Radicalizar a democracia é preciso, e para isto estamos dispostos a estabelecer relações com a OTCA e fortalecer o Movimento Social desta nossa Amazônia. Tornando cada vez mais democráticas a vivencia nas fronteiras e reconhecendo que a diversidade cultural e socioambiental devem ser consideradas como fatores prioritários para o estabelecimento de políticas adequadas nas regiões de fronteiras.

Em vez de internacionalizar a Amazônia, vamos amazonizar o mundo.

Brasília, 20 de março de 2005
Pela Homologação em Area Continua da Area Indigena Raposa Serra do Sol
Adilson Vieira
Secretário Geral GTA

Comentarios