Forum Social Mundial: tempo de solidariedade, tempo de espiritualidade

A temporalidade de hoje se fragmenta em nostalgias e utopias privatizadas

FREI BETTO, escritor, autor de A Obra do Artista - Uma Visão Holística do Universo (Ática), palestrante convidado para o Fórum Social Mundial

A matéria-prima da Bíblia é o tempo, argila da historicidade. Javé não é um deus qualquer. É o Deus de um determinado percurso no tempo: o Deus "de Abraão, Isaac e Jacó". Ao contrário de outros deuses, que em sua onipotência criariam de modo instantâneo (deuses-café solúvel), Javé cria a prazo, em sete dias. Essa dimensão de temporalidade no ato criador constitui a base da dimensão de historicidade do povo de Deus, cuja esperança reside Naquele em quem todos os tempos se esgotam (Kairós).

Isso faz sentido se consideramos que o contrário do tempo não é a eternidade. É o amor. Ao irromper no tempo histórico como presença viva de Deus-Amor, Jesus nos convoca a nada mais esperar. "Esgotou-se o tempo" (Marcos 1,15), como quem proclama: "Já não há o que aguardar. Resta amar". E "se o amor faz passar o tempo e o tempo faz passar o amor", como diz o provérbio italiano, nada mais irreconciliável com o tempo do que o amor. Bem o sabem os amantes, que gostariam de parar no infinito os ponteiros de seus relógios.

Para os físicos, esses novos filósofos da era quântica, o início do tempo permanece um mistério. Há cientistas convencidos de que todo o Universo teve início num mesmo ovo - o "átomo primordial" do padre Lematre - a partir da evidência de que todos os átomos e fótons de qualquer planeta ou estrela se comportam do mesmo modo, e todos os quarks e elétrons existentes na Terra são idênticos, por exemplo, aos que existem no aglomerado galáctico da Cabeleira de Berenice.

Há pesquisadores que vislumbram, do outro lado da barreira, a estrutura do espaço enfeixada num cone gravitacional que, como a coqueteleira de um barman, vira o tempo do futuro para o passado, implodindo-o em instantes iguais à eternidade. "Um oceano infinito de energia que tem a aparência do nada", descreve o físico John Wheeler, de Princeton.

Mas é provável que ninguém jamais consiga transpor o limite do tempo - 10-43 de segundo (um décimo milionésimo de trilionésimo de trilionésimo de trilionésimo de segundo) - após o Big Bang. O jardim de Planck. Pode-se rebobinar o filme da história do Universo até este limite, mas é impossível passar daí, porque a força de gravidade impede.

Todo um milênio separa o limite de Planck do alvorecer do Universo - o instante da singularidade. Nesse instante, nada havia, nem energia, matéria, espaço ou tempo. Situada numa distância finita no passado, a singularidade, na qual a densidade da matéria era tão infinita quanto a compressão do espaço, marcava a explosiva etapa inicial, cuja velocidade de expansão era também infinita. Portanto, espaço, tempo, matéria e energia teriam tido origem no Big Bang - o ponto de partida absoluto. Indagar o que houve antes é absurdo, pois a própria pergunta implica algo que não existia: o tempo. Diante dessa questão, respondia Santo Agostinho: "Deus preparava o Inferno para quem faz esse tipo de pergunta".

Quanto mais distantes penetramos no espaço, mais profundamente sondamos o passado. Nessa dimensão, tempo e espaço significam a mesma coisa. Quando a lente do telescópio desnuda as galáxias do aglomerado de Coma, elas se exibem hoje, para nós, como eram há 700 milhões de anos - quando as primeiras águas-vivas começavam a se mexer no ventre oceânico - e não como são agora. Basta dividir a distância pela velocidade para se obter o tempo do percurso. Isso é insignificante, tratando-se de distâncias curtas. Mas quando se trata de quasares a 10 milhões de anos-luz, desvendamos como era o Universo há muitos e muitos milênios.

Todas as formas do Universo se reduzem a conceitos básicos - espaço e tempo, energia e matéria, e gravitação. Einstein, na teoria especial da relatividade, demonstrou a equivalência de matéria e energia e, na teoria geral da relatividade, a indivisibilidade do continuum espaço-tempo. A teoria do campo unificado, quando descoberta, culminará esse processo de conexões e convergências.

Einstein demonstrou que espaço e tempo são formas de intuição que não podem separar-se de nossa mente. O espaço não tem realidade objetiva a não ser como disposição dos objetos que percebemos nele. Do mesmo modo, o tempo existe enquanto sucessão de eventos mediante os quais o medimos.

A teoria de Einstein acrescentou o tempo ao espaço tridimensional. Sabemos que o Universo é quadridimensional, no continuum espaço-tempo. Uma ferrovia é um continuum unidimensional de espaço, sobre o qual o maquinista do trem pode assinalar sua posição tendo uma estação como referência. A superfície do mar é um continuum bidimensional. As referências, pelas quais o comandante do navio fixa a sua posição, são a latitude e a longitude. O piloto guia o avião através de um continuum tridimensional, pois além de considerar latitude e longitude, deve observar também altura em relação ao solo.

Percebemos o espaço como o piloto de avião - um continuum de três dimensões. Porém, qualquer acontecimento físico que implica movimento não pode ser apreendido apenas situando sua posição no espaço. É preciso indicar também como se modifica sua posição no tempo. Para a torre de controle, não basta informar que o avião se encontra em latitude X, longitude Y e altitude Z. É necessária também a coordenada tempo - a quarta dimensão.

Irmãos siameses, espaço e tempo são intimamente solidários. Não se pode separá-los, como costuma fazer a nossa imaginação. Essa separação é estritamente subjetiva. Todas as medições de tempo são, de fato, medições no espaço e, ao contrário, as medições de espaço dependem das medições de tempo. Segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, estações e anos são medidas da posição da Terra no espaço em relação ao Sol, à Lua e às estrelas. O meio-dia é apenas um ângulo do Sol. Respeitadas as diferenças de escala e de natureza, a interdependência entre espaço e tempo é tanto mais evidente quanto maior for a velocidade dos corpos, que é um espaço percorrido num determinado tempo. E uma das conseqüências disso é que, quanto mais rápido se atravessa uma certa distância no espaço, menos depressa se envelhece.

Isso parece válido também para o tempo psicológico. Quanto mais a nossa mente se apega ao tempo, atolada no viscoso terreno da ansiedade ou retida à nostalgia, mais devagar atravessamos os dias que nos são dados viver e mais depressa envelhecemos. Aqueles que vivem aqui-e-agora, sem pressa do que virá nem vontade de retornar ao que passou, permanecem joviais e saudáveis, mesmo em idade avançada. No entanto, pressionados pelo ritmo da vida moderna, nossa cabeça viaja por mil idéias, lugares e fantasias, enquanto o nosso corpo permanece no mesmo lugar. À noite, comemos de olho na TV, escutando sem atenção a pessoa ao nosso lado e recordando a palavra áspera que, no trabalho, gravou uma dobra de ressentimento em nossa subjetividade. Não podemos "perder tempo". Competimos com parentes, colegas de profissão, amigos e, inclusive, conosco mesmos. Tamanha onipotência é o caminho mais curto para o infarto e outras enfermidades, precedidas pelo mau humor, o estresse, a infelicidade. Aqueles que conseguem viver o aqui-e-agora sabem ganhar tempo - de vida, de alegria, de dedicação aos detalhes do cotidiano e aos grandes projetos empreendidos.

No século 20, a arte cinematográfica nos introduziu num novo conceito de tempo. Não mais o conceito linear, histórico, que perpassa a Bíblia e, também, as pinturas de Fra Angelico ou o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. No filme, predomina a simultaneidade. Suprimem-se as barreiras entre tempo e espaço. O tempo adquire caráter espacial e o espaço, caráter temporal. No filme, o olhar da câmara e do espectador passa, com toda a liberdade, do presente para o passado e, deste, para o futuro. Não há continuidade ininterrupta.

A TV, cujo advento ocorreu nos anos 40, leva isso ao seu paroxismo. Frente à simultaneidade de tempos distintos, a única âncora é o aqui-e-agora do (tele)espectador. Não há durabilidade nem direção irreversível. A linha de fundo da historicidade - na qual se apóiam o relato bíblico e a pregação cristã - dilui-se no coquetel de eventos onde todos os tempos se fundem. Os Mamonas Assassinas aparecem mortos e, sobre os caixões, os clipes os exibem vivos, interpretando seus êxitos musicais.

Assim, aos poucos, o horizonte histórico se apaga, como as luzes de um palco após o espetáculo. A utopia sai de cena, o que permite Fukuyama vaticinar: "A história acabou". Ao contrário do que adverte Coélet, no Eclesiastes, não há mais tempo para construir e tempo para destruir; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para fazer a guerra e tempo para estabelecer a paz. O tempo é agora. E nele se sobrepõem construção e destruição, amor e ódio, guerra e paz.

A felicidade, que em si resulta de um projeto temporal, reduz-se então ao mero prazer instantâneo derivado, de preferência, da dilatação do ego (poder, riqueza, projeção pessoal etc.) e dos "toques" sensitivos (ótico, epidérmico, gustativo etc). A utopia é privatizada. Resume-se ao êxito pessoal. A vida já não se move por ideais nem se justifica pela nobreza das causas abraçadas. Basta ter acesso ao consumo que propicia excelente conforto: o apartamento de luxo, a casa na praia ou na montanha, o carro novo, o kit eletrônico de comunicações (telefone celular, computador etc.), as viagens de lazer. Uma ilha de prosperidade e paz imune às tribulações circundantes de um mundo movido a violência. O Céu na Terra - prometem a publicidade, o turismo, o novo equipamento eletrônico, o banco, o cartão de crédito .

Nem a fé escapa à subtração da temporalidade. O Reino de Deus deixa de situar-se "lá na frente" para ser esperado "lá em cima". Mero consolo subjetivo, a fé reduz-se à esperança de salvação individual. É o passaporte que credencia o fiel a ingressar no Céu, livre das agruras desse tempo de vida.

Graças, pois, ao cinema e à TV, agora o tempo está confinado ao caráter subjetivo. Experimentá-lo é ter uma consciência tópica do presente. Se na Idade Média o sobrenatural banhava a atmosfera que se respirava e, no Iluminismo, era a esperança de futuro que justificava a fé no progresso, agora o que importa é o presente imediato. Busca-se, avidamente, a eternização do presente. Michael Jackson é eternamente jovem e multidões malham o corpo como quem sorve o elixir da juventude. Morreremos todos saudáveis e esbeltos...

Pulverizam-se os projetos, mesmo porque, na cabeça de muitos, o tempo é cíclico e no mesmo rio corre sempre a mesma água. Outrora, havia namoro, noivado e casamento. Agora, fica-se. Após anos de casado, pode-se voltar ao tempo de namoro e, de novo, ao de casado.

A destemporalização da existência alia-se à desculpabilização da consciência. Uma mesma pessoa vive diferentes experiências sem se perguntar por princípios morais ou religiosos, políticos ou ideológicos. Não há pastores e bispos corruptos e utopias que resultaram em opressão? A TV não mostra o honesto ontem, vigarista hoje e o bandido fazendo gestos humanitários? Onde reside a fronteira entre o bem e o mal, o certo e o errado, o passado e o futuro? "Tudo que é sólido se desmancha no ar" irrespirável desse fim de século cuja temporalidade fragmenta-se em cortes e dissolvências, close-ups e flash-backs, muitas nostalgias e poucas utopias.

Enquanto as Igrejas tentam chegar à modernidade, o mundo naufraga sob os ventos da pós-modernidade. Há, contudo, algo de positivo nessa simultaneidade, nesse aqui-e-agora que nos impõem como negação do tempo. É a busca da interioridade. Do tempo místico como tempo absoluto. Tempo síntese/supressão de todos os tempos.

Kairós. Eis que irrompe a eternidade - eterna idade. Pura fruição. Onde a vida é terna.

Nas artes, a música e a poesia se aproximam, de modo exemplar, dessa simultaneidade que volatiliza o tempo, imprimindo-lhe caráter atemporal. Na música, nossos ouvidos captam apenas a articulação de umas poucas notas. No entanto, perdura na emoção a lembrança de todas as notas que já soaram antes. Em si, a melodia é inatingível, assim como o poema, uma sucessão rítmica de sílabas e palavras sutis. O que existe é a ressonância da nota e da palavra em nossa subjetividade. Então, a seqüência se instaura em nós. Não é o tempo fatiado em passado, presente e futuro. É o presente infindável. O tempo infinito. Como no amor, em que o cotidiano é apenas a marcação ordinária de uma inspiração extraordinária.

O tempo de Jesus é Kairós, presente, simultaneidade. É a plenificação de todos os tempos. É o tempo esgotado, capaz de englobar todas as dimensões da vida e da história. É essa percepção de que tudo que existe subsiste, pré-existe e coexiste, é que nos faz tomar consciência de que somos naturalmente solidários ao Universo, pois todo o nosso ser é formado pelos seus elementos. Somos o Universo que se olha com os nossos olhos. Daí a importância de que essa conaturalidade se estenda à solidariedade impelida por nossos gestos de compaixão e amor.

Resta, pois, decidir-nos, pois o eterno irrompeu na história. É a mística emergindo e encobrindo a árdua e trivial seqüência do cotidiano - então, o Senhor do tempo e da história transmuta-se, em nossos corações, em Espírito de Amor. E o tempo se faz, simultaneamente, princípio e fim, Alfa & Omega.

Publicado en el Suplemento Cultura de Zero Hora

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