Os bastidores do plano para assassinar a ativista ambiental hondurenha Berta Cáceres

Idioma Portugués
País Honduras

Já faz maiz de três anos que Berta Cáceres foi assassinada em sua casa, em Honduras. Cáceres era uma ativista de 44 anos, tinha quatro filhos e era uma celebridade internacional: ganhou o Prêmio Goldman de Meio Ambiente em 2015 por liderar uma campanha de resistência contra a construção de uma barragem hidrelétrica em território indígena por uma empresa privada de energia, a Desarrollos Energéticos Sociedad Anónima (DESA). Perto da meia-noite do dia 2 de março de 2016, assassinos contratados invadiram sua casa, atiraram nela e fugiram. Ela morreu, minutos depois, nos braços de um amigo.

Na preparação para o julgamento dos assassinos, o Ministério Público de Honduras conseguiu extrair dos telefones dos acusados milhares de registros de telefonemas privados e mensagens de WhatsApp e SMS. Os históricos de ligações foram analisados por um perito independente e mostraram que os assassinos tinham se comunicado por meio de uma cadeia compartimentada que chegava até os níveis administrativos mais altos da empresa responsável pela barragem alvo dos protestos de Berta. Essas mensagens, analisadas abaixo, fornecem um panorama impressionante da trama para matá-la.

O diretor financeiro, Daniel Atala Midence, frequentemente conversava com o presidente da empresa, Roberto David Castillo Mejía. Castillo, então, se comunicava com o ex-diretor de segurança da DESA, que coordenava o chefe dos assassinos. Não era por acaso que se evitava contato direto entre os assassinos e os administradores da empresa: todos os executivos de alto escalão eram membros da poderosa família hondurenha Atala Zablah, ligada ao governo e ao setor financeiro internacional.

Os executivos ficaram irritados quando os protestos de Cáceres atrapalharam seus investimentos, declararam os ministros da Suprema Corte de Honduras ao proferir a condenação final no julgamento. Eles começaram a vigiar Cáceres e contrataram informantes para se infiltrarem nas organizações lideradas por ela. O tribunal então concluiu que “os executivos da DESA começaram a planejar a morte da Sra. Cáceres”, sem apontar nomes de suspeitos específicos. O plano foi executado com “ciência e consentimento” de outros administradores da DESA, afirmou o tribunal, mais uma vez sem nomeá-los.

Antes e depois do assassinato de Cáceres, em um grupo de chat corporativo chamado Seguridad PHAZ (Segurança do Projeto Hidrelétrico Agua Zarca), lideranças da empresa discutiram a possibilidade de usar seus contatos para fazer tráfico de influência com autoridades nacionais, com as forças de segurança estatais e com a mídia. Centenas de outras mensagens publicadas pelos advogados da DESA indicam que o presidente da empresa, Castillo, manteve ao mesmo tempo contato regular com Cáceres antes de seu assassinato. Embora sejam de caráter público, muitas conversas em grupo e mensagens privadas nunca foram publicadas.

Até agora, nenhum dos gestores foi responsabilizado por seu envolvimento no caso. Apenas um grupo de sete assassinos, que incluía dois ex-empregados da DESA, foi condenado em novembro de 2018. Em 2 de dezembro de 2019, os sete assassinos receberam penas que variavam entre 30 e 50 anos de prisão.

Castillo foi preso em 2 de março de 2018, acusado de ser o mandante do crime, mas o Ministério Público vem repetidamente adiando sua audiência preliminar. O mais recente desses adiamentos aconteceu em 10 de outubro de 2019. Enquanto isso, nenhum membro da diretoria da DESA – e ninguém da família Atala Zablah – foi ainda acusado de crime ou intimado a depor.

Duplicidade inicial

O grupo Seguridad PHAZ incluía Castillo, Atala Midence, e os diretores da DESA José Eduardo Atala Zablah e Pedro Atala Zablah. O número de telefone de Jacobo Nicolas Atala Zablah, o patriarca da família, também diretor da DESA, não aparecia no grupo, mas seu nome era mencionado nas mensagens quando decisões de negócios e coordenação com aliados de alto escalão se faziam necessárias.

Todos os quatro Atala Zablah corriam o risco de perder muito dinheiro caso a barragem proposta pela empresa não fosse construída. Como diretor financeiro, Atala Midence havia dedicado sua carreira à Agua Zarca. E José Eduardo, Pedro e Jacobo Nicolas tinham participação acionária relevante na Las Jacarandas, a empresa que detinha a maioria das ações da DESA. José Eduardo, além disso, fazia parte da diretoria do Banco Centro-Americano de Integração Econômica, que emprestou US$24,4 milhões à DESA para a construção de Agua Zarca.

À medida que aumentava a frustração expressada por eles nos chats, aumentava também o volume de dinheiro que estavam dispostos a investir para deter Cáceres.

Em 15 de julho de 2013, a organização fundada por Cáceres, o Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras, conhecido como COPINH, organizou um protesto no canteiro de obras da barragem hidrelétrica. Como a DESA não obteve o consentimento prévio da comunidade indígena local de Lenca, em cuja terra ancestral a barragem estava sendo construída, muitos na comunidade acreditavam que a empresa não tinha o direito de estar lá.

A manifestação logo terminou com violência. A DESA havia solicitado ao exército de Honduras proteção do local contra os manifestantes. Um dos soldados destacados para esse fim usou sua arma para atirar em Tomás García, um membro do COPINH.

Naquele dia, Atala Midence enviou uma mensagem a Castillo.

“Os militares mataram um indio“, ele relatou, usando o termo pejorativo em espanhol para se referir a um homem de ascendência indígena. “Parece que há um outro deles morto.”

A morte de García foi uma emergência de relações públicas para a DESA, mas Castillo já tinha uma solução preparada. “Pague o repórter da HCH”, respondeu imediatamente, referindo-se a um canal de notícias hondurenho chamado HCH Televisión Digital.

“1.000 lempiras [moeda hondurenha] pela semana passada… e agora podemos dar mais 1.000 a ele.” O total equivalia a aproximadamente 100 dólares.

Quando a HCH deu a notícia sobre o protesto no dia seguinte, a matéria parecia parcial em favor da DESA. A morte de García foi mencionada, mas o âncora da HCH enfatizou o argumento da empresa de que os manifestantes do COPINH também estavam com as mãos sujas de sangue, e afirmou que eles teriam matado o filho de alguém que trabalhava na barragem. No entanto, embora os registros mostrem que houve uma morte na comunidade naquele dia, não há indício de que os membros do COPINH tenham sido os responsáveis, e eles negam qualquer envolvimento no fato. Enquanto isso, o militar que atirou em García já foi identificado e acusado.

Para encerrar o bloco, que foi transmitido com uma barra de texto anunciando “Duas pessoas mortas em confronto por oposição à barragem”, o âncora enfatizou que os membros do COPINH não deveriam ter entrado em propriedade particular guardada pelo exército. Disse que o exército estava fazendo a segurança da empresa privada que trabalhava na barragem hidrelétrica. A HCH Televisión Digital não respondeu às solicitações para comentar a transmissão em questão.

Enquanto planejava o pagamento de propinas para controlar sua narrativa midiática, Castillo seguia entabulando comunicação amistosa com Cáceres. As mensagens mostram que o relacionamento era estratégico.

“Você precisa ligar para Berta Cáceres e dizer a ela para parar de fazer coisas estúpidas”, disse a Castillo um número não identificado, no dia seguinte à morte de García. “Nesse exato momento eles estão preparando outro acampamento de protesto.”

Quatro dias depois, Atala Midence reclamou de Cáceres e de outros dois líderes do COPINH. “Gastei muito dinheiro e capital político para conseguir esses 3 mandados de prisão”, escreveu ele.

Dali a poucos dias, os três foram acusados de ocupação ilegal de terras e de danos à DESA. Um tribunal de segunda instância posteriormente reverteu a decisão e afastou a acusação.

Castillo continuou a se esforçar para estabelecer uma amizade com Cáceres. Poucos dias depois de enviar felicitações de Natal em 2014, ele entrou em contato novamente para desejar a Cáceres um feliz Ano Novo, e aproveitou a oportunidade para obter dela informações sobre suas atividades e seu paradeiro.

Segundo a mensagem, ele tinha ouvido falar que ela andava bastante ativa na área próxima ao canteiro de obras da empresa.

“Quando você veio aqui? E quem te conta isso?” respondeu Cáceres, com aparente desconfiança. De qualquer forma, segundos depois ela deu a informação a ele: “Estou em Eza. E amanhã em Teg”, disse, usando formas abreviadas do nome da cidade onde morava, La Esperanza, e de Tegucigalpa, e capital de Honduras.

‘Pode acontecer a qualquer momento, agora’

Em abril de 2015, Cáceres visitou San Francisco e Washington, D.C., para receber o respeitado Prêmio Goldman de Meio Ambiente por seu ativismo em Honduras. “Nossas consciências serão sacudidas pelo simples fato de estarmos contemplando a autodestruição baseada na depredação capitalista, racista e patriarcal”, disse ela, em seu discurso. “A Mãe Terra militarizada, cercada, envenenada, onde se violam sistematicamente os direitos fundamentais, exige de nós a ação.”

A DESA também estava partindo para a ação naquele ano. Desde pelo menos março de 2015, Douglas Bustillo, chefe de segurança da DESA e ex-tenente do exército hondurenho, vinha se comunicando com um líder de inteligência do exército, Mariano Díaz. Ambos foram condenados, três anos depois, por ajudar a coordenar o assassinato de Cáceres.

Em 31 de julho, Bustillo saiu da empresa, mas a análise dos registros telefônicos determinou que ele continuava a se comunicar frequentemente com Castillo, que por sua vez se comunicava com o diretor financeiro, Atala Midence.

Em setembro, Bustillo ligou diretamente para um matador de aluguel, Henry Hernández, pela primeira vez. Hernández tinha sido um franco-atirador das forças especiais sob o comando de Diaz.

Enquanto isso, a comunicação entre Castillo e Cáceres permanecia ativa. Na metade do mês, Castillo informou a Cáceres que estava saindo de férias e gostaria de conversar com ela quando voltasse. Em 28 de setembro, seus comentários ganharam um toque mais pessoal. Ele manifestou condolências pelos problemas de saúde na família estendida de Cáceres, e disse a ela que poderia contar com seu apoio.

Cáceres parece ter ficado confusa com as mensagens. “Não sei por que você se importa em me ajudar”, ela respondeu. Castillo assegurou que se importava com ela e a considerava uma amiga. “Espero que algum dia encontremos um meio termo em que possamos fazer nossos ideais convergirem de uma vez por todas e encontrar uma solução que seja boa para ambos”, disse ele.

Uma semana depois, no entanto, Castillo estava reclamando de Cáceres e do COPINH no grupo de chat da DESA. “Precisamos tomar as providências legais e submetê-los ao escritório do Procurador-Geral”, disse, dando a entender que eles deveriam ser processados com ajuda da polícia.

Nesse ponto, as tensões no chat haviam aumentado sensivelmente. A DESA tinha movido o canteiro de obras para o outro lado do rio, em território menos disputado, numa tentativa de aplacar os protestos – mas a estratégia fracassou.

Quando um estrangeiro apareceu em diversos eventos do COPINH, o chat mostra que a DESA passou meses investigando sua identidade, cidadania espanhola e perfil do Facebook. Eles planejaram fazer com que a polícia obtivesse seu número de passaporte, para que pudessem denunciá-lo ao governo espanhol. “É essencial informar ao embaixador”, disse o engenheiro-chefe da DESA, José Manuel Pages, também cidadão espanhol. De acordo com as mensagens, Pages, que não foi acusado de conexão com o assassinato, aparentemente foi enviado por Castillo em um veículo da empresa para se encontrar com o dignitário.

Não foi a única oportunidade em que a DESA se envolveu na esfera diplomática. O chat revela que a empresa também se infiltrou em uma visita do alto escalão da ONU à sede do COPINH. O infiltrado se fez passar por morador local, fotografou os presentes e registrou o que havia sido discutido.

“Somos nós ou eles”, o diretor Pedro Atala Zablah escreveu para o grupo em 11 de outubro. “Vamos dar o recado de que nada vai ser fácil para esses FDPs.” Jorge Avila, que havia assumido o lugar de Bustillo como chefe de segurança da DESA, respondeu pedindo a Atala Zablah para solicitar proteção policial para a barragem.

Era uma proposta comum; o histórico do grupo de chat está cheio de situações em que os executivos da DESA discutiram a possibilidade de recrutar as forças estatais de segurança e as autoridades governamentais de Honduras. Algumas vezes, os pedidos eram feitos por membros da família Atala Zablah – Daniel e Pedro. Em 13 de outubro, Pedro deu a entender que a DESA poderia motivar agentes policiais “com algo além de comida”. A empresa já abrigava e alimentava os policiais que guardavam a represa, como faria com seguranças particulares.

No dia seguinte a essas mensagens, Castillo relatou ao grupo notícias de Cáceres: ela logo viajaria para a América do Sul, e o momento era adequado para coordenar uma oposição local à sua organização. Sérgio Rodriguez, gerente de comunidades e meio ambiente da DESA, observou que o movimento do COPINH ficava mais fraco sem a presença de Cáceres e de um outro líder. “Diante disso, deveríamos também direcionar nossas ações contra eles”, propôs ao grupo.

Em 22 de novembro, Castillo recebeu uma mensagem de Bustillo, que já não trabalhava para a DESA havia quatro meses. “Boa noite, Sr. Castillo. Me dê os 50%”, dizia a enigmática mensagem.

Castillo respondeu pedindo par encontrar Bustillo naquela mesma tarde em um restaurante da cadeia Chili’s, numa parte nobre de Tegucigalpa. Ele sugeriu dois momentos diferentes para a reunião e, quando Bustillo pediu esclarecimentos, Castillo respondeu: “Bustillo, se ligue. Isso não é uma festa. Bustillo respondeu: “E deixe tudo pronto, porque pode acontecer a qualquer momento.”

Eles não especificaram o que estavam discutindo. Mas o registro de ligações preparado para o julgamento mostra que, naquele momento, a empresa tinha implementado um método de comunicação compartimentado, em grande parte devido ao “alto grau de especialização do pessoal militar que compõe essa estrutura”, dizia a análise.

A estrutura de comunicação era composta de dois grupos. Um deles era a “rede executiva”, que incluía Castillo e Atala Midence. No outro, a “rede operativa”, estavam os assassinos. Os grupos eram conectados por Douglas Bustillo.

“A compartimentalização é uma tática bem estabelecida na inteligência militar para evitar infiltração e não comprometer o conjunto de informações e estruturas”, informa a análise. “A tomada de decisões está reservada exclusivamente para o nível máximo de liderança. (…) É uma tática para ocultar preventivamente todo o círculo criminoso”.

As comunicações pessoais entre Castillo e Cáceres, no entanto, continuaram, e os dois encerraram 2015 exatamente como haviam feito no ano anterior. Na noite de 25 de dezembro, trocaram gentilezas.

“Querida Berta”, escreveu Castillo. “Espero que você e sua família tenham um Natal abençoado. Como sempre, desejo a vocês apenas o melhor.”

‘Uma pedra no sapato daquela senhora’

Em 10 de janeiro de 2016, Castillo tinha voltado a agitar o chat da DESA.

“Não podemos baixar nossa guarda. Mas é nessa semana que precisamos derrotar o COPINH. Nossos esforços essa semana serão produtivos, e nosso trabalho ficará mais fácil no restante de 2016″, disse ele. Encaminhou então ao grupo uma nota que havia enviado ao chefe de polícia local, que ele parecia considerar um aliado.

“Agradeço o apoio que nos deram ontem, os ‘Copinhes’ perceberam a presença da Polícia Nacional (…) e ficaram com medo de atravessar o rio”, dizia a nota. “Espero contar com seu apoio hoje e nos dias que restam até que a agitadora se vá, que é quando acaba a ameaça”.

Quando dois outros estrangeiros, holandeses, começaram a aparecer nos protestos do COPINH, a DESA também os investigou, como mostram mensagens de chat do final de janeiro. “Por favor, tirem fotos”, disse Roque Galo, consultor de relações públicas da empresa. Ele sugeriu que usassem a câmera da empresa, que tinha o melhor zoom. Galo não foi acusado de nenhum crime relacionado ao assassinato de Cáceres.

Dois dias depois, Díaz e Hernández debateram por mensagens privadas um outro tipo de tecnologia: uma pistola emprestada. “Não quero que você fique carregando essa coisa por toda parte”, Díaz disse a Hernández. “É perigoso, e você pode se meter em confusão.”

Em 2 de fevereiro, Hernández, que se referia a Díaz como “señor”, apresentou uma estratégia para blindar Díaz de qualquer suspeita: “vou trabalhar com outros caras, senhor, porque você precisa estar limpo para que tudo dê certo na sua carreira”, escreveu. Pediu a Díaz dinheiro emprestado para contratar mais dois, para que eles três pudessem executar “o serviço”. E esclareceu: “você sabe qual”.

Eles não identificaram as pessoas que os haviam contratado para “o serviço”, mas se referiram a eles como “amigos”. Tampouco disseram o nome de seu alvo.

Em 5 de fevereiro, Bustillo usou seu telefone para baixar três fotografias do rosto de Berta Cáceres. Uma delas era uma imagem que posteriormente se tornaria viral. Cáceres está de pé, ladeada pelas margens verdes do rio que ela lutou para proteger, a boca aberta no meio da fala, a mão direita erguida.

Naquele mesmo dia, choveram mensagens e ligações entre os assassinos, como mostra a análise dos registros. A análise também mostra que o celular de Hernández enviou sinal às torres de comunicação próximas à casa de Cáceres.

As mensagens sugerem que Hernández e um segundo assassino desconhecido tentariam matar Cáceres naquele dia, mas cancelaram a missão porque havia pessoas demais perto da casa. Eles pegaram ônibus comuns e deixaram o local.

“Missão cancelada ontem”, Bustillo escreveu para Castillo. “Não foi possível. Vou aguardar sua reação. Não tenho mais a logística preparada, estou de volta à estaca zero.”

Naquele mesmo dia, mais tarde, Bustillo pediu a Castillo mais dinheiro para bancar uma segunda tentativa. “Chefe”, disse ele. “Preciso saber o seu orçamento para o serviço.” Três semanas depois, Bustillo repetiu o pedido. Castillo respondeu que ele mesmo só iria receber no dia seguinte.

Enquanto isso, os participantes do grupo de chat continuavam a difamar Cáceres. Em 20 de fevereiro, um consultor de relações públicas da DESA não identificado, que não sofreu acusações relacionadas ao caso, comemorou ter conseguido complicar os planos do COPINH de realizar um protesto. “É ótimo que sejamos uma pedra no sapato daquela senhora”, escreveu.

O engenheiro-líder Pages respondeu que eles deveriam divulgar fotos da casa e do carro de Cáceres, bem como o fato de que ela tinha filhos estudando fora do país, como forma de colocar os ativistas contra ela. Ele informou ao grupo que a empresa poderia contar com a presença de 45 policiais e membros de um grupo de forças especiais treinadas nos EUA, conhecidos como TIGRES, fazendo a guarda do local da barragem durante um protesto.

Numa discussão sobre a cobertura midiática do evento, Castillo escreveu: “Em vez de pedir a um jornalista que não publique uma notícia, prefiro dar a eles instruções sobre o que incluir na notícia, e qual mensagem transmitir.”

Em menos de um mês, Berta Cáceres estaria morta.

Assassinato preservado nas mensagens

Em 2 de março de 2016, os assassinos decidiram tentar de novo. A análise dos registros de ligação mostrou que seus celulares enviaram repetidamente sinais para a torre de celular próxima à casa de Cáceres.

Às 23h25, Cáceres mandou sua última mensagem de WhatsApp. “Bem, seja lá para onde vá, espero que esteja bem. De verdade”, ela escreveu a uma pessoa amiga, em um número não identificado. “Tenha cuidado, por favor, ok? Beijos.”

Ao mesmo tempo, Bustillo e os assassinos trocavam um turbilhão de mensagens e ligações.

Quatorze minutos depois, às 23h39, Gustavo Castro, um ambientalista mexicano que estava hospedado na casa de Cáceres naquela noite, começou a fazer ligações desesperadas, que não foram atendidas, do telefone de Cáceres para as pessoas mais próximas dela.

Às 00h09, ele enviou uma mensagem a uma pessoa da família de Cáceres: “Socorro”.

“Aqui é Gustavo, acabaram de matar Berta e estou ferido.”

Seguiu enviando uma sequência de mensagens angustiadas, repetindo várias vezes os mesmos detalhes, sem receber resposta.

“Socorro.” “Aqui é Gustavo e eles acabaram de matar Berta.” “Estou sozinho na casa dela e ninguém sabe.”

“Por favor contem ao copinh.” “Algum vizinho ou contato em La Esperanza.”

Às 5h37, o chat da DESA acordou.

Sergio Rodriguez foi o primeiro a enviar uma notícia sobre a morte de Berta. Doze minutos depois, Castillo também mandou uma mensagem ao grupo. “Para nós essa é uma situação de crise. Precisamos nos antecipar ao que virá para o nosso lado.”

Um empate burocrático

Depois do assassinato de Cáceres, enquanto a ira pública se voltava contra a empresa, as mensagens de chat mostram que os executivos da DESA se atropelaram para buscar a ajuda de seus poderosos aliados.

Em 7 de março de 2016, o ministro da segurança de Honduras, Julián Pacheco Tinoco, assegurou a Pedro Atala Zablah que a morte de Cáceres seria enquadrada como “crime passional”.

Quando hordas de manifestantes começaram a se reunir no local da barragem, Pages pediu a Atala Midence que conversasse com um famigerado chefe de polícia chamado Héctor Iván Mejía e solicitasse mais agentes para confrontá-los. Atala informou a Pages que já tinha falado com ele, juntamente com Pacheco Tinoco.

Em 1º de abril, quando o governo hondurenho anunciou uma investigação sobre o assassinato, o consultor de relações públicas não identificado tentou levantar os ânimos no chat da DESA. “Até agora, o Ministério Público foi um aliado, não um inimigo”, escreveu. “Precisamos pensar estrategicamente, e o que é possível e mais provável e verdadeiro é que o Ministério Público tenha dito isso para calar as acusações do copinh.”

Era melhor para a DESA permanecer em silêncio sobre o assassinato, ele aconselhou, porque se a empresa criticasse publicamente a ação do Ministério Público, “isso lançaria dúvida sobre o processo de investigação das autoridades hondurenhas e isso aumentaria consideravelmente as acusações contra nós”.

Mais para o fim daquele mês, Avila, o chefe da segurança da DESA, relatou ao grupo que suas fontes de inteligência militar tinham alertado sobre os planos do COPINH para realizar outro protesto. Pages sugeriu que atuassem com a polícia para intimidar os manifestantes, registrando seus nomes e as placas de seus carros. Logo depois disso, Rodriguez disse que havia encarregado os infiltrados da empresa no COPINH de espalhar rumores para dividir e enfraquecer a organização.

Entre os dados que os promotores extraíram do telefone de Rodriguez está um arquivo com data de 3 de março: uma foto de Cáceres esparramada no chão, um dos braços sobressaindo em um ângulo estranho, o outro coberto por uma poça de sangue. Sua boca está aberta, o cabelo enrolado sobre a cabeça.

Rodriguez e seis outros agora estão presos, condenados pela execução do assassinato de Cáceres: Bustillo, Díaz, Hernández, e três outros assassinos chamados Edilson Duarte Meza, Elvin Rápalo e Oscar Torres. Depois que as sentenças condenatórias foram proferidas, em 2 de dezembro, os deputados norte-americanos Hank Johnson, do estado da Georgia, Jan Schakowsky e Mark Pocan emitiram uma declaração de que as condenações seriam um “primeiro e pequeno passo” rumo à justiça. “A verdadeira justiça inclui o julgamento e a punição de todos os responsáveis pelo assassinato, inclusive os executivos da empresa que estava construindo a barragem, a DESA, que foram os mentores intelectuais e financiadores do plano.”

Em resposta a um pedido de comentário, Nelson Dominguez, advogado de Daniel, Pedro e José Eduardo Atala Zablah, afirmou que os homens “negam completamente qualquer participação neste infeliz crime” e “acreditam firmemente na inocência do Sr. David Castillo e do Sr. Sergio Rodríguez.”

Robert Amsterdam, que disse que sua empresa Amsterdam and Partners LLP representava a DESA até meses atrás, mas não é mais contratada pela empresa, sustenta que seus antigos clientes não estavam envolvidos no assassinato de Cáceres. “Estes eram jovens idealistas que queriam livrar Honduras de sua dependência do gás e queriam criar uma situação sustentável”, disse ele ao Intercept. “Eles colocaram a inocência absoluta atrás das grades e, nisso, estou falando de Castillo”.

Amsterdam traçou a defesa da empresa em um documento publicado em 2018, intitulado “Guerra ao desenvolvimento: expondo a campanha de desinformação da COPINH em torno do caso Berta Cáceres, em Honduras”. O documento sugeria que os dados de celulares apresentados em tribunal poderiam estar “incompletos ou corrompidos”.

Dominguez repetiu essa afirmação. Ele escreveu que a família Atala Zablah havia apresentado uma queixa legal ao Ministério Público por “manipulação de evidências” e alegado “violações graves do direito ao devido processo”.

Yuri Mora, porta-voz do Ministério Público de Honduras, respondeu: “Esses são argumentos e estratégias da Defesa. O Ministério Público tem certeza de suas acusações e de todas as evidências”.

Galo, Mejía, Pages e Pacheco Tinoco não responderam aos pedidos de comentário.

O destino de Castillo permanece em aberto. Caso seu julgamento seja adiado por tempo demais, ele pode ser libertado da prisão em razão de uma lei hondurenha que proíbe manter indivíduos presos sem condenação por prazo superior a dois anos. Enquanto isso, um dossiê investigativo publicado em agosto pelo grupo de direitos americanos School of the Americas Watch revelou supostas atividades criminosas praticadas por Castillo, com habitualidade, em benefício de pelo menos seis empresas hondurenhas com as quais estava envolvido, incluindo a DESA, e possíveis ligações com um importante cartel de drogas. Naquele mesmo mês, a jornalista Nina Lakhani, do Guardian, divulgou a compra por Castillo de uma casa de US$1,4 milhão no Texas, oito meses depois do assassinato de Cáceres.

Mas Roxanna Altholz, professora da faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, na Califórnia, e ex-membro do GAIPE, uma equipe internacional que investigou o assassinato, diz que o problema é mais extenso que a falta de progresso no caso de Castillo. A questão de fundo, para ela, é que o assassinato de Cáceres foi a culminância de anos de corrupção e violência coordenadas. A rede ilícita responsável por isso, incluindo os executivos da família Atalah Zablah na DESA e seus aliados, permanece intacta.

“A responsabilização não é atingida com uma sentença condenatória para cada um desses indivíduos”, declarou ela. “Para que haja efetiva responsabilização nesse caso, a rede criminosa precisa ser desmantelada”.

Tradução: Deborah Leão

Fuente: The Intercept - Brasil

Temas: Criminalización de la protesta social / Derechos humanos

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