A autodemarcação do povo Nawa: conheça o trajeto feito pelo grupo através dos rios da Amazônia

Idioma Portugués
País Brasil
Dona Amália/Aimã, professora de língua indígena da comunidade Nawa - Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real

Comunidade espera há 22 anos por demarcação oficial e vive sob ameaça causada por projeto de rodovia.

A convite do cacique Railson Nawa e de outras lideranças indígenas, a reportagem da agência Amazônia Real navegou, em julho de 2021, pelo rio Moa e pelo igarapé Novo Recreio, além de percorrer mais de 20 quilômetros numa trilha de mata fechada, vivenciando aquilo que pode ser considerado a saga do povo Nawa pela autodemarcação. 

É uma saga protagonizada por homens, mulheres e crianças conscientes das ameaças a que estão sujeitos. Eles não se recusam a embarcar em bajolas em dias inteiros dentro da água ou da mata, abrindo trilhas de uma margem de igarapé a outra para proteger a terra indígena. Sem recursos, constroem tapiris nos  limites do território reivindicado para sinalizar que, daquele ponto em diante, a área é de domínio de um povo que quer o direito de posse das terras ocupadas por seus antepassados.

A reportagem especial produzida pelos jornalistas Fabio Pontes e Alexandre Noronha, relatada a seguir, conta a história de vida e resistência de um povo indígena e os desafios enfrentados para chegar aos limites de seu território, em uma região da Amazônia onde a floresta (ainda) se encontra intocável.

Diário de bordo: a jornada — Dia 1

A Terra Indígena Nawa fica à margem direita do rio Moa, um dos mais importantes afluentes do rio Juruá. O território fica em frente  a outra terra indígena, a dos Nukini. Ao contrário dos vizinhos, os Nukini já estão com os seus 27.263 hectares demarcados e homologados desde o início dos anos 1990. Para chegar a ambos os territórios é necessário um dia inteiro de viagem subindo os rios Japiim e Moa, indo em direção ao ponto norte do Parque Nacional (Parna) da Serra do Divisor.

A região é uma das mais cobiçadas pela classe política acreana para o avanço de projetos na área de infraestrutura e prospecção de petróleo e minérios. O Parna da Serra do Divisor pode ser rebaixado para a categoria de Área de Proteção Ambiental (APA) caso o projeto de lei 6024, de autoria da deputada federal Mara Rocha (PL-AC) e do senador Márcio Bittar (MDB-AC), seja aprovado pelo Congresso. 

Caso isso aconteça, todas as atividades econômicas proibidas hoje estariam liberadas, entre elas a extração de madeira numa das regiões mais preservadas da Amazônia, com 837 mil hectares.  O principal objetivo com a eventual aprovação é a construção da rodovia entre a cidade acreana de Cruzeiro do Sul e a peruana Pucallpa, capital do departamento de Ucayali, cujo traçado passaria dentro do parque. Para os Nawa, a construção da rodovia seria o gatilho para a extração de petróleo e a mineração saírem do papel,  colocando em risco – outra vez – a sua sobrevivência.  

“Essa estrada pode ser acesso para uma mineração de ouro, ela pode acessar o petróleo também, que está aí nessa fronteira. Nós estamos aqui na boca dos igarapés. Então, caso isso venha a acontecer, acaba com as nossas vidas. Vamos morrer tudo intoxicado porque a água que bebemos é do rio e dos igarapés. Se explode um poço de petróleo aí, vamos todos morrer envenenados”, diz o cacique Railson Nawa, que desde 1999 lidera o povo Nawa pela demarcação do território. 

Pouco depois das 7 horas do dia 2 de julho de 2021, embarcamos numa bajola (lancha de pequeno porte) ancorada no porto Japiim, na cidade de Mâncio Lima, localizada no ponto mais ocidental do Brasil. Além deste jornalista, embarcaram na bajola de alumínio o repórter-fotográfico Alexandre Noronha, a esposa do cacique Railson, Vera Lúcia Nawa, a filha do cacique e enteada de Vera Jarlene Nawa, e o seu filho Arthur, de dois anos. A embarcação tem como barqueiros Fabio Nawa e Alcimar Oliveira. Apesar de estes serem seus nomes de registro, ambos são chamados pelos parentes como Fabiano e Paulo. 

Nas primeiras horas do dia, a movimentação pelo porto é intensa.  Moradores das comunidades ribeirinhas voltam para casa após alguns dias na cidade para sacar os benefícios no banco, fazer as compras e visitar os familiares em Mâncio Lima. É ali também onde saem as embarcações com turistas de diferentes partes do mundo em direção às pousadas e cachoeiras da Serra  do Divisor.  

No centro do noticiário no Brasil e do mundo por ser afetada pela construção de uma rodovia entre as cidades de Cruzeiro do Sul, a segunda maior do Acre, e Pucallpa, no Peru, a Serra do Divisor é uma das principais atrações turísticas do Acre. Atrai cientistas e pesquisadores por abrigar espécies animais e vegetais que só existem ali. O Vale do Juruá é considerado uma das regiões do planeta  mais rica em biodiversidade. As belezas naturais da serra também a tornam uma atração.

Por conta disso, o movimento de embarcações subindo e descendo o rio Moa é intenso. Neste caminho estão as aldeias Nawa e Nukini, que, além das margens do rio principal, espalham-se pelos igarapés. A casa do cacique Railson Nawa é o ponto de chegada da reportagem após dez horas de viagem subindo os rios Japiim e Moa. A jornada é feita na bajola impulsionada por um motor rabeta de 13HP, chamado apenas de motor 13.  

Quem vê a bajola deslizando e sacolejando pelo vaivém dos banzeiros pode até ficar assustado. A impressão é que, a qualquer momento, a embarcação afundará. A água até entra, mas é para isso que o baldinho fica aos pés do piloto para tirar o excesso.  

A usada pela reportagem é a versão “luxo”, por ter uma cobertura que protege do sol e da chuva. Em julho, as chuvas são escassas nesta parte da Amazônia, o que permite um dia inteiro de navegação sem se molhar. A longa viagem é compensada pela belíssima paisagem de uma floresta intocada. As bajolas cobertas são comuns em Mâncio Lima, como forma de garantir mais conforto aos turistas rumo à serra. 

A v egetação densa às margens do Moa formada por majestosas árvores – com destaque para a sumaúma – só é interrompida pelas casas solitárias dos ribeirinhos. Com o rio seco, se formam praias de uma areia branca. São nelas que, ao fim da tarde, crianças e adultos mergulham no rio para o banho do dia. Em tábuas improvisadas ou dentro de canoas, as donas de casa lavam a louça e a roupa aos olhos de quem navega pelo Moa. 

No começo de 2021, o cenário ali era bem diferente. Se naquele começo  de “verão amazônico” as praias predominavam, entre janeiro e março tudo estava tomado pelas águas. As casas nas partes mais baixas ficaram quase encobertas pela cheia do Moa, provocada por um período de chuva que transbordou mananciais, deixando milhares de desabrigados no Acre. 

“A água chegou até aqui”, mostra o cacique Railson Nawa ao levar a reportagem até a entrada da escola da aldeia Novo Recreio, localizada  a 300 metros de distância da margem do Moa. A casa de Railson, de frente para o rio, ficou com água quase no teto. A aprazível varanda onde a reportagem armou as redes para passar a primeira noite na Terra Indígena Nawa não estaria à vista no começo do ano. 

Não fosse o frio intenso da noite, o sono teria sido perfeito. Naqueles dias, uma massa de ar polar  tinha atingido o Acre, chegando com força até o Vale do Juruá. Em região de mata, a sensação de frio é ainda maior. Não há agasalhos, cobertores e luvas que protejam. A madrugada gelada é compensada por um belo acordar, tendo como paisagem o Moa e um paredão de floresta virgem na outra margem. Ar puro, o cheiro da floresta.  

Não há muito tempo para apreciar  o visual da varanda do cacique. É só o tempo de fazer a higiene na água gelada do Moa, tomar café com bolacha, desarmar as redes e colocar tudo nas mochilas e nas bajolas – de novo. Os txai – que quer dizer amigo no tronco linguístico pano e é usado entre os indígenas acreanos em suas saudações – já haviam colocado toda a bagagem nas embarcações. O dia seria longo e era preciso aproveitar cada minuto com a luz do sol. O igarapé Novo Recreio nos esperava. 

Cuidado que tem poraquê aqui — Dia 2 

Antes das 7h30, a bajola com a equipe da Amazônia Real desancorou da praia em frente à casa do cacique Railson Nawa, rumo ao ponto limite da Terra Indígena Nawa com o Parna da Serra do Divisor. O local é conhecido como Pão de Açúcar, nome de uma das colocações que formavam o antigo seringal Novo Recreio.  

Ocorreram  mudanças na embarcação: a cobertura foi retirada e o motor rabeta de 13hp foi substituído por um de 6hp. “É melhor para navegar por lá. O igarapé está muito seco”, explicou Paulo, um dos condutores da bajola. Outras cinco embarcações se juntaram para a jornada da autodemarcação até o Pão de Açúcar. Mulheres e crianças embarcaram ao longo da navegação pelas águas do Novo Recreio. 

Os Nawa têm um modo diferenciado de ocupar a terra.  Apesar das áreas serem identificadas como aldeias, eles não vivem em aldeamentos, reunidos num mesmo ponto. As casas estão localizadas ao longo do Novo Recreio, distantes umas das outras. Quando há um número maior de casas, são pessoas da mesma família: o filho ou filha que se casou e construiu um imóvel no mesmo terreiro, por exemplo.  

As casas dos Nawa são construídas às margens dos barrancos. No silêncio da floresta, o ronco da rabeta se ouve desde muito longe. Nas janelas das casas ou sentados em bancos às margens do igarapé, os parentes veem a “flotilha” da autodemarcação subir o Novo Recreio. 

Até o encontro com o igarapé Tapada, a navegação flui bem. Apesar do baixo volume de água, é possível navegar  sem riscos de “topar” com um banco de areia ou um tronco de árvore submerso. As cabeceiras do igarapé Tapada, dizem os Nawa, são passagens dos “parentes brabos” – como se referem aos índios isolados. 

Ali, no encontro do Tapada com o Novo Recreio, ocorreu a primeira parada para reabastecer o motor 6 e fazer a merenda – como se referem às refeições, independente do horário. Naquele ponto, a água do igarapé não fica acima dos joelhos, mostrando que, dali por diante, a navegação seria muito mais desafiadora. 

Ao pegar o remo e sentar na primeira banqueta da bajola, Paulo deixou ainda mais evidente que o caminho até o destino seria difícil. Na proa da bajola, Alexandre Noronha, que filmava e fotografava a viagem, precisou ceder lugar para Paulo se transformar no capitão da canoa.   

Com o remo, ele ajudou a bajola a desencalhar dos bancos de areia, a desviar deles, tirar o barco de cima de troncos de árvores e sinalizar para Fabiano o melhor caminho para direcionar a rabeta. Em muitos pontos, o nível da água varia; na grande maioria do trajeto, todavia, a lâmina d’água não passa de um palmo.  De dentro da bajola a mão alcança o fundo do igarapé. Se passasse algum peixe, daria para pegá-lo com as mãos. 

Fosse apenas o nível muito baixo do igarapé, a viagem poderia fluir sem tantos percalços, pois bastava toda a “tripulação” desembarcar da bajola e empurrá-la. O problema está em “quase” uma Floresta Amazônica inteira caída de uma margem à outra do estreito Novo Recreio.  Toras gigantescas cruzam o igarapé. Quando não são os troncos, são as copas de sumaúmas, apuís, gameleiras, entre outras. Quando galhos e troncos se amontoam nos rios e igarapés, formam-se os balseiros. 

E, até chegar ao destino, há dezenas, centenas deles. Ao contrário da viagem pelo Moa, onde foi possível descansar as costas deitando nos estrados da embarcação, no Novo Recreio isso não acontece. Ficar deitado só é permitido para passar por debaixo de algum tronco ou entre as copas caídas. O movimento de sair da posição de sentado e ficar ao chão da bajola é contínuo; não há como tirar um cochilo – o risco de ser atingido por um galho, de “levar uma paulada” é constante. 

Quando não é possível o barco passar por cima dos troncos ou entre o balseiro, a única solução é todo mundo cair na água para reduzir o peso. Na viagem, enquanto Fabiano forçava a toda potência o gasguito motor seis, Paulo puxava a bajola pela parte da frente. Quando nem assim o barco desencalhava, todo mundo empurrava no braço. Nesta jornada, toda ajuda faz a diferença. Dez metros à frente, outra vez encalhamos num balseiro ou banco de areia, hora de mais um empurrãozinho. E assim por diante.

Com a bajola encalhada em cima de um tronco, o repórter-fotográfico Alexandre Noronha se preparava para sair quando foi avisado: “Cuidado que tem poraquê aqui”. Voltou rapidinho. Ninguém quer tomar um choque dentro d’água do peixe elétrico. Quando a árvore cai numa posição em que não é possível seguir destino, só há um jeito: cortá-la com a motosserra. A reportagem conseguiu contar as 15 vezes em que o ronco das rabetas foi substituído pelo da motosserra. 

À medida que o dia avançava, o calor se intensificava e a fadiga chegava, a contagem foi perdida. Ficou incontável a necessidade de cortar uma tora no meio do caminho. Perto das 11 horas, mais uma parada para outra merenda – agora é o almoço. 

Numa prainha de areia molhada e gelada, o povo se reuniu para comer a farofa de calabresa com arroz e peito de frango frito. Logo de cara foi possível ver o rastro da onça que passara ali no dia anterior. O tamanho das patas do felino impressionam. A mão fechada de um adulto se encaixa perfeitamente no rastro. Ainda bem que aportamos ali bem depois da hora da onça beber água.  Em outras praias há rastro da anta, o animal  que na tradição oral dos Nawa explica a origem do povo. 

Na etimologia dos povos indígenas da Amazônia, suas origens estão relacionadas com os diferentes seres vivos da floresta. O awa (anta na língua pano) está na tradição dos Nawa como o animal de onde foram concebidas as duas mulheres que deram origem ao povo. O nome Nawa refere-se ao outro, à gente, povo. Nawa passou a ser forma genérica como os brancos se referiam aos povos indígenas do Juruá, após o encontro do explorador inglês William Chandless com os Noke Ko’i (Katukina), numa expedição liderada por ele no fim do século 19. 

Ao se depararem com os forasteiros, os índios os chamavam de Nawa. De fácil assimilação, a palavra, então, foi incorporada ao vocabulário dos brancos para fazer referência aos povos nativos. Não por acaso, a região que forma o Vale do Juruá é conhecida como a terra dos Nawa, ganhando diferentes grafias: naua, nahua, náuas. Após  o contato com os invasores, os indígenas passaram a sofrer perseguições e eram mortos ao desenvolverem doenças às quais seus corpos não tinham defesa. 

Os que hoje fazem a autodemarcação do território afirmam ser descendentes da última índia Nawa. Ela escapou de ataque às malocas na região conhecida como estirão dos Nawa,   localizada no encontro do rio Moa com o Juruá. Com seus filhos e o marido seringueiro, a ancestral entrou pela mata e subiu o Moa até chegar à região hoje habitada por seus descendentes. O cacique Railson, por exemplo, é bisneto da “última Nawa”, cujo nome indígena é Mary Kuni (pronuncia-se Mariruni). Depois aportuguesado para Mariana.    

“O motivo de fazer esta autodemarcação, junto com o povo, é por conta de muitas invasões dentro de nossa terra. Eu, conversando com o povo, falei que estamos com 22 anos de luta. E esperar mais 22 anos, quando não tiver mais nada dentro das terras, aí não tem mais importância. Então vamos cuidar enquanto é tempo”, diz o cacique. 

A primeira ação de autodemarcação aconteceu no dia 22 de maio, quando eles abriram as trilhas que separam a terra indígena do Parna da Serra do Divisor.    

Refeição feita, era preciso seguir viagem. O caminho ainda seria muito longo. Havia muitos bancos de areias, balseiros e troncos para enfrentar. A coluna já estava acostumada ao movimento contínuo de deitar e levantar para não levar uma paulada na cabeça. “Olha o pau”, nos avisava, constantemente, o capitão Paulo, sentado na proa da bajola com o remo nas mãos. 

As horas avançavam, a luz do sol começava a enfraquecer e o destino parecia não chegar.  “Quando o igarapé não está assim, seco, a gente faz essa viagem rapidinho. Saímos de manhã cedo e meio-dia já estamos lá”, contou Paulo. Ele não aparentava o menor cansaço após o dia inteiro puxando o barco. Meio dia de viagem é “o rapidinho” para uma população acostumada a navegar e andar grandes distâncias mata adentro, falando que vai “bem ali’ – coloque milhas e mais milhas neste bem ali. 

Às 17h30, chegamos ao Pão de Açúcar. É uma área pequena, recém-aberta pelos Nawa, durante a primeira viagem da autodemarcação. As casas de madeira e de telhas brasilit são substituídas por tapiris cobertos com lonas. Atenciosos com os visitantes, construíram até um piso de madeira no tapiri da reportagem.

A primeira providência foi amarrar de novo as redes antes de escurecer. O outro luxo era um gerador de energia que acendia as lâmpadas e carregava as baterias das câmeras de Noronha – o sonho de todo fotógrafo numa cobertura no meio da selva. 

O nosso tapiri ficava numa posição privilegiada: ao lado da cozinha. A cozinha são as raízes de uma apuí recentemente derrubada onde fica o “fogão a lenha”. Ele estava protegido de uma eventual chuva que não caiu durante os dois dias inteiros ali na área-limite entre a Terra Indígena Nawa e o Parna da Serra do Divisor. 

Mais duas terras e estamos lá — Dia 3 

À medida que o sol começava a dar as caras, a sinfonia ensurdecedora de sapos começava silenciar. Isso após uma noite e madrugada inteiras de cantoria, cujo som vem de todos os lados da floresta. Todavia, nem a algazarra de sons noturnos da bicharada interrompeu o sono na rede, após a cansativa viagem pelo Novo Recreio. Para os Nawa, aquela epopeia foi apenas mais um deslocamento rotineiro. Eles já estão acostumados a passar  dias inteiros dentro da mata para caçar, andando distâncias e mais distâncias. 

Logo cedo, ainda sem os raios de sol, eles já estão de pé se preparando para o trabalho de checar como está a trilha que separa o território tradicional da unidade de conservação. São essas trilhas que funcionam como a autodemarcação da Terra Indigena Nawa. Ao abrir esses caminhos – fazendo apenas o corte de galhos e troncos – eles têm melhores condições de  fiscalizar a área, facilitando o deslocamento no interior da mata para saber se a TI vem sendo invadida por caçadores ou impactada pela expansão das fazendas no entorno. 

Naquele 3 de julho, a Amazônia Real iria acompanhar uma destas ações de monitoramento.  A meta era chegar ao limite oeste da terra indígena, saindo da margem esquerda do igarapé Novo Recreio e indo até a margem direita do Jesumira. Esses cursos d’água, por natureza, estão distantes uns dos outros dezenas de quilômetros. Para os Nawa, Novo Recreio e Jesumira não estão tão longe assim. Perguntei quanto tempo de caminhada se faz de uma margem a outra: duas horas e meia. 

A princípio não aparentava ser tão longe assim. Duas horas e meia são suportáveis, pensei. O problema é que, com um ambiente e um terreno tão hostil quanto o de uma Floresta Amazônica em seu estado mais bruto, estas duas horas e meia se transformam em cinco horas e meia – e assim foi. Pouco antes das 7h30 já estávamos começando nossa jornada até chegar ao igarapé Jesumira. 

No começo, o caminho estava uma maravilha. Sem chuvas, o terreno encontrava-se seco, sem lama, sem risco de ficar com os pés atolados e encharcados. Os principais obstáculos eram troncos caídos. Um deles era tão grande que uma escada foi construída para superá-lo. 

Na frente e na retaguarda, os Nawa, com espingardas, faziam a “escolta”, caso no caminho surgisse alguma onça. Sinal delas mesmo só rastros nas áreas de charco. Sim, o caminho que aparentava ser amigável aos poucos vai revelando todo o lado mais selvagem de uma mata tropical. É verão amazônico, dias sem chuva, mas a floresta não deixa de ser úmida. A elevadíssima umidade é um fator a reduzir o desempenho físico. A cada passo a transpiração aumenta,  perde-se muito líquido. É preciso, de minuto em minuto, tomar água para evitar a desidratação. 

As características do terreno aumentam ainda mais o desgaste. De cima, a Amazônia aparenta ser uma floresta de solo plano, reto. Puro engano. São muitos aclives e declives. A cada subida e descida o fôlego chega ao limite. O suor toma conta do corpo e da roupa. Em certos pontos é preciso parar para respirar e recuperar as energias. Mastiguei castanhas-do-pará para repor as forças. Já para os Nawa, uma simples aplicação de rapé é suficiente para a reposição.  

Entre o Novo Recreio e o Jesumira há outros incontáveis cursos d’água. Nesta época do ano, eles estão secos. Mesmo assim, para atravessá-los é preciso se equilibrar em pontes  feitas de finos troncos de árvores. Os Nawa atravessam sem nenhum tipo de apoio. Os repórteres só conseguem fazer a travessia apoiando-se em varetas que evitam o tombo lá embaixo. Ao se encarar as áreas encharcadas, percebe-se que atravessar os pequenos igarapés equilibrando um passo após o outro é bem menos sofrido. 

A presença de buritis denuncia ser ali um terreno alagadiço, com a presença de muita água. O terreno nestes buritizais é diferente dos outros, formado por uma terra negra movediça. Ao se pisar fora dos trapiches improvisados feitos com troncos de pequenas árvores, a chance da perna afundar até a altura do joelho é alta. Se não chegar a isso, pelo menos todo o pé fica submerso; ao puxá-lo de volta, a bota tende a ficar no fundo, precisando resgatá-la com as mãos. 

São nestas áreas em que é possível encontrar com mais facilidade rastros de animais, em particular as patas dela: a onça-pintada.  Não havia muito tempo para admirar os sinais da vida selvagem. O desejo mesmo era chegar à margem do Jesumira. Os cursos d’água são os limites naturais que definem a Terra Indígena Nawa. A oeste está o igarapé Jesumira e a leste o Jordão. Ao norte há o rio Moa e ao sul o divisor de águas com o Parna da Serra do Divisor. 

Assim ficou delimitado o território em audiência de conciliação realizada no dia 15 de outubro de 2003, na sede da Justiça Federal em Rio Branco, a capital do Acre. Nesta mesma audiência também ficou definido que o governo brasileiro, por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai), reconheceria a existência de mais um povo indígena: os Nawa. Além da Funai, estavam à mesa o Ibama, o Incra e o Ministério Público Federal. O cacique Railson Nawa representava a comunidade. 

Ao final, o juiz federal David Wilson de Abreu Pardo estabeleceu o prazo de três meses para que a Funai fizesse a identificação e delimitação da Terra Indígena Nawa. Em 19 de novembro daquele ano, a fundação baixou a Portaria 1.071 para iniciar o processo de identificação do território. Os três meses já se transformaram em 18 anos  e até hoje os Nawa não tiveram o processo de demarcação concluído, cabendo a eles fazer a autodemarcação.    

Caminhando numa mata fechada e expostos a todo tipo de ameaça, lá estão eles demarcando e cuidando das terras. Em meio a todas estas dificuldades, o entrosamento da reportagem com os Nawa só aumentou. As conversas fluíram. Pudemos conhecer um pouco mais de cada um, suas histórias e os causos com a floresta. 

Enquanto a cada metro eu “topava” com a ponta da bota nas raízes e tocos das árvores e, por vezes, metia o pé em buracos que entortam os pés, eles seguiam o caminho na maior tranquilidade. Alguns deles nem botas usavam – estavam com sandálias de borracha, como se tivessem indo ali na padaria da esquina comprar pão. 

As topadas, os pés metidos na lama dos buritizais, o equilíbrio em varetas sobre córregos não se comparam a todo o desgaste de subir as terras altas no meio do caminho. “Mais duas terras altas e estamos lá”, informaram os Nawa.  Passamos as duas terras altas, e nada do Jesumira aparecer. O desgaste físico e mental só aumentava. Cada terra alta parecia se transformar num Everest à nossa frente. 

Os dez quilômetros de uma margem à outra se transformaram em 20. Precisamos encarar os outros dez para retornar. Às 12h30 chegamos, enfim, ao Jesumira, o limite no sentido oeste da Terra Indígena Nawa. Do outro lado está o parque da Serra do Divisor. Para chegar lá, basta um salto. O Jesumira é ainda mais estreito que o Novo Recreio. Sem chuvas, ganha mais a aparência de um pequeno córrego. 

Na margem do igarapé, os Nawa construíram um tapiri para marcar o limite de seu território. Como não dispõem de muitos recursos financeiros, não conseguiram produzir placas para sinalizar a área, separando o que é terra indígena da unidade de conservação. Eles recorreram às antigas habitações indígenas, ainda hoje usadas pelos parentes isolados, feitas com troncos de árvores, amarradas por cipó e cobertos com palhas para fazer a demarcação. 

É ali na margem do igarapé que almoçamos cercados por muitas abelhas e cabas, mas não somos atacados. É preciso apenas ter cuidado para não machucá-las ao espantá-las. Em meio a este enxame, comemos, tomamos água, repomos energia para o retorno.  

Como o território não está oficialmente demarcado, não há as coordenadas geográficas dos limites. Na sabedoria tradicional dos Nawa, os igarapés são os marcos naturais do território. Eles definiram esses limites a partir dos relatos de seus pais e avós sobre por onde costumavam andar quando os primeiros Nawa chegaram à região. 

A criação do Parque Nacional da Serra do Divisor, em junho de 1989, colocou os Nawa, e todos os moradores ribeirinhos cujas propriedades ficaram dentro dos 837 mil hectares da unidade de conservação, num impasse jurídico. Por se tratar de um parque, categoria de proteção integral, a presença de moradores não era permitida. 

A partir daí, o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), então responsável pela gestão das unidades de conservação no país, iniciou o processo para reassentar as famílias que ficaram dentro do parque, incluindo os Nawa. Em 1999, o Ibama iniciou o cadastramento das famílias para saber quem era quem dentro do parque, e levá-las para outra área. 

Foi a partir disso que foi descoberta a presença de outro grupo indígena morando no entorno do Parna, além dos Nukini, que já estavam com seus 23 mil hectares, na margem esquerda do Moa, homologados desde 1992. Até 1999, a presença do povo Nawa era oficialmente desconhecida. 

Vítimas de um processo de extermínio ao longo do século passado, os próprios Nawa não se identificavam como indígenas. Assim eles foram orientados pelos antepassados, afirmam, para não sofrerem com as perseguições e preconceitos. 

Até o momento em que se viram ameaçados a deixar o território onde estavam havia pelo menos quase um século, os Nawa eram vistos como caboclos, filhos dos antigos seringueiros e ribeirinhos da Amazônia. 

Contudo, estudos antropológicos feitos pela Funai nas décadas de 1970 e 1980 já apontavam a presença de um grupo indígena vivendo à margem direita do Moa. Para os responsáveis pelos estudos, tratava-se de misturas de Nukini com caboclos ou de Nukini com os Puyanawa, outro povo cujas aldeias estão no município de Mâncio Lima. 

Foi a partir da visita dos agentes do Ibama que eles passaram a se auto identificar como Nawa. “Eles não acreditaram na gente. Disseram que não podia ser verdade porque os Nawa já tinham sido extintos, não havia mais Nawa”, diz o cacique Railson Nawa. 

Foi a visita à casa de dona Chica, a anciã do povo, com 88 anos, que levantou a suspeita de que eles realmente formavam um grupo indígena. A descoberta de um cemitério no quintal de dona Chica chamou a atenção, pois não é tradição das comunidades ribeirinhas enterrar os familiares perto de casa. Na maioria das vezes, quando se morre na própria localidade, o corpo é levado para o cemitério da cidade. Os agentes do Ibama então concluíram que este tipo de sepultamento era “coisa de índio”, como os Nawa se recordam. 

A partir de então, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) foi acionado para estudar a situação. Conforme as investigações avançavam, foi-se descobrindo que, de fato, tratava-se de um povo indígena. Além dos cemitérios, malocas, cerâmicas e artefatos foram descobertos à medida que se avançava pelo igarapé Novo Recreio. Diante de tantas evidências, não havia mais como deixar de reconhecer a presença de mais um povo indígena dentro do Parna da Serra do Divisor. 

Daí em diante, a Funai assumiu a questão para fazer os estudos de reconhecimento oficial da nova etnia e iniciar o processo de demarcação das terras. A queda de braço entre Funai e Ibama é vista como uma das causas para tanta espera. 

Francisca Nazaré da Costa Nawa, a dona Chica do Celso, morreu no dia 27 de janeiro deste ano, vítima de uma infecção generalizada. Ela era a memória vida dos Nawa. Foi a partir dos relatos da anciã e dos conhecimentos tradicionais dela que os Nawa foram reconhecidos como povo indígena e que foi iniciado o longo processo de demarcação do território. Dona Chica morreu sem ver as terras de seu povo reconhecidas pelo governo. 

Longo caminho é também o que a reportagem precisa fazer para voltar às margens do Novo Recreio. Saímos o mais cedo possível para chegar sob a luz do sol. 

Debaixo das copas da selva, fica escuro mais cedo. É por essa hora que a bicharada começa a sair da toca para a noitada. Não queria topar com nenhuma onça pelo trajeto – suas patas são suficientes para mostrar todo o poder que possuem. Às 17h30, ao crepúsculo, chegamos ao nosso acampamento no Novo Recreio. 

Procurada pela Amazônia Real, a Funai respondeu que “em relação à previsão para continuidade do processo de estudos da área reivindicada”, consta no planejamento anual a “realização de etapa de campo complementar no âmbito do procedimento”.

“Contudo, a Funai esclarece que, devido à pandemia de Covid-19, foi editada a portaria 419/PRES/2020, prorrogada pela Portaria 183/PRES/2021, que restringe o contato entre agentes da Funai e indígenas ao essencial, o que impactou o planejamento das etapas de trabalho de campo do órgão”, diz a nota enviada pela assessoria de imprensa. O processo de demarcação está na fase de identificação do território. 

Da autoidentificação à autodemarcação — Dia 4 

O quarto dia seria o do retorno, de descer o Novo Recreio até a aldeia central. Todavia, o tremendo desgaste físico dos 20 quilômetros de trilha no meio da selva tornou inviável encarar logo de cara a desgastante viagem de barco pelo igarapé ainda mais seco. À medida que os dias sem chuva se prolongam, a vazante dos mananciais continua. É preciso descansar um dia antes da jornada do regresso entre troncos de árvores, balseiros e bancos de areia. 

Tiramos a segunda-feira, 3 de julho, para conhecer ainda mais sobre a história Nawa, seus cantos, artesanatos, danças e o esforço para recuperar a identidade cultural, da qual foram obrigados a abrir mão para sobreviver a uma época de perseguição e preconceitos nos seringais. Negar as raízes indígenas foi a forma encontrada pelos Nawa -e outros povos da região – para escapar dos efeitos devastadores da discriminação – presente até hoje. 

Os primeiros Nawa, por exemplo, só conversavam com os filhos e filhas em português. “Nossos parentes tinham medo de falar na língua deles para não serem denunciados, para não ficarem identificados como índios e sofrerem perseguição”, explica a professora e liderança feminina Anália Nawa. Ela é uma das responsáveis por conduzir os Nawa neste processo de recuperação cultural. Um de seus trabalhos principais é recuperar a língua. Os Nawa pertencem ao tronco linguístico pano. 

Conforme os estudos antropológicos feitos a partir da auto identificação, os Nawa são descendentes de outra população indígena que habita a bacia do rio Juruá: os Shawãnawa, também chamados de Shawãdawa, ou simplesmente os Arara. Também vítimas das correrias no século passado, os Shawãdawa tinham (e ainda têm) suas aldeias espalhadas pelo Alto Rio Juruá, onde hoje é o município de Porto Walter (AC). 

Além de serem impactados pela atividade extrativista da seringa e do caucho,  os Shawãdawa sofreram com as guerras intertribais. Um dos inimigos eram os Yawanawa. O sertanista txai Marcelo Macedo foi um dos estudiosos que participaram, no início dos anos 2000, das pesquisas antropológicas feitas pela Funai para descobrir a origem daquela população que exigia a identidade Nawa. 

Segundo ele, os Yawanawa fizeram ataques às aldeias Shawãdawa em busca de mulheres para assegurar a posteridade. Os Yawanawa perderam suas mulheres num ataque dos Tuchinawa. Conforme Macedo, ao ficar sob ataque dos Yawanawa, duas meninas  Shawãdawa conseguiram escapar embarcando num casco de paxiúba (paxiubão), descendo o rio Juruá à deriva – o que é chamado na região de bubuia. 

Após dias navegando perdidas, as meninas passaram em frente a um dos maiores seringais da época, que se transformaria na cidade de Cruzeiro do Sul. Elas foram resgatadas e passaram a trabalhar para a esposa do seringalista. Os nomes das duas Shawãdawa eram Mary Kuni (pronuncia-se mariruni) e Xikaka. Conforme txai Macedo, não se sabe afirmar o grau de parentesco entre elas. 

Passado um tempo, elas foram dadas em casamento para dois funcionários do seringal: um seringueiro e um marceneiro. Mary Kuni, que é a matriarca dos Nawa, hoje moradores do Novo Recreio, casou-se com o seringueiro José Vicente, o Vicente Peba. Eles se mudaram para a região do então seringal Novo Recreio, onde Vicente Peba trabalhou no corte da seringa. Conforme os estudos, os agora autoidentificados Nawa são descendentes da união entre a Shawãdawa Mary Kuni e o seringueiro Vicente Peba. 

A outra Arara, Xikaka, passou a ser chamada de Francisca Borges de Paiva e permaneceu na região que é hoje a cidade de Cruzeiro do Sul. Sua descendência também é denominada Nawa, mas nem todos reivindicam a identidade indígena. 

Neste século de história, os casamentos entre indígenas e caboclos passou a ser mais do que comum, além da união de pessoas dos mais diferentes povos indígenas. No rio Moa, como exemplo, é bastante comum o casamento dos Nawa com os Nukini, cujos filhos são chamados nas brincadeiras entre eles de “nukinawa”. 

Estima-se que Mary Kuni tenha tido ao menos 11 filhos. Seus netos, bisnetos e tataranetos permaneceram habitando as margens dos igarapés do território, agora reivindicado e autodemarcado. Aos poucos, eles recuperam a identidade cultural que foram obrigados a renegar para sobreviver aos macabros tempos das correrias, em que, como costumam dizer, “os parentes eram caçados a dente de cachorro”. 

Os dias de ficar ali no limite entre a Terra Indígena Nawa e o Parna da Serra do Divisor chegaram ao fim. Hora de mais uma vez arrumar as malas, desatar as cordas das redes, tirar tudo dos tapiris e levar para as bajolas. Do dia em que chegamos até o retorno, o Novo Recreio continuou vazando. Não era possível descê-lo com os motores. As rabetas foram suspensas, colocadas para dentro da embarcação. 

Voltamos para a aldeia central a remo, ou varejão, que é um tronco comprido e resistente feito de taxi-preto. Em pé, um na frente e outro atrás, Paulo e Fabiano impulsionavam a bajola, que deslizava sem muita pressa. Os desafios continuaram: bancos de areia, balseiros, sumaúmas atravessadas. E assim cada Nawa segue de volta para casa, com a sensação de dever cumprido ao demarcar e proteger a terra.

Fonte: Brasil de Fato

Temas: Biodiversidad, Pueblos indígenas

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