Incra é alvo de críticas por plano que favorece grilagem de terras no Pará

Organização Human Rights Watch, dos Estados Unidos, pede que Incra rejeite redução de assentamento no sul do Pará; área de reforma agrária está tomada por grileiros e é marcada por violência, desmatamento e mineração.
O INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) analisa uma proposta para reduzir pela metade o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, assentamento criado há 20 anos no sul do Pará com o objetivo de unir reforma agrária e preservação ambiental.
O Terra Nossa foi originalmente instalado com 149 mil hectares (equivalente à área do município de São Paulo), entre Novo Progresso e Altamira. A proposta inicial era assentar mil famílias em atividades de agricultura familiar e extrativismo sustentável.
Passadas quase duas décadas, o projeto acumula abandono, violência e omissão estatal. Apenas 298 lotes foram demarcados até 2018. O restante da área — cerca de 80% — está nas mãos de madeireiros e pecuaristas que atuam de forma ilegal.
A mudança em análise pelo Incra permitiria manter uma parte da área como PDS, transformar outra em projeto de assentamento convencional e deixar sem proteção legal uma grande parcela hoje dominada por grileiros — como são conhecidos os fazendeiros que se apropriam irregularmente de terras públicas.
A medida, segundo a Human Rights Watch (HRW), beneficiaria invasores e premiaria a grilagem com impunidade. Na terça-feira (19), a organização enviou uma carta ao presidente do Incra, César Aldrighi, pedindo que o órgão rejeite publicamente qualquer tentativa de redução do território.
“Reduzir o tamanho do Terra Nossa recompensaria quem ocupa ilegalmente e deixaria os moradores vulneráveis a mais violência”, afirmou Maria Laura Canineu, vice-diretora de meio ambiente e direitos humanos da HRW.
Em relatório de 2018, o próprio Incra apontou 77 ocupações irregulares, somando mais de 117 mil hectares. Também recomendou ações de retomada das terras, que em sua maioria nunca foram executadas.
A HRW pede ainda a retirada imediata dos ocupantes ilegais, proteção aos assentados e um plano de apoio que inclua demarcação de lotes, infraestrutura, crédito, assistência técnica e reflorestamento.
Procurado, o Incra disse que recebeu a carta da HRW na terça (19), mas que não teve “tempo hábil para análise”.

Passadas quase duas décadas, o PDS Terra Nossa acumula abandono, violência e omissão estatal. Apenas 298 lotes foram demarcados até 2018. O restante da área — cerca de 80% — está nas mãos de madeireiros e pecuaristas que atuam de forma ilegal (Foto: Fernando Martinho / Repórter Brasil)
Área já foi palco de assassinatos e do chamado ‘Dia do Fogo’
Pelo menos cinco lideranças foram assassinadas no assentamento, e uma está desaparecida desde 2011. Uma delas é Antônio Rodrigues dos Santos, o Bigode, sumido após denunciar extração ilegal de madeira. Aluísio Sampaio, o Alenquer, foi morto após cobrar investigação sobre o desaparecimento.
Maria Márcia Elpídia de Melo, presidente da Associação Nova Vitória, que representa parte dos assentados, sofreu um atentado em 2020. Seu carro foi atingido por uma caminhonete, enquanto os agressores gritavam: “Você tem que morrer, miserável”. Vacas de sua propriedade foram baleadas e seu filho foi espancado.
Em agosto de 2019, o assentamento foi um dos principais alvos do chamado “Dia do Fogo”, ação coordenada por fazendeiros e empresários para incendiar áreas da floresta. Foram registrados 197 focos de incêndio naquele fim de semana, um aumento de 319% em relação ao ano anterior.
Embora áudios apontassem a possível participação de lideranças políticas locais, nenhuma prisão foi realizada. A Polícia Civil atribuiu os incêndios à seca.

Em agosto de 2019, “Dia do Fogo” registrou 197 focos de incêndio em um fim de semana, em ação coordenada por fazendeiros (Foto: João Laet/Repórter Brasil)
Áreas queimadas foram posteriormente convertidas em lavouras de soja, como mostrou a Repórter Brasil. A soja, que exige alto investimento e mecanização, é incompatível com a proposta de produção familiar e sustentável que norteia os PDS.
Em outro episódio, também revelado pela Repórter Brasil, o pecuarista Bruno Heller, apontado pela Polícia Federal como “o maior devastador da Amazônia”, foi preso acusado de ocupar ilegalmente cerca de 1,9 mil hectares dentro do PDS Terra Nossa.
Em 2024, Heller e o empresário Ari Friedler teriam contratado seguranças armados para cercar um grupo de cerca de 70 sem-terra que reivindicava parte da área, segundo reportagem do site Mongabay. Os acampados relatam que foram alvejados com pulverização de agrotóxicos.
Diante das denúncias de novas queimadas e ameaças, o MPF (Ministério Público Federal) pediu, em 2024, que Exército, Polícia Federal, Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e a Secretaria de Segurança Pública do Pará atuassem em conjunto para conter os crimes ambientais no PDS Terra Nossa.
Nos últimos anos, a Procuradoria recomendou ao Incra que finalizasse a supervisão ocupacional, ajuizasse ações de reintegração de posse e abandonasse planos de redução da área.
Incra suspendeu 27 procedimentos administrativos sobre áreas ocupadas por grileiros
Em março, o MPF acionou a Justiça para obrigar o Incra a concluir 76 procedimentos administrativos sobre a ocupação do assentamento.
Em abril, o órgão havia encerrado apenas 37, que cobrem quase 79 mil hectares, ou 52% da área total, e os enviou à Procuradoria Federal Especializada para possível reintegração de posse. Outros 11 processos estavam sob análise.
O que chamou atenção, segundo a HRW, foi a suspensão de 27 procedimentos. Essas áreas coincidem com os setores que o Incra pretende excluir do assentamento.
Para a organização, a suspensão representa uma tentativa de esvaziar a fiscalização e deixar grileiros livres da responsabilização.
Fonte: Repórter Brasil