Marcha das Mulheres Negras reúne mais de 300 mil em Brasília por reparação e bem viver

Idioma Portugués
País Brasil

Após dez anos, Brasília voltou a ser o centro da luta das mulheres negras. Nesta terça-feira (25), mais de 300 mil pessoas ocuparam a Esplanada dos Ministérios para a  2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras, uma década depois da histórica mobilização de 2015, desta vez com o lema “por reparação e bem viver”. 

De todo o país e também de mais de 40 nações, mulheres negras chegaram à capital federal desde a última semana para uma das mais importantes mobilizações políticas da década. A nova edição da Marcha Nacional das Mulheres Negras não trouxe apenas o peso simbólico da memória, mas também a afirmação de que o tempo histórico pede mais protagonismo, mais enfrentamento ao racismo institucional, mais políticas públicas e mais espaço de poder para aquelas que sustentam o país e seguem sendo as mais afetadas pelas desigualdades.

A concentração da marcha teve início às 8h no Museu Nacional, seguida, às 9h, de uma  sessão solene no Congresso em homenagem ao papel das mulheres negras na democracia brasileira. Na Esplanada, o clima era de reencontro, de celebração e também de convocação à luta. 

Passos que vêm de longe

“Tudo isso é resultado do trabalho de quem veio antes da gente”, afirmou militante histórica Ieda Leal, do  Movimento Negro Unificado (MNU), destacando que as conquistas de hoje são fruto dos mais de quinhentos anos de resistência. Para ela, a marcha é um recado direto ao país: “Nós vamos ocupar todos os espaços da associação de bairro à presidência da República”.

A fala de Leda sintetiza o espírito do encontro: esta é uma marcha de continuidade, e não de reinício. Ela recorda que o movimento não nasceu em 2015, mas é herdeiro de gerações que lutaram mesmo sem reconhecimento. “Nós já sofremos demais. Hoje aqui, a marcha é para o bem viver, e é o bem viver de todo mundo, porque nós não temos nenhum tipo de egoísmo”, afirmou.

Rainha Diambi, do Reino Luba Bakwa Luntu, destaca que a luta das mulheres negras ultrapassa fronteiras e ecoa por todo o mundo. | Crédito: Foto: Flávia Quirino/Brasil de Fato DF

Representando o Reino Luba Bakwa Luntu, no Sul da República Democrática do Congo, a Rainha Diambi Kabatusuila, destacou ao Brasil de Fato DF a dimensão histórica e internacional da Marcha das Mulheres Negras, afirmando que a  violência não é uma realidade isolada do Brasil, mas um fenômeno que atravessa territórios e séculos. Segundo ela, “não há justiça para mulher negra no mundo, não somente no Brasil, é na África também, essa luta não é somente para o Brasil”.

Ela reforçou que a mobilização das mulheres negras brasileiras inspira e ecoa além das fronteiras do país. “O Brasil está mostrando que é um modelo de resistência, modelo de força, modelo de unidade da mulher negra, para mostrar a força, a capacidade de unir, de reunir a um poder muito grande neste país”, completou. 

Para ela, o movimento é também uma afirmação de identidade e ancestralidade: “como eu estou representando a força do nosso passado, a nossa cultura, a nossa herança, para mostrar que nós somos resistência”.

Reparação e bem viver

A Marcha se organiza em torno de um projeto político de sociedade: o bem viver. Inspirado em concepções latino-americanas e afro-diaspóricas, o conceito defende uma sociedade comunitária, que prioriza cuidado, dignidade, respeito, soberania e políticas coletivas que garantam direitos básicos. 

Rosilene Costa, do Movimento de Mães Autônomas do Distrito Federal (Mama-DF), destacou que esta marcha acontece em um momento político carregado de memória e dor recente: “Nós sofremos um golpe [em 2016] que atingiu a vida das pessoas de uma forma sem igual, nós tivemos muitas mortes nesse período [desde a pandemia], muitas famílias foram desestruturadas”.

Para Costa a marcha também simboliza recuperação histórica. “Mas a gente venceu, e quando eu falo a gente venceu, as mulheres negras venceram. As mulheres negras levantaram de novo a democracia, elas ergueram uma nova marcha e agora a gente marcha por reparação e bem viver”. 

Ela afirmou ainda que reparação não é abstrata: “Reparação está no direito da mulher de ter creche, no direito da criança de ter parquinho, no direito de viver numa cidade boa”.

Mulheres negras pelo clima

A pauta socioambiental também esteve em destaque este ano. “A crise climática é um tema das mulheres negras efetivamente, porque a maioria que sofre as consequências são as comunidades negras desfavorecidas e principalmente as mulheres”, afirmou Zézé Pacheco, da articulação Vozes Negras Pelo Clima da Bahia.

Pacheco defendeu que não basta reconhecer o impacto, é preciso mudar quem decide. “Nós estamos em poucos espaços de definição. A gente precisa inverter essa lógica, esse modelo de desenvolvimento numa perspectiva do bem viver”.

Ela ressaltou ainda que o debate ambiental não pode continuar sendo conduzido por quem nunca sentirá o peso das  enchentes, secas, desastres e deslocamentos forçados. “Envolver as mulheres na discussão e garantir financiamento para que as coisas aconteçam é uma condição de justiça ambiental básica”.

Milhares de mulheres de todas as regiões tomaram a Esplanada dos Ministérios em defesa de direitos, reparação e políticas públicas. | Crédito: Foto: Juliana Duarte

Outro elemento marcante da marcha foi a pluralidade de pautas e demandas. Entre as participantes estão mulheres quilombolas, mães de vítimas da violência de Estado, mulheres do campo, professoras, sindicalistas, artistas, intelectuais, estudantes e também  mulheres negras LGBT+.

A travesti Maya Alves Rodrigues, do Fórum das Mulheres Negras da Maré, no Rio de Janeiro, lembrou que o movimento sempre foi multivoz, mesmo quando o país tentou apagá-las. “É uma possibilidade da gente reescrever essa história em conjunto, tornando um futuro bem mais possível para a gente no presente”, disse.

Rodrigues ressaltou que a presença de  mulheres negras trans e travestis não é adição tardia ao movimento, mas parte fundamental de uma luta mais ampla contra as violências políticas, econômicas, sociais e também morais que estruturam o país há séculos.

Democracia 

A marcha também tocou diretamente nas disputas políticas contemporâneas. Parlamentares presentes reforçaram que, apesar de avanços, as mulheres negras continuam sendo as mais atingidas pela fome, desemprego, precarização e ausência de políticas públicas.

Para a deputada estadual Rosa Amorim (PT-PE), não há como falar em democracia sem orçamento e decisão política voltados a enfrentar desigualdades estruturais. “O Brasil tem a cara da mulher negra, mas infelizmente até hoje nós somos as que mais passam fome, que não têm política de soberania alimentar e que ocupam os piores empregos”, afirmou.

À reportagem do Brasil de Fato DF, a parlamentar completou: “Se a gente quer de fato aprofundar nossa democracia, a gente precisa que as mulheres negras estejam no centro da decisão política”.

Continuidade da luta

Luyara Franco, diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, disse que o ato reafirma que a luta das mulheres negras é permanente e insurgente. Marchar hoje ao lado de milhares de mulheres negras é afirmar que não aceitarão calar nossa voz nem apagar nossa história. Essa Marcha é sobre reparação, sobre bem viver e sobre a certeza de que seguimos transformando a memória da minha mãe em movimento, em política e em futuro”, afirmou.

A diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, fez questão de lembrar que a marcha acontece também no  Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, o que dá outra dimensão ao ato. “Racismo traz na sua esteira muita violência. Feminicídio, violência policial, violência de rua e tudo isso atinge principalmente as mulheres negras e as comunidades negras”.

Werneck destacou ainda que esta marcha é mais uma resposta organizada a uma onda reacionária que avança no mundo. “Essa é a hora de dizer mais uma vez: basta. É a hora de dizer mais uma vez que tem que fazer diferente pelo fim da violência e com reparações”.

A marcha percorreu toda a Esplanada, tomando o centro do poder do país por mulheres negras em alas regionais e uma internacional. A programação continua até a noite com apresentações culturais gratuitas.

- Editado por Clivia Mesquita.

Fonte: Brasil de Fato

Temas: Defensa de los derechos de los pueblos y comunidades, Desigualdad, Feminismo y luchas de las Mujeres

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