Brasil: a agonia de um ecossistema

Devastação da maior savana do mundo ameaça o equilíbrio ambiental e a sobrevivência de mais de 6.500 espécies de plantas e 1.200 de animais. Cientistas apontam riscos e tentam decifrar riquezas

Noemi Ribeiro da Silva (E) e a amiga Evanil Matos da Silva mantêm a tradição das avós e transformam o capim dourado em belas peças de arte, em mumbuca, Tocantins. ??O cerrado me garante uma vitória na vida??, diz Noemi.

O cerrado agoniza. Estudos inéditos mostram que 45% das terras do segundo maior ecossistema brasileiro viraram pasto e plantação. Engoliram 900 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa. Eram árvores retorcidas, veredas poéticas e férteis matas de galerias ? aqueles oásis de verde espremidos entre os chapadões e que abrigam 75% da fauna e 30% da flora do coração do Brasil. O estrago chega a ser maior do que na Amazônia, onde motosserras, queimadas e garimpos destruíram 15% da floresta.

A gravidade fica mais clara quando os números são comparados ao tamanho de estados brasileiros. Significa transformar São Paulo, Piauí, Ceará e Santa Catarina, tudo junto, em fazendas para a pecuária e a agricultura extensivas. Fazem do cerrado uma caricatura de paisagem ? plantada, limpa e estéril.

O cerrado natural, que parece pobre por fora, é rico por dentro. Tem mais de 6.500 espécies de plantas, 1.200 de animais e um papel fundamental no equilíbrio ambiental. Investigações recentes revelam que o cerrado é uma floresta invertida ? suga o carbono da atmosfera. Destruí-lo é mais um passo arriscado para alterações climáticas.

A devastação quase quadriplicou nas últimas três décadas, quando a região virou celeiro de soja. O capim natural foi substituído pelo africano. Substituído e desperdiçado. A Embrapa calcula que mais de 50% do capim plantado já foi abandonado.

Os dados estão em uma pesquisa do Ibama e outra da Universidade de Brasília, em parceria com a Embrapa e a americana Harvard. Os trabalhos indicam a tendência da comunidade científica de tentar decifrar esse pedaço tupiniquim considerado a savana mais rica da Terra. Um ecossistema que acolhe a capital da República e outras tantas riquezas naturais e humanas por descobrir.

Um valor desconhecido

Waldir Quirino descobriu como transformar casca de baru em carvão.

Devastar não é derrubar um pedaço de pau aqui, outro ali. É acertar a alma de um bioma, algo muito mais complexo, que acontece quando se interrompem os ciclos naturais do ecossistema. Não se trata de deixá-lo intocável, mas de combinar investimento econômico com estratégias de preservação. Falta algo parecido no cerrado. ??Não há política pública para o cerrado??, admite João Câmara, biólogo, coordenador de qualidade ambiental do Ibama.

O principal órgão ambientalista do governo passa por um vendaval de mudanças internas, mas até agora carece de iniciativas concretas para o segundo maior ecossistema brasileiro. Pela primeira vez na história, o Ibama se dedicou a traçar as microrregiões do cerrado. Foi um estudo árduo, demorou quase quatro anos, terminou em janeiro, mas ainda não saiu do papel. No trabalho, o biólogo Moacir Bueno Arruda concluiu que o cerrado são os cerrados. Há 23 áreas com características peculiares, animais e plantas típicos.

??Só conhecendo poderemos ter uma estratégia de proteção??, explica Arruda. ??Infelizmente, as ecorregiões estão desconectadas, as áreas de preservação estão distribuídas aleatoriamente.?? O biólogo que transformou o trabalho em tese de doutorado na UnB mostra que as áreas mais castigadas são aquelas que deveriam estar melhor preservadas. São as regiões mais ricas e férteis, aquelas de fronteira com outros ecossistemas, como a Amazônia ? o cerrado tem essa importante missão, a de proteger a floresta amazônica.

Enquanto o governo faz mea-culpa de sua morosidade, gente comum, nascida e criada no cerrado, professores universitários com doutorados no exterior e organizações não-governamentais se dedicam a proteger essas bandas. É o caso da comunidade de Mumbuca, um refúgio de 25 famílias esquecidas no norte do Tocantins. Ali, artesãs repetem as lições de suas avós e transformam capim em ouro. Tecem potes, bolsas e tapetes com capim dourado, bastante encontrado em áreas úmidas.

Tesouros brilhantes

??O cerrado me garante uma vitória na vida??, diz dona Noemi Ribeiro da Silva, 47 anos, uma quase analfabeta conhecida como Doutourinha. ??O apelido é pela minha ciência??, brinca, antes de esquadrinhar as árvores que vê. Mostra o pequi, o barbatimão, a barriguda, e fala da serventia de cada um para os males do corpo.

Doutorinha e sua amiga, Evanil Matos da Silva, estão em Brasília desde a semana passada expondo seus tesouros brilhantes no térreo do Ministério do Meio Ambiente. ??A gente cuida do meio ambiente. Fazer artesanato dá mais dinheiro e estraga menos do que derrubar o cerrado para plantar??, ensina Evanil, chamada de dona Chica, mulher braba, triste com a sina de seu povoado, sem televisão, sem hospital, sem escola boa. ??Só sobra nossa arte.??

Também não falta arte ao cientista Waldir Quirino, engenhoso engenheiro florestal que descobriu como transformar em carvão a casca de uma fruta corriqueira do cerradão. É o carvão de casca de baru, frutinho pequenino de uma árvore nativa. ??Descobrimos que o carvão de baru tem a qualidade superior, é menor e mais homogêneo que o da lenha??, explica Quirino, pesquisador do laboratório de produtos florestais do Ibama.

Entusiasta do uso social da vegetação nativa, Quirino se dedicou a estudar o Baru para entender a encomenda de uma organização não-governamental de Goiânia que, em maio, lançará uma linha de produtos derivados da fruta de cheiro forte. Tem biscoito, castanha e carvão. ??Vamos até às comunidades ensinar aos agricultores a preparar o carvão??, conta Quirino em seu laboratório, um galpão colado numa árvore de pequi.

Carlos Klink tem menos sorte. Estuda o cerrado num laboratório de azulejos brancos no escuro subsolo da Universidade de Brasília. Respeitado ecólogo, ele é um dos pesquisadores brasileiros que ao lado de cientistas americanos de Harvard vasculham há seis meses mapas, planilhas, fotos de satélite e indicadores econômicos. Querem avaliar os impactos ambientais do desenvolvimento do Centro-Oeste e já colecionam dados impressionantes. Um deles mostra por que grandes empreendimentos internacionais se interessam tanto por plantar em nossas terras.

Enquanto nos Estados Unidos um hectare de soja custa US$ 200 e na Argentina, US$150, no Mato Grosso bastam US$ 100. ??É por isso que costuma-se dizer que o agronegócio do Brasil que assusta Bush??, brinca Klink, certo de que o custo barato para o plantio tem um preço caro para o meio ambiente. ??Ainda não temos idéia do valor do cerrado. Seu papel para o equilíbrio ambiental é preciosíssimo??.

Riqueza desprotegida

- É a savana mais rica do mundo. Segundo maior ecossistema do Brasil, só perde para a Amazônia. Ocupa 25% do território nacional.

- Tem quatro tipos de vegetação: o cerradão, as veredas, as matas de galeria e as matas secas.

- Abriga 161 espécies de mamíferos (12% endêmicas), 837 de aves, 120 de répteis, 150 de anfíbios e 6.500 de plantas.

- Foram desmatados 900 mil km² de vegetação nativa, o que corresponde a São Paulo, Piauí, Ceará e Santa Catarina juntos.

- Nos últimos 15 anos, 400 mil km² de cerrado viraram pasto.

- Carece de políticas públicas setoriais. A Embrapa calcula que 50% do capim africano plantado no lugar da mata nativa está abandonado.

- É palco da maior produção de grãos do país, a um dos custos mais baratos do mundo. O hectare de soja nos EUA custa US$ 200 ? no Mato Grosso, US$ 100.

Coalición Ríos Vivos, Internet, 8-4-03

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