Brasil: Comunicado sobre a medida provisória que libera comercialição da soja contaminada

27-3-03

O governo do presidente Lula decidiu liberar a comercialização da safra de soja contaminada por transgênicos tanto no mercado interno como para exportação através de uma Medida Provisória que deverá restringir esta liberação a esta safra, segundo anunciou o porta-voz do governo. A MP fere decisão da Justiça condicionando o plantio e consumo de soja transgênica a várias medidas prévias assim como resolução do CONAMA que vai na mesma direção.

A AS-PTA, coordenadora do seminário "A ameaça dos transgênicos: propostas da sociedade civil", realizado em Brasília na semana passada, acredita exprimir a posição das 85 entidades participantes do seminário nas considerações que se seguem.

1- O governo decidiu a liberação da soja transgênica sem ouvir a sociedade civil que se opõe aos transgênicos. Apesar de muitos contatos com o Presidente, Ministros, Secretários, diretores e técnicos ao longo dos últimos dois meses as organizações da sociedade civil não tiveram a oportunidade de discutir a fundo suas propostas e as do governo, confrontando dados e soluções.

2- O governo acordou para o problema da safra gaúcha muito tarde, pautado pela pressão dos agricultores mobilizados pela FARSUL e apoiados pelo governo Rigotto. A comissão Inter-Ministerial criada para tratar do assunto foi inoperante e acabou dissolvida na prática, já que a decisão ficou restrita a um grupo incluindo os Ministros José Dirceu, Marina Silva e Roberto Rodrigues e, em um segundo momento, estendido aos Ministros Palocci, Gushiken e ao próprio Presidente Lula. A ausência de outros Ministros, em particular o da Saúde, mostra que estas reuniões tinham por objetivo quebrar a resistência da Ministra do Meio Ambiente. Na verdade, as implicações desta liberação para o mercado interno são muito mais relevantes para a saúde dos consumidores do que para o meio ambiente, já que este já está sob risco pelo plantio ilegal que ocorreu. Lembremos que as organizações da sociedade civil já vinham tentando discutir a crise anunciada da safra do RS desde antes da posse do novo governo.

3- Os dados sobre o nível de contaminação da safra de soja no país foram os mais desencontrados e pouco confiáveis. O próprio Presidente foi incorretamente informado pois afirmou, em reunião do CONSEA no último dia 25, que não era possível exportar toda a safra de soja, como se toda ela estivesse contaminada. O Ministro Roberto Rodrigues, em declaração aos jornais após a liberação, falou em 8% da safra nacional, o que corresponde a 4 milhões de toneladas. Anteriormente, alguns membros do governo de vários Ministérios falaram em 30% da safra nacional, ou 15 milhões de toneladas. Outros precisaram estimativas de 70% da safra do RS, 30% da safra do Paraná e 15% da safra do MS, o que resulta em 9,6 milhões de toneladas. Ninguém informou qual a fonte destes dados.

4- As informações recolhidas pelas entidades da sociedade civil, incluindo todas as organizações de produtores familiares do país, indicam uma outra realidade. Não há uma contaminação generalizada da safra nacional tal como fica insinuado quando se fala em porcentagens em geral, sem indicação das regiões onde ocorre a contaminação. As sementes de soja transgênica contrabandeadas da Argentina ou do Paraguai foram desenvolvidas pela Monsanto para regiões especificas e se adaptam apenas para regiões assemelhadas, isto é, o RS, SC, PR e MS (na faixa da fronteira com o Paraguai). A produção de SC é pequena e existe uma lei estadual que foi aplicada pelo governo Amim impedindo os cultivos transgênicos. No Paraná o governo Lerner, apoiado por todas as organizações de grandes, médios e pequenos produtores realizou um rigoroso controle de plantios clandestinos e a contaminação atual é residual. No MS, que também tem uma legislação estadual proibindo cultivos transgênicos, o controle do governo de Zeca do PT foi frouxo e avaliamos que a faixa próxima à fronteira está bastante contaminada, representando talvez os 15% da safra (570 mil toneladas) daquele estado. Foi no RS que o descontrole foi generalizado. A avaliação do presidente da Fecoagro, Rui Polidoro, de que 50% da soja plantada foi com sementes transgênicas é a mais provável pois tem uma base real na quantidade de sementes de soja convencional vendidas no estado. Este dado implica em uma safra de soja transgênica no RS de quase 4 milhões de toneladas. Estas avaliações apontam para um total de 4,5 milhões de toneladas de soja transgênica no país, concentradas no RS e, em bem menor escala, no MS. Esta estimativa fica próxima da do Ministro Rodrigues, 4 milhões de toneladas, localizadas em áreas precisas e não disseminadas em todo o país.

5- O problema do RS não está na quantidade total da soja transgênica plantada mas na sua disseminação em todas as regiões produtoras do estado, provocando uma contaminação geral pela dificuldade de separar os dois tipos de soja na armazenagem. Por esta razão, sempre dissemos que no RS devemos considerar que quase toda a safra estará contaminada, ou seja, perto de 8 milhões de toneladas. No MS a área contaminada é circunscrita à faixa de fronteira e a produção pode ser isolada. Mesmo na hipótese do volume de soja contaminada (transgênica misturada com convencional) dobrar, chegaríamos a um total de 1 milhão de toneladas.

6- Todos estes cálculos indicam que o governo teria que lidar com um total de soja contaminada que não pode, legalmente, ser vendida no país, da ordem de 9 milhões de toneladas. A solução proposta pelas 85 organizações da sociedade civil reunidas no seminário de Brasília foi a exportação. Esta proposta leva em conta o fato de que a omissão e ação do governo FHC, da Monsanto e da FARSUL provocou uma situação calamitosa que arruinaria os agricultores do RS se aplicada a lei com rigor, isto é, se a soja fosse destruída. Alguns técnicos e responsáveis do governo nos afirmaram que esta solução (exportação) é impossível pois "faltaria soja para o mercado interno" se este volume for exportado. Pura falácia. O Brasil deve exportar este ano mais de 31 milhões de toneladas de equivalente grão e ainda sobram quase 19 milhões para o mercado interno, mais do que o suficiente para abastecer as indústrias de transformação. O aumento da produção nacional do ano passado para este foi de quase 19%.

7- Com as crescentes restrições do mercado internacional para a soja transgênica haveria onde colocar estas 9 milhões de toneladas? A resposta é: por enquanto sim. O mercado europeu vem restringindo suas compras de soja transgênica pela reação dos consumidores a estes produtos mas a maior restrição ocorrerá a partir de Janeiro próximo, quando passará a vigorar um dispositivo legal exigindo que as rações também sejam rotuladas se contiverem transgênicos. A China também vai ampliar restrições a partir de Setembro próximo mas, até lá, vai comprar cerca de 16 milhões de toneladas que podem conter transgênicos. Já existem negociações com os chineses para a venda de 6 milhões de toneladas de soja brasileira. Se necessário, uma negociação governo a governo com algum deságio no preço poderia elevar este volume para absorver os volumes contaminados do RS e MS.

8- A segunda objeção à proposta de exportação da soja contaminada é de tipo operacional. Não haveria capacidade nos portos do RS para exportar toda a safra contaminada. Segundo dados da CONAB o porto do Rio Grande pode exportar 2 milhões de toneladas por mês, o que permite escoar para o mercado externo toda a safra contaminada entre Maio e Setembro. Objetou-se também que o governo do RS perderia ICMS se toda a safra fosse exportada, mas nada impede que as indústrias daquele estado esmaguem parte da safra, desde que o destino do farelo e do óleo seja o mercado externo. A capacidade instalada da indústria gaúcha é de 5,5 milhões de toneladas por ano, mas ela teve 35% de ociosidade no ano passado. Também se disse que seria impossível controlar este processo de redirecionamento da safra gaúcha para a exportação, mas o fato é que apenas 3 operadoras concentram 80% de toda a exportação; Bunge y Born, Cargill e ADM, o que facilita a operação.

9- O problema operacional real se dá em outro nível; no abastecimento de soja para o mercado local de rações. Se toda (ou quase) a safra for exportada as indústrias de rações teriam que comprar soja em outros estados para cobrir a demanda local. Esta demanda está estimada em 3,5 milhões de toneladas e já foi necessário trazer soja de outros estados na safra passada devido à baixa produção local provocada por um veranico arrasador. Suprir esta demanda não é um problema com a super safra de soja no país, a começar com a produção do Paraná. No entanto, haverá um custo maior para a indústria de rações e, em cadeia, para os criadores de aves e suínos e, finalmente, para o consumidor.

10- Para não penalizar a cadeia agroalimentar da soja com a ilegalidade cometida pelos agricultores, o que propomos é a cobrança, pelo governo, de uma multa aos agricultores que cobrisse os gastos extras do setor de transformação e os próprios gastos do governo com a fiscalização de todo o processo. Esta multa não arruinaria os agricultores mas sinalizaria a determinação do governo de coibir o plantio ilegal na próxima safra.

11- A opção do governo de liberar esta safra através de Medida Provisória infringe decisão da Justiça exigindo tanto avaliação de impacto ambiental como de riscos para a saúde do consumidor. Estamos estudando medidas legais contra esta MP e oferecemos ao governo uma saída jurídica não questionável. O que propomos é um acordo entre as partes envolvidas no processo judicial acima referido, isto é, o governo e a Monsanto de um lado e o IDEC, o Greenpeace e o Ministério Público de outro. Mesmo admitindo que a Monsanto não aceite o acordo, o Juiz que julgou o processo pode homologar um acordo entre os outros envolvidos liberando a soja contaminada para exportação em troca do governo assinar um Termo de Ajuste de Conduta que o comprometa a fazer as avaliações de impacto ambiental e de riscos para a saúde e a coibir o plantio e comercialização ilegais que foram a norma no governo FHC.

12- Para completar estas considerações acreditamos importante esclarecer que as apregoadas vantagens da soja transgênica não passam de uma ilusão. As estatísticas governamentais indicam que a produtividade da soja gaúcha, a mais contaminada do país por transgênicos, foi a mais baixa entre todos os estados. Por outro lado, o consumo de herbicidas no RS foi o que mais cresceu desde 1999, quando se iniciou o plantio ilegal de soja transgênica. O aumento foi de quase 50%, enquanto em quase todos os estados produtores (exceção Goiás) houve redução do uso de herbicidas (47,6% a menos no Paraná e 53,4% a menos no Mato Grosso). A redução do custo de produção na soja transgênica não tem nada a ver com as apregoadas vantagens desta tecnologia, mas com a redução do preço do herbicida Roundup em quase 70%, verdadeiro dumping da Monsanto para facilitar a adoção da soja transgênica. Os agricultores também não estão pagando o custo real da semente, pois não lhes é cobrada a "taxa tecnológica" da Monsanto embutida no preço das sementes nos EUA.

Jean Marc von der Weid
Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa.

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