Brasil: Consulta Pública Glifosato: comportamentos transgênicos, por IDEC

Mais um capítulo da nebulosa história dos alimentos transgênicos no Brasil acaba de ser escrito

Na manhã da sexta-feira (14), o site da Anvisa (Agência Nacional da Vigilância Sanitária) informava o término do prazo da Consulta Pública n.º 84, publicada no dia 4/11, sobre o uso do veneno glifosato nas lavouras transgênicas.

Estranhando a informação, uma vez que o prazo da CP era de 10 dias e portanto se encerraria apenas no final desta sexta-feira, o departamento técnico do Idec entrou em contato com a Anvisa.

O funcionário que atendeu a ligação informou, primeiramente, que os 10 dias haviam se esgotado ontem, pois a contagem era feita considerando-se o dia da publicação. Porém, imediatamente retificou a informação, dizendo ter havido um "equívoco" e que a Consulta permanecia em aberto.

Por volta de 11:00 h o site foi alterado, "reabrindo" a consulta. Detalhe intrigante: das NOVE Consultas Públicas publicadas no dia 4/11, em apenas UMA, a do glifosato, houve o "equívoco". Estamos de olho!

São Paulo, 13 de novembro de 2003.

À ANVISA
Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Brasília DF

Prezados Senhores,

O Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, entidade civil sem fins lucrativos, neste ato representado por sua Coordenadora Executiva, Marilena Lazzarini, vem por meio desta apresentar a sua contestação para a definição de limite máximo de resíduos (LMR) do herbicida glifosato para a Soja Roundup Ready, objeto da Consulta Pública 84/2003.

Preliminarmente, esclarecemos que a Soja Roundup Ready não tem liberação comercial autorizada no Brasil e causa surpresa a iniciativa de se estabelecer um LMR de glifosato para um produto ilegal. Não há nenhum dispositivo legal que comprove que a soja transgênica ilegalmente plantada no país seja a Roundup Ready.

Antes das considerações técnicas, manifestamos nossos protestos pela não disponibilização das informações que serviram de base para a Consulta Pública, que, segundo resposta dessa Agência ao Idec, abaixo citada, parecem consistir em dados exclusivos da empresa interessada, provavelmente a Monsanto. Os documentos nos possibilitariam uma abordagem específica sobre aspectos técnicos e legais relevantes nessa consulta.

No dia 10 de novembro corrente encaminhamos pedido de disponibilização de informações, que foi negado dois dias depois nos seguintes termos: ?Em atenção as cartas COEX nº 273 e 276, informo que os dados solicitados constam de processo que tramita nesta Agência e que estão protegidos por Lei enquanto dados confidenciais e privados.

Afirmamos que não podemos aceitar essa justificativa, pois não se trata de dados sigilosos relacionados a pedido de registro, caso previsto na Lei 10603/2002.

O nosso pedido solicitava especialmente os documentos que propiciassem as seguintes informações:

- Os resultados de todos os testes de resíduos de glifosato em soja transgênica

- Número de testes realizados

- Os locais de produção (estados e municípios) e a época de aplicação do glifosato na soja analisada nos testes

- Número de aplicações de glifosato na soja analisada

- Dados dos laboratórios que realizaram os testes,

- Os estudos toxicológicos sobre o glifosato

- As justificativas de LMRs para soja convencional de 0,2 mg/kg e para a soja transgênica de 10 mg/kg.

- Os resultados dos testes de resíduos do metabólito AMPA e quais os limites dessa substância.

- Os estudos toxicológicos sobre o AMPA

- Dados sobre o prazo de carência de 56 dias, com os resultados das análises de resíduos de glifosato e de AMPA

- O LMR pedido pela Monsanto

Igualmente inaceitável foi o prazo estipulado para a consulta pública, de apenas dez dias. Na maioria das vezes, os prazos das consultas públicas dessa Agência foram acima de 30 dias (77 em 95 consultas). Essa postura prejudica a participação da sociedade em uma decisão envolvendo um tema de grande relevância do ponto de vista sanitário, ambiental e da proteção dos consumidores.

A assimetria de informações e o curto prazo da consulta revelam um grave e desfavorável desequilíbrio entre a participação dos consumidores e da empresa diretamente interessada, no caso a Monsanto. Ela, certamente, defenderá cada argumento de seu pedido em uma condição extremamente favorável, enquanto nós faremos uma manifestação ?às cegas?, sem conhecer o processo na integralidade necessária.

1- Considerações gerais

O glifosato é um herbicida de amplo espectro usado para eliminar ervas daninhas. Existem três formas de se aplicar herbicidas a base de glifosato: antes do plantio (pré-emergência) e, após o plantio (pós-emergência das pragas), nesse caso entre linhas ou nas partes aéreas da soja transgênica. Esta última modalidade é proibida no Brasil.

A toxicologia aguda do glifosato inclui sintomatologia para diversos animais, inclusive o homem. Os sintomas principais são irritação de pele e olhos, dor de cabeça, náusea, tontura, pressão arterial elevada e palpitação cardíaca. A associação de um surfactante ao glifosato é ainda mais tóxica que os dois princípios isoladamente. A quantidade requerida de Roundup (glifosato mais POEA) para matar ratos de laboratório é três vezes menor que a de glifosato puro.

Mesmo tendo o marketing do glifosato sempre enfatizado que se trata de um produto seguro, é surpreendente o que estudos de laboratórios têm encontrado de efeitos adversos em, praticamente, todas as categorias de testes. Isto inclui toxicidade em animais de laboratório com lesões de glândulas salivares, mucosa do estômago, danos genéticos a células do sangue humano, efeitos sobre o aparelho reprodutor (em ratos) e aumento de tumores, também, em ratos.

O glifosato foi denominado ?extremamente persistente? pela US Enviromental Protection Agency, tendo meia-vida acima de 100 dias, conforme teste de campos nos Estados Unidos. Ele tem sido encontrado em rios, após aplicações em lavouras, meio urbano e florestas. Também tem sido indicado como causador de redução da população de insetos benéficos, pássaros e pequenos mamíferos por destruir a vegetação que serve de alimento e abrigo. Em testes de laboratórios, o glifosato tem aumentado a susceptibilidade de plantas a doenças e reduzido o crescimento de bactérias fixadoras de nitrogênio.

No Brasil, o glifosato está registrado para a aplicação denominada de pré-emergente e entre linhas no pós-emergente, que é utilizado quando o plantio é de soja convencional. Este sistema de aplicação, não permite contato direto com a soja. É aplicado somente nas valas entre uma linha de planta e outra. E nem poderia ser diferente, já que a soja convencional não tem resistência ao herbicida. O limite máximo de resíduos para este tipo de aplicação ? entre linhas - é de 0,2 mg/kg, estabelecido pela RE nº 184 da ANVISA, de 19 de setembro de 2003.

Com a irregular liberação da soja transgênica, que é resistente e suporta contato com o glifosato, haverá um grande aumento no consumo desse herbicida. Dados do IBAMA, Relatórios de consumo de ingredientes ativos de agrotóxicos e afins no Brasil ? anos 1998 a 2001, Brasília / DF ? 10.03.2003, demonstram que a venda de glifosato no estado do Rio Grande do Sul, onde parte significativa das lavouras de soja já é de sementes transgênicas contrabandeadas, quase que triplicou: de 3.850,785 toneladas de ingrediente ativo de glifosato vendidos em 1.998, saltamos para 9.133,865 no ano de 2001. Na Argentina, o aumento no consumo de herbicidas a base de glifosato foi de 270% desde a liberação da soja RR.

O aumento no uso do glifosato, pela aplicação do herbicida diretamente nas partes aéreas da soja, em suas folhas ou ramos, aumenta significativamente a concentração de resíduo no grão, no solo e nas águas. Dessa forma, o governo federal tenta, precipitadamente, autorizar o LMR de 10mg/kg de glifosato na soja e criar as condições legais para o uso do herbicida na parte aérea.

2- Por que temos que ingerir mais resíduos?

A autorização desse LMR para soja RR levará a um aumento de resíduos de glifosato nos produtos a base de soja e, conseqüentemente, na dieta do consumidor brasileiro, o que é altamente indesejável e desnecessário do ponto de vista de saúde pública. Na questão de resíduos de agrotóxicos em alimentos deve ser seguido o princípio ALARA (do inglês As Low As Reasonably Achievable), ou seja, tão baixo quanto razoavelmente possível.

Por que devemos consumir soja com 10 mg/Kg se podemos fazê-lo com apenas 0,2mg/Kg?

Cabe ressaltar que 60% dos alimentos industrializados contêm derivados da soja, inclusive aqueles destinados a crianças alérgicas à lactose e que se alimentam de fórmulas substitutas à base de soja. Registre-se que a IDA ? Ingestão Diária Aceitável desse e outros agrotóxicos são calculadas para um adulto de 70 Kg .

Assim, solicitamos que seja avaliado o impacto desse LMR para a saúde de crianças alérgicas a lactose que ingerem fórmulas alimentícias a base de soja e perguntamos se foram apresentados dados que comprovam a segurança do LMR de glifosato para esse estrato da população exposta.

3- O risco dos inertes e do surfactante POEA

A maioria dos produtos comerciais à base de glifosato possui na sua composição um surfactante, o POEA, que auxilia o princípio ativo a penetrar nas células da planta. A associação do surfactante com o glifosato é ainda mais tóxica que os dois princípios isoladamente. A quantidade requerida de Roundup (glifosato mais POEA) para matar ratos de laboratório é três vezes menor que a de glifosato puro. (Journal of Pesticide Reform/Fall 1998. vol. 18 No 3).

Além disso, há componentes inertes na composição dos produtos comerciais à base de glifosato, como sulfato de amônio, benzisotiazolona, 3-iodo-2-propinilbutilcarbamato, isobutano, isopropilamnina, entre outros que também causam reações adversas. (Kaczewer, J. Toxicología del Glifosato: Riesgos a la Salud Humana. Información / Artículos Transgénicos. Union Vegetariana Argentina, 2003).

Questionamos se Vs. Sas. possuem e analisaram devidamente dados sobre os resíduos de todas essas substâncias e se o aumento do LMR do glifosato, trazendo consigo o aumento de resíduos dessas substâncias, oferece a segurança necessária aos consumidores. Questionamos ainda se tais dados provém somente da empresa diretamente interessada na estipulação do LMR aqui discutido.

4- O risco do metabólito AMPA

Outra grande preocupação que se tem em relação ao glifosato, com a introdução da soja transgênica, é a toxicidade do seu metabólito AMPA ? Ácido Aminometilfosfônico.

Essa preocupação foi explicitada em um relatório de reunião de especialistas promovida em 1997, em Lion na França. (FAO Report of the Joint Meeting of the FAO Panel of Experts on Pesticide Residues in Food and the Environment and the WHO Core Assessment Group on Pesticide Residues Lyons, France, 22 September - 1 October 1997) [1].

Apesar do AMPA ter baixa toxicidade aguda (DL50 é 8.300 mg/kg) de peso corpóreo em ratos, ele causa uma variedade de problemas toxicológicos. Em testes subcrônicos em ratos, o AMPA causou aumento da atividade da enzima dehidrogenase láctica em ambos os sexos; redução de peso em machos em todas as doses testadas; e excessivas divisões celulares na mucosa da bexiga urinária em ambos os sexos. O AMPA é mais persistente que o glifosato e estudos realizados em oito estados norte-americanos concluíram que sua meia-vida no solo encontra-se entre 119 e 958 dias (Journal of Pesticide Reform/Fall 1998 . vol. 18, No. 3).

Considerando que a analise toxicológica e o estabelecimento de LMRs do glifosato devem ser associados à toxicologia e a quantidade dos resíduos do AMPA, questionamos se essa Agência possui e analisou devidamente os dados sobre os resíduos dessa substância em soja Roundup Ready. Qual a soma dos dois tipos de resíduos? O aumento do LMR do glifosato, trazendo consigo o aumento de resíduos do AMPA, oferece a segurança necessária aos consumidores? Se existirem, tais dados foram fornecidos apenas pela empresa interessada?

5- Outros aspectos toxicológicos, sanitários e ambientais

Também deve ser sopesada uma série de evidências relacionadas a segurança do glifosato, pois o aumento de seus LMR significará o aval para um uso maior, com maior impacto para trabalhadores e população em geral:

- Estudos conduzidos em 1992 pelos Institutos de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, posteriormente confirmados no ano de 2000 demonstram de forma inequívoca o efeito do glifosato como desregulador de enzimas cruciais na produção de espermatozóides ou produção de espermas anormais em ratos (mamífero). (Walsh, L.O.; McCormick, C.; Martin, C.; Stocco, D.M. Environ Health Perspectives, v.108, p.769-776, 2000).

- É conhecido na literatura científica desde 1999 que a exposição prolongada de pessoas ao glifosato aumenta também a probabilidade de ocorrência do linfoma non-Hodgkin, um tipo de câncer fatal (Hardell, L. & Eriksson, M., Cancer, v. 85, n.6, 1999).

- Um estudo sobre a relação das fumigações aéreas do plano Colômbia, com danos no material genético. Foram analisadas 47 mulheres, 22 na linha de fronteira, tanto do Equador como da Colômbia, que foram expostas pelas fumigações aéreas do glifosato com POEA + Cosmoflux 411F (surfactante). 100% das mulheres, além dos sintomas de intoxicação apresentaram danos genéticos em um terço das células sanguíneas. Frente a elas, o grupo controle de 25 mulheres a mais de 80 km. da zona fumigada, apresentou células com escasso dano genético, a maioria das células estava em boas condições. (Daños Genéticos en la Frontera de Ecuador por las Fumigaciones del Plan Colombia, Noviembre 2003, Adolfo Maldonado, Acción cológica, integrante del CIF (Comité Interinstitucional Contra las Fumigaciones).

- O glifosato foi o principal agrotóxico causador de intoxicações no Brasil entre 1996 e 2000. Seus efeitos foram bem abordados no artigo ?Perigo do Herbicida na soja transgênica?, publicado na Revista Consumidor S/A, nº 72, de agosto/setembro de 2003, página 20/23 (doc. 07).

- Um estudo independente, desenvolvido pelo Dr. Charles Benbrook, do Instituto de Pesquisa Northwest Science and Environmental Policy Center dos Estados Unidos (http://www.biotech-info.net/troubledtimes.html), publicado pelo Centro de Política Ambiental e Científica do Noroeste Americano apontou para o perigo de que várias ervas daninhas estão se tornando mais resistentes ao herbicida Roundup Ready. Como conseqüência, os agricultores precisam utilizar mais agrotóxicos para obter o mesmo resultado.

- Na época, o Dr. Benbrook estimou que, na safra 2002/2003 seriam necessários pelo menos 9,08 toneladas a mais de agrotóxicos. O relatório também citou informações não divulgadas pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) que provaram que o uso de herbicidas na soja transgênica Roundup Ready, da Monsanto, é em média 11,4% maior do que na soja convencional, podendo chegar até 30%.

- Ainda de acordo com o pesquisador, em 1998, uma média de 1,22 libras a mais de herbicida foi usada por acre com cultivos transgênicos nos 16 estados norte americanos que plantam transgênicos. No mesmo período, apenas 1,08 libras de herbicida foi usado na soja convencional, o que representa, como dito acima, 11,4% a menos de aditivo químico na soja convencional. Em seis estados, incluindo Iowa (responsável por um sexto da produção de soja do país), o total de herbicida usado na soja transgênica Roundup Ready foi pelo menos 30% superior à média usada pelas variedades convencionais.

- Recentemente o governo da Dinamarca divulgou que pretende restringir drasticamente o uso deste produto, pois ele se acumularia no lençol freático. Na nossa realidade, causa preocupação o quanto de contaminação pode existir no Aqüífero Guarani, que está sob o solo brasileiro, Uruguaio, Argentino e Boliviano e que se constitui na maior reserva subterrânea de água do Mundo.

Conclusão

O Idec é contrário à definição de um limite máximo de resíduos (LMR) de 10 mg/kg de glifosato para a soja Roundup Ready, pois considera que é injustificável do ponto de vista científico, especialmente quanto à segurança de tais níveis em relação ao glifosato e substâncias associados a ele, como o AMPA.

É provável que, associando-se os resíduos de glifosato mais os resíduos de AMPA, a quantidade de glifosato total (princípio ativo mais AMPA) nos alimentos a base de soja atinjam níveis inseguros. Devem ser exigidos da empresa, e analisados criteriosamente, os dados de resíduos dessa associação.

Consideramos, ainda, que este LMR, 50 vezes maior que o definido para soja convencional (0,2 mg/Kg) mais os resíduos de AMPA, que podem ser até maiores, significará uma diminuição na proteção da saúde dos consumidores brasileiros, aumentando ainda mais a quantidade de agentes tóxicos na comida.

Se adotado esse LMR, da forma precipitada que parece estar ocorrendo, será a constatação de que mais uma vez o governo tomou uma medida que se alinha unicamente aos interesses comerciais de uma empresa multinacional.

Entendemos também que as informações toxicológicas, demais dados, inclusive e especialmente os fornecidos pela empresa interessada, embasadores para esse limite, e as devidas justificativas devem ser tornadas públicas imediatamente.

Por fim, solicitamos que a Consulta Pública seja prorrogada por mais 30 dias para que a sociedade possa se manifestar adequadamente.

Atenciosamente,

Marilena Lazzarini
Coordenadora Executiva
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[1] ?The Meeting also noted the significant residue levels of AMPA that occurred in soya beans, and recommended that their significance should be evaluated in a future periodic review even though they are not believed to pose any risk to consumers.?

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