Brasil: entrevista a Mohamed Habib: "O governo entrou na arapuca dos transgênicos"
O Dr. Mohamed Habib, 61 anos, é um dos maiores especialistas em biologia vegetal no País. Egípcio de nascimento, Habib vive há 31 anos no Brasil e é professor titular do Instituto de Biologia da Unicamp
Nesta contundente e didática entrevista, ele desmonta os principais argumentos daqueles que defendem a liberação da soja transgênica. E é direto ao afirmar: "Trata-se de um crime ambiental!" Mohamed Habib avalia que se o Congresso ou o próprio Presidente da República não reverterem a Medida Provisória que possibilita o plantio de sementes geneticamente modificadas, a Justiça deve se pronunciar. A seguir, sua entrevista.
Expresso Zica - Para justificar a liberação do plantio da soja transgênica, o Presidente Lula argumentou que não gostaria de ideologizar a questão, mas sim tratá-la cientificamente. Sob essa ótica, como o sr. analisa a Medida Provisória sobre o assunto?
Mohamed Habib - Antes de mais nada é preciso dizer que a ciência também é ideologia, principalmente hoje em dia, quando o mundo a separa em duas vertentes: a ciência para poucos e a ciência para todos. No primeiro grupo, estão os produtos patenteados, onde os donos recebem royalties e têm a ver com dinheiro e poder. Na segunda classificação, estão as ciências sociais e das humanidades, como história, geografia e filosofia, que não se transformam em dinheiro ou poder facilmente. Portanto, ao contrário de nosso querido presidente, eu não aceito a separação entre ciência e ideologia. A ciência é utilizada pelos poderosos para dominar o mundo. Ciência muitas vezes é dominação, é concentração de riquezas às custas da miséria.
Expresso Zica - Não há como ver a questão sob um prisma neutro?
Mohamed Habib - Não. Se olharmos para as últimas quatro décadas, veremos que os países centrais dominam a ciência para poucos. Suas populações representam cerca de 20% da humanidade, mas consomem 80% da riqueza global. Nos países periféricos, onde nos situamos, a porcentagem se inverte: 80% da humanidade consome 20% da riqueza mundial. Isso acentua ainda mais o problema de se separar ciência de ideologia. Fazer esta distinção é perigoso.
Expresso Zica - E qual seria o caso dos transgênicos?
Mohamed Habib - Os transgênicos entram no caso da ciência para poucos. Trata-se de produtos patenteados. Implica remessa de lucros e proibição de se guardarem as sementes ou emprestá-las para que um vizinho também as plante. Quem as utiliza tem de queimar as sobras, pois parte das sementes transgênicas não é estéril. Ainda assim, se quisermos, como diz o Presidente, tratar as coisas cientificamente, teremos de entrar no ramo de outras ciências. Por exemplo, das ciências econômicas. O Brasil tem um faturamento anual com a exportação de soja de algo ao redor de US$ 4 bilhões. Quando entra no sistema uma multinacional, ela tem a expectativa de abocanhar pelo menos 50% desse montante, que sairão das mãos de brasileiros e serão remetidos como lucro, o que tem conseqüências negativas no âmbito econômico e social, além de representar um aspecto predatório. Mas há também - sempre pensando na ciência, como diz o Presidente - o impacto nas questões sociais. Há uma pressão muito grande sobre o agricultor para exportar. E o que acontece? Nos primeiros anos de introdução da soja transgênica, a empresa multinacional fornece sementes e agrotóxicos quase de graça, com o objetivo de se quebrar os setores que produzem as sementes convencionais. Quando dominam o mercado, o preço sobe.
Expresso Zica - Há exemplos concretos disso?
Mohamed Habib - Claro. Na Argentina, onde os transgênicos foram liberados há cerca de 7 anos anos, cerca de 130 mil agricultores perderam suas terras, pois depois dos aumentos de preços, endividam-se e não conseguem mais pagar os direitos de propriedade das sementes. E aí, quem toma o lugar é o grande proprietário de terras, que impõe a monocultura da soja. Mas, sempre seguindo o pensamento do Presidente, há as ciências ecológicas. Os transgênicos contaminam o ambiente geneticamente. Eles possibilitam o aparecimento de ervas daninhas e insetos resistentes ao agrotóxico utilizado. A soja transgênica que será plantada é resistente a um agrotóxico chamado glifosato. É o nome científico de um produto da multinacional Monsanto chamado Roundup. A soja comercializada se chama Roundup Ready, ou seja "preparada para receber o Roundup". Deixa-se de utilizar outros agrotóxicos e passa-se a ministrar nas lavouras apenas o Roundup. Essa soja nova agüenta, mas as outras plantas em volta morrem. Quando o pólen da soja transgênica se cruza com as células reprodutoras de outras plantas daninhas, surge uma erva daninha resistente ao Roundup! Isso não é projeção: na Argentina já existem 15 espécies de plantas daninhas resistentes ao glifosato!
Expresso Zica - E qual a conseqüência disso?
Mohamed Habib - A conseqüência é que você tem de passar a usar herbicidas mais nocivos para matar essas ervas. Isso é um crime ambiental! Voltaremos assim à situação absurda dos anos 1940 e 1950, em que os agricultores se valiam de agrotóxicos extremamente nocivos, como o 24-D e o Paraquato, que sequer são mais utilizados. Voltamos no tempo e voltam os perigos. O excesso do uso de herbicidas contamina o solo, prejudica as plantas e ataca os nutrientes, além de lençóis freáticos e rios. Portanto, a liberação dos transgênicos representa uma regressão e não um avanço! Hoje, quando trabalhamos com conceitos novos de combate às pragas, vem a transgenia na contramão desses avanços.
Expresso Zica - Mas como se pode combater a transgenia no geral, se ela tem obtido sucessos na área da medicina, com a produção de novos tipos de insulina e de vacinas?
Mohamed Habib - É algo completamente diferente, pois é uma transgenia utilizada em propósitos muito mais delimitados, no qual se pode ter um controle maior; não se está espalhando o produto pela natureza. São áreas muito limitadas e não são campos de monoculturas.
Expresso Zica - A argumentação do governo é que a liberação vale apenas para a próxima safra, depois volta-se ao plantio da soja normal.
Mohamed Habib - Como isso será feito? No Brasil temos uma rica biodiversidade natural. Depois de feita, a contaminação não pode ser erradicada facilmente. E o pior: depois de plantada, não se sabe qual é a soja transgênica e qual não é, pois as espécies são muito semelhantes. Serão necessários exames apurados, o que é caro. As empresas vão se responsabilizar por isso?
Expresso Zica - Como o sr. vê a atuação do governo no episódio?
Mohamed Habib - Criaram um fato consumado. Depois que a Monsanto vender a preços baixos e quebrar os produtores de sementes convencionais, há pouco o que se fazer. O governo entrou na arapuca dos transgênicos.
Expresso Zica - E, no caso dos transgênicos resistentes a insetos, como é produzida a planta neste caso?
Mohamed Habib - Os cientistas pegam o DNA responsável pela síntese de uma determinada toxina fatal para os insetos, que ocorre naturalmente numa espécie de bactéria, e o injetam no núcleo da planta convencional, para que esta começa a sintetizar a toxina. Aparentemente, esta toxina não faz mal à saúde humana, mas apenas aos insetos. Mas a partir disso, os insetos desenvolvem um mecanismo de resistência a esta toxina. Pois bem, esta toxina vai eliminar não apenas os insetos fitófagos, mas também aqueles úteis ao homem, reduzindo a biodiversidade ecológica, inclusive reduzindo a fauna do solo.
Expresso Zica - Mas a semente da soja transgênica não tem a vantagem de possuir uma produtividade maior que a da semente normal?
Mohamed Habib - Isso é um mito, não existe! Segundo várias pesquisas, os transgênicos, ao contrário, têm uma produtividade em média de 5 a 10% menor que as sementes convencionais. E isso porque qualquer ser vivo tem sua cota de energia vital. Quando se adiciona mais uma função biológica a este ser - como a inoculação de um DNA - a cota energética é utilizada em parte para esta nova característica. É uma questão lógica e de cálculo simples. Isto é, a função da resistência acaba roubando uma parte da energia gasta na produção de grãos.
Expresso Zica - Qual a saída para essa situação agora?
Mohamed Habib - Há três alternativas. Ou o Congresso Nacional revoga essa Medida Provisória, ou o próprio Presidente a retira, ou a questão fica por conta da Justiça. Se nada disso acontecer, o Brasil vai arcar com os prejuízos que falei anteriormente.