Dia do Cerrado: como salvar a caixa d’água do Brasil?

Pressionados pelo agronegócio, rios do bioma já perderam quase 30% de seu volume; agravamento da crise climática dificulta recuperação.
Os dados mais recentes sobre desmatamento no Cerrado mostram uma queda no ritmo de devastação do bioma, considerado a “caixa d’água” do Brasil, por abastecer oito das 12 bacias hidrográficas do país. Mas o alívio momentâneo não pode disfarçar a urgência de se atacar os problemas estruturais que tendem a “secar” essa reserva hídrica.
O agronegócio predatório é a maior ameaça. Afinal, o Cerrado foi transformado em um produtor de commodities agrícolas para o mercado internacional, embora insistam em descrevê-lo como “celeiro” do Brasil. A legislação federal “abriu uma porteira” para que propriedades rurais possam desmatar até 80% de vegetação nativa no bioma.
Se o governo, que começou a incentivar um modelo predatório de ocupação do Cerrado durante a ditadura militar, e a lei do período da redemocratização abriram espaço para a soja e o gado, essa ocupação desordenada “secou” o caminho das águas. Segundo o relatório “Cerrado: O Elo Sagrado das Águas do Brasil”, publicado pela Ambiental Media, o volume de água transportado pelos rios do Cerrado diminuiu 27% desde a década de 1970. É como se 30 piscinas olímpicas deixassem de fluir nos cursos d’água a cada minuto.
A relação entre a perda de água e a devastação florestal é evidente, de acordo com o documento. Os mais recentes dados do MapBiomas mostram que o Cerrado está entre os biomas que mais perderam área de vegetação nativa – tanto em termos absolutos, como proporcionais. Entre 1985 e 2024, ele perdeu 40,5 milhões de hectares, ou quase um terço (28,5%) de seu tamanho. Na contramão, o desmatamento para plantio de soja aumentou 19 vezes, de 620 mil hectares para mais de 12 milhões de hectares.
O ciclo vicioso provocado pela destruição da vegetação nativa se fecha com alterações no regime pluviométrico. Houve uma redução de 21% nas chuvas nas bacias do Cerrado, de 680 milímetros anuais [entre 1970 e 1979] para 539 mm [entre 2012 e 2021]. Já a evapotranspiração aumentou 8% no mesmo comparativo temporal.
A devastação predatória promovida pelo agronegócio no Cerrado agrava as mudanças climáticas, causadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis, mas também pelo uso da terra: desmatamento, queimadas e a própria produção agropecuária. Mais uma vez, o cachorro corre atrás do próprio rabo: a expansão agropecuária reduz a vegetação nativa, agravando a crise climática, que afeta negativamente a produção do agronegócio.
Logo, neste 11 de setembro, Dia do Cerrado, é importante comemorar a queda de 21% no desmatamento do bioma entre agosto de 2024 e julho deste ano detectado pelo sistema DETER, do INPE. Foi a primeira redução em quatro anos, o que não é desprezível. Porém quando analisamos os números, o tamanho do desafio torna-se evidente.
A queda pontual representou uma perda de 1.786 hectares por dia ao longo do ano passado, segundo o Relatório Anual do Desmatamento do MapBiomas. Em 2024, o Cerrado foi o bioma com maior área desmatada no país pelo segundo ano consecutivo. Foram 652.197 hectares – mais da metade (52,5%) do total desmatado no Brasil no ano passado. A região do Matopiba – a nova fronteira agropecuária – concentrou 75% do desmatamento do Cerrado e cerca de 42% de toda a perda de vegetação nativa no país.
Ou seja, apesar da retração no desmatamento em 2024, é grande a responsabilidade dos governos federal e estaduais de aumentarem a proteção ao bioma. Isso exige não apenas mais fiscalização, mas mudanças legais que garantam a manutenção da vegetação nativa e uma ocupação ordenada do território que impeça a destruição de áreas de recarga hídrica e corredores ecológicos. Assim como planos de recuperação de pastagens que possam reduzir a pressão pelo desmatamento para novas áreas produtivas.
Nada disso poderá ser feito, no entanto, sem a participação ativa do agronegócio. Isso começa com o abandono de práticas nocivas, como o uso da chocante técnica do “correntão”, e ataques a Territórios Indígenas, Quilombolas e Tradicionais. E inclui uma nova postura dos supostos representantes dos produtores agrícolas no Congresso, o que pressupõe articulações diferentes nos bastidores com as associações, confederações e representantes das indústrias do setor. A caixa d’água do nosso país não resistirá por muito tempo às sucessivas tentativas de deputados e senadores da chamada “bancada ruralista” de jogar por terra a legislação ambiental brasileira, como se vê com o PL da Devastação.
Ou se acaba com o “ogronegócio”, ou não será apenas o Cerrado, a Amazônia e outros biomas que estarão em risco, mas a própria perenidade do agronegócio. Não há soja, milho ou gado que resista a eventos extremos cada vez mais frequentes e intensos causados pelas mudanças climáticas. Uma crise agravada por ações predatórias de um setor que tem muito mais a perder do que a ganhar com elas.
Fonte: Clima Info