Diga cupuaçu em japonês, por WWI-UMA

Quanto valem um casal de aranhas, o veneno de uma rã, um feixe de cipó, um fruto da floresta, a sabedoria acumulada por culturas indígenas?

Pois esses são recursos da chamada biodiversidade, expressão cada vez mais em voga utilizada para designar a profusão de seres vivos que habitam o planeta, incluindo os humanos, de onde derivam conhecimentos e riquezas que servirão para produzir remédios, alimentos, cosméticos, combustíveis, etc. Tudo isso somado valeria US$ 33 trilhões, segundo a revista Nature. A parte que cabe ao Brasil custaria, segundo o Ibama, em torno de R$ 4 trilhões, quase quatro vezes o nosso Produto Interno Bruto (PIB), medido pela metodologia econômica tradicional. Ufanamo-nos de ter 13% da água doce do planeta, 20% da diversidade biológica - cerca de 2 milhões de espécies da fauna, flora e vida microbiana.

Enquanto isso em Quioto, no Japão, um certo Sr. Nagasawa...

A Asahi Foods, empresa japonesa do setor de alimentos, conhece bem o doce sabor do cupuaçu, que importa do Brasil para produzir extravagâncias gastronômicas que encantam consumidores nipônicos, ávidos por reencontrar o elo com a natureza que a tecnologia avançada esgarçou. Perceberam que esses sabores provocantes da Amazônia faziam sucesso também nos Estados Unidos, a julgar pelas vendas crescentes a seu parceiro americano. O arbusto nativo na floresta era mágico. Não produzia apenas frutos, mas dinheiro vivo. Mas para colhê-lo seria preciso garantir a primazia da descoberta e controlar os principais mercados.

O esperto Sr. Nagasawa, da Asahi Foods, parece ter encontrado a fórmula mágica ao conseguir registrar o nome cupuaçu como uma marca criada por sua empresa para várias classes de produtos no Japão, na União Européia e nos Estados Unidos. Nos EUA criou até uma subsidiária com o nome que açambarcou - a Cupuaçu International.

A manobra foi possível porque não existe legislação internacional adequada para assegurar a países e comunidades detentoras de recursos e conhecimentos genéticos e biológicos, a maioria das quais nações em desenvolvimento, participação nos rendimentos da exploração dessas riquezas. Dois regimes internacionais tratam de questões relacionadas a essas patentes: na Organização Mundial do Comércio (OMC), o Tratado sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio Internacional (TRIPS), de 1995, e, nas Nações Unidas, a Convenção de Diversidade Biológica (CDB), subscrita pelos participantes da Eco 92 realizada no Rio. A CDB defende a soberania nacional sobre os recursos biológicos e exige aprovação e participação das comunidades locais para sua utilização e repartição de benefícios. O TRIPS estabelece que recursos biológicos devem estar sujeitos a direitos privados de propriedade intelectual e não prevê a repartição de ganhos entre o titular da patente e os provedores do material biológico.

O debate dessa questão tem sido enriquecido com propostas como as da economista Amyra El Khalili, presidente da ONG CTA, voltada para o estudo das "commodities ambientais", expressão que cunhou para designar os bens da natureza a serem negociados numa bolsa mundial de mercadorias - a BECE, do nome em inglês Brazilian Environmental Commodities Exchange.

Mas, enquanto a BECE não vem, registrada a marca não poderiam pairar quaisquer dúvidas: cupuaçu e Asahi Foods se confundiam. O produto indígena deveria afunilar dinheiro para a multinacional japonesa. Era sentar e esperar a safra.

Enquanto isso, em Rio Branco, Acre, na sede da Doces Tropicais...

Era um momento importante para as doceiras que, diligentemente, produziam os bombons recheados de creme de cupuaçu e os enrolavam em papel celofane colorido, organizando as caixas que seriam levadas por Michael Schmidlehner, fundador da ONG Amazonlink, para importadores na Alemanha. A venda dos bombons poderia significar uma janela de novas oportunidades para cerca de 150 produtores familiares cooperados que plantam no sistema agroflorestal harmonizando agricultura tradicional e exploração racional dos recursos da floresta. O cupuaçu é a primeira fruta regional para a qual se conseguiu desenvolver uma técnica de plantio em escala comercial.

Nem bem Michael desembarcara em Frankfurt e já recebia o alerta de um brasileiro que tentara vender geléia de cupuaçu naquele país. Teria de pagar pedágio de 10 mil dólares para a Asahi Foods se quisesse vender ali qualquer coisa com o nome da fruta. Desconcertado, o enviado da Doces Tropicais juntou suas caixinhas de bombons e retornou a Rio Branco. Diante de uma platéia de agricultores e extrativistas incrédulos, esforçou-se para explicar que o cupuaçu já tinha dono e era um japonês. "Puxa! Não sabia que já estavam roubando até nome!", exclamou, estupefato, um modesto colhedor de frutos da beira do rio Madeira.

Na reunião falou-se na possibilidade de uma ação internacional para recuperar o nome, mas poucos se entusiasmaram. Era uma realidade muito distante para camponeses de poucos recursos enfiados nos confins do Acre. O jeito era conformar-se, como sempre acontecera, com a venda dos frutos e deixar que o japonês carimbasse o nome que quisesse no produto.

Enquanto isso, num escritório de advocacia, em São Paulo...

A Backer & MacKenzie é uma formidável empresa de advocacia com braços em todo o mundo que atua no Brasil por meio de sua associada Trench, Rossi e Watanabe. O telefone toca, numa tarde de meados de março último. Era um representante do Instituto Brasileiro de Direito do Comércio Internacional, da Tecnologia da Informação e do Desenvolvimento (CIITED), entidade formada por professores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, advogados especializados em comércio internacional e estudantes. Souberam da apropriação do nome cupuaçu e achavam que alguma coisa poderia ser feita, mas seria necessário o apoio de um escritório de advocacia com articulação internacional.

O CIITED estava alinhado com o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), organização fundada em 1992 na esteira da Conferência do Rio, que coordena o trabalho de outras 500 entidades de produtores familiares que se espalham pela região. Suas antenas sensíveis captam e retransmitem informações que correm o mundo por uma poderosa e articulada rede.

Juntos, GTA, Amazonlink, CIITED e um novo parceiro, a Associação dos Produtores da Amazônia (APA), formaram pouco mais do que um incrível exército de Brancaleone para iniciar a guerra pela reconquista do cupuaçu. O prazo era curtíssimo - menos de uma semana - para uma ação que deveria ser redigida em inglês, traduzida para o japonês e dar entrada no equivalente ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que registra marcas e patentes, em Tóquio. Mas o desafio oferecia atrativos. Trata-se do primeiro caso no Brasil de ação para cancelamento de registro internacional de marcas que, se bem-sucedido, poderá abrir oportunidades apetitosas numa área que movimenta estimados US$ 500 bilhões em negócios ligados a biodiversidade envolvendo coisas concretas como medicamentos, alimentos, cosméticos, e intangíveis como conhecimento, tradição e cultura de povos nativos.

A tarefa foi destinada à jovem e aplicada advogada Adriana Vicentin, especialista em marcas e patentes. A lei japonesa permitia a contestação do registro do nome cupuaçu num prazo de cinco anos. A coincidência é que o prazo estava vencendo justamente naquela semana. Correndo contra o fuso horário, a advogada brasileira passou a coordenar frenéticas ações que varavam as madrugadas japonesas. Ao apagar das luzes do prazo final, conseguiu protocolar um documento de 30 páginas contestando o registro da marca.

O caso do cupuaçu acabou revelando a ponta de um gigantesco iceberg. Nas pesquisas para o processo puderam ser identificados mais de 50 outros registros de marcas e patentes de bens da natureza brasileira em todo o mundo. Além do cupuaçu, nomes como copaíba, andiroba, biribiri, açaí e ayahuasca foram registrados em vários países pela cavalaria ligeira da Asahi Foods e por outras empresas internacionais, dentre as quais grandes laboratórios farmacêuticos.

Algumas espécies retiradas da floresta amazônica já estão até mesmo sendo replantadas em outros países, como fizeram no passado com a seringueira. É o caso da ayahuasca, da qual se extrai o chá alucinógeno conhecido no Acre como mariri, popularizado pelas seitas Santo Daime e União dos Vegetais. A erva brota com vigor em plantações nos Estados Unidos e no Havaí como Caapi vine e é vendida por uma certa Cielo Herbal por preços que chegam a quase US$ 1 mil por um feixe de gravetos enviado pelo correio para quem quiser comprar em qualquer parte do mundo.

Fuente: Gazeta Mercantil