Entrevista a Percy Schmeiser: Davi contra Golias

Depois de cultivar canola por mais de 50 anos, o agricultor canadense Percy Schmeiser, de 72 anos, foi surpreendido por um processo da multinacional Monsanto, em 1998, por infringir a lei de patentes, quando sua lavoura de canola foi contaminada por sementes transgênicas

As sementes foram parar em sua plantação carregadas pelo vento, ou por pássaros, a partir das propriedades dos vizinhos.Começou então um processo surrealista que lembra a velha fábula do lobo e do cordeiro, aquela em que o lobo bebe água em um trecho do rio acima de onde está o cordeiro e sentencia que este suja sua água. Segundo Schmeiser, os agricultores canadenses começaram a usar as sementes transgênicas porque acreditaram que seriam mais nutritivas, teriam melhor qualidade e menor necessidade de produtos químicos.

Entretanto, depois de cerca de três anos, as sementes necessitavam cinco vezes mais agrotóxicos, e a produção era 15% menor que a convencional, com metade da qualidade. Schmeiser participou do Fórum Social Mundial de Porto Alegre em janeiro e emocionou as platéias que o ouviram contar sua saga.

Quando o senhor recebeu a notificação do processo da Monsanto?
Foi em 1998. Eu nunca havia comprado sementes dessa empresa, nunca havia encontrado com alguém da empresa, então, o processo foi uma completa surpresa. Imediatamente eu e minha mulher ficamos preocupados pela contaminação em nossas sementes puras de canola, que levaram muito tempo para ser desenvolvidas. O processo foi para a Corte Federal do Canadá, porque no meu país a legislação sobre grãos está sob jurisdição federal.

É difícil entender como alguém pode ser processado por sua lavoura ter sido contaminada.
No primeiro julgamento, em junho de 2000, o juiz especificou que não importa como a lavoura foi contaminada ? por pássaros, vento, abelhas. Ela tornou-se propriedade da Monsanto, mesmo destruindo a semente original, no meu caso significando meio século de trabalho. Minha semente tornou-se propriedade da Monsanto, contra o meu desejo.
Em segundo lugar, não importa o nível de contaminação. Pode ser 1%, 2% ou zero por cento, se eles dizem que há uma probabilidade de haver algum transgênico na sua terra... Isso significa o controle do suprimento de sementes, e, em última instância, da comida.
No Canadá, temos uma lei federal permitindo que o agricultor utilize a semente ano após ano. Já o julgamento determinou que a patente da Monsanto está acima dos direitos dos agricultores.

Como é o contrato com a Monsanto?
Eu tenho em mãos aqui um contrato que os agricultores assinam com a Monsanto, e basicamente acaba com os direitos deles. Ele diz: ?Um agricultor não pode usar sua própria semente ano após ano; ele deve comprar a semente, a cada ano, da Monsanto. Também deve comprar o herbicida Roundup Ready, da Monsanto. Deve pagar à companhia cerca de US$ 45.00 por hectare/ano como taxa de tecnologia?. Mas o mais importante nesse contrato é a claúsula que diz: ?Se você assinar este contrato, deve permitir que a polícia da Monsanto (e a empresa tem uma grande força policial) entre no seu campo e cheque o que você está fazendo por três anos. Mesmo se você plantar transgênicos apenas por um ano?.
No novo contrato, de 2003, se alguém tem algum problema com a semente, não pode processar a Monsanto. Então, ainda por cima, eles impedem os agricultores de entrar na Justiça.

um caso como o seu, de que forma eles podem saber se uma pessoa está ou não trabalhando com transgênicos?
Eles colocam o herbicida Roundup Ready na semente e voltam em uma semana para ver o que aconteceu. Se a semente morreu, é porque o agricultor não estava usando grão transgênico.

Se a Monsanto usa veneno que destrói a plantação convencional para ver se o fazendeiro está mentindo ou não, e de fato a plantação é destruída, comprovando que ele não estava mentindo, por que os agricultores não processam a companhia?
Porque poucos fazendeiros se dispõem a entrar na Justiça contra a Monsanto e a gastar uma fortuna, como no meu caso, US$ 250 mil. Os fazendeiros têm medo de enfrentar uma multinacional milionária. A Monsanto me disse: ?Ninguém se levanta contra a Monsanto e nós vamos te pegar e te destruir?. Assim, você pode ver o que eles fazem com os fazendeiros. É uma nova cultura do medo.

Como o senhor conseguiu dinheiro para lutar contra a Monsanto?
Usei o dinheiro do meu fundo de aposentadoria, hipotequei minha terra e minha casa. Se eu perder o caso, perco tudo o que construí na minha vida inteira.

Seu caso está na Suprema Corte do Canadá e espera resultado para o mês de abril. Como o senhor vê a Sumprema Corte?
Há nove juízes na Suprema Corte. Eles vão olhar para todos os problemas, a responsabilidade, a destruição da plantação, o que significa para a sociedade.
A Corte Federal só olha para a questão da patente, que é regulada por uma lei federal. Quando perguntaram sobre os prejuízos causados pela Monsanto, como a destruição da minha plantação, a perda da minha pesquisa e desenvolvimento, o juiz disse que isso era caso para outra corte. Lá estava apenas sendo analisada a infração da patente.
O juiz decidiu que a produção de todos os meus campos, aqueles com 1%, 4%, 8% de contaminação e os não contaminados deveriam ir para a Monsanto, mesmo aqueles onde não foi encontrada contaminação. A lei de patentes é completamente contra os direitos dos fazendeiros.

O que o senhor acha que pode acontecer? Tem alguma chance de vencer?
Eu tenho chance de ganhar o processo em razão de uma decisão da Suprema Corte, em dezembro passado, no caso da Habert University. Eles colocaram um gene num rato e quiseram patentear isso no Canadá. A Corte Federal questionou o direito de se patentear um rato. O caso teve apelação e foi para a Suprema Corte federal, que decidiu que não se pode patentear um ser vivo no Canadá. Eles distinguiram entre a forma viva mais alta e a mais baixa. A mais alta é como semente, planta, ser humano. A mais baixa poderia ser uma bactéria. E não se pode patentear a mais alta forma de vida no Canadá.
Minha mulher e eu não queremos deixar para nossos cinco filhos e 14 netos um legado de terra, alimento e água envenenados. Queremos deixar um legado de terra, alimentos, ar e água sem veneno, e isso é o que desejo ao Brasil. Minha mulher tem 71 anos, e eu, 72. Não sabemos quantos anos temos pela frente, mas digo que todos eles serão dedicados à luta contra a Monsanto, pelos direitos dos agricultores.

*Percy Schmeiser também foi membro do parlamento canadense por 25 anos. Para conhecer mais sobre sua luta, acesse o site www.percyschmeiser.com, cujo slogan é ?A clássica batalha de Davi contra Golias?.

Fonte: Consumidor S.A. - Edição Abril/Maio 2003

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