Japão anula registro do cupuaçu como marca multinacional, por GTA
O Brasil e a Amazônia começam a respirar mais aliviados. O nome da fruta cupuaçu, pretendido como marca comercial exclusiva pelas multinacionais Asahi Foods e Cupuacu International, voltou a ser reconhecido como de domínio popular com a anulação do registro pelo Escritório de Marcas e Patentes do Japão (JPO) nesta segunda-feira
Esse passo histórico contra a biopirataria é o resultado da Campanha Contra a Biopirataria - O Cupuaçu é Nosso, liderada pela Rede GTA - Grupo de Trabalho Amazônico - e pela organização acreana Amazonlink ao lado de inúmeros outros parceiros civis, governamentais e anônimos que levaram o caso para os mais diversos confins do país, do continente e do planeta.
Mas também do esforço dedicado da equipe de advocacia liderada pela jovem Adriana Ruiz Vicentin, da Trench, Rossi & Watanabe, atuando em fusos horários opostos em São Paulo e Tóquio. Os argumentos da ação de cancelamento protocolada em 20 de março de 2003 foram aceitos integralmente pelos examinadores do JPO. Em resumo, a ação concentrou seu foco no terceiro ítem do parágrafo inicial do artigo 3 da Lei de Marcas do Japão - que afirma que uma marca não pode ser registrada caso ela indique de forma descritiva um nome já comum de matérias primas. Ao ser utilizada para distinguir óleos e gorduras provenientes da própria fruta da qual são extraídos, a marca estaria recaindo nessa proibição legal. Finalmente, o ítem de número dezesseis do parágrafo inicial do artigo 4, dessa mesma lei, indica que uma marca não pode levar o público ao erro relativo à qualidade de produtos ou serviços que distingue. Esse foi um dos pontos brilhantes do argumento, ao apontar o risco de que o nome exclusivo como marca pudesse ser usado até para indicar óleos e gorduras comestíveis que não fossem extraídos do verdadeiro cupuaçu, lesando os consumidores.
Como se pode notar, a questão do nome como patrimônio cultural dos povos da Amazônia (e do Brasil) foi tratada no primeiro argumento, enquanto o segundo voltou-se para os direitos universais dos consumidores. Uma situação muito clara diante da situação absurda criada em 1998 e somente descoberta no final de 2002, quando pequenos produtores reunidos na cooperativa Doces Tropicais descobriram a barreira criada ao tentarem exportar para a Alemanha. Mas ainda fica um alerta. "Com essa decisão encerra-se a via administrativa no Japão, ou seja, nenhum outro recurso administrativo pode ser interposto para invalidar a decisão. É importante notar que a Asahi Foods ainda possui o prazo de trinta dias para apelar ao Tribunal Superior de Tóquio", afirmam Adriana Vicentin e Esther M. Flesch, parceiras do escritório brasileiro que trabalham em conjunto com a equipe japonesa coordenada por John Kakinuki.
O processo administrativo no Japão tornou-se ao longo de 2003 um ato simbólico que mobilizou a opinião pública brasileira em torno da biopirataria, potencializando outros processos como os debates da nova lei de bioprospecção, os posicionamentos do governo em acordos internacionais, os diálogos entre pesquisadores e movimentos sociais e a própria auto-estima das comunidades tradicionais e indígenas. Lances de criatividade como uma faixa gigante repleta de milhares de assinaturas geraram um círculo virtuoso: surgida para uma manifestação na Festa do Cupuaçu, no Amazonas, ela acabou materializando o espírito de adesão à campanha e ocupou espaços nobres no Congresso Nacional, no Fórum dos Povos em Cancún e em protestos de organizações ambientalistas na Alemanha. Dentro do Brasil o assunto esteve presente do jornalismo econômico às rádios comunitárias, passando por veículos alternativos e grandes publicações e redes noticiosas.
"Embora sendo quase uma caricatura, como uma tentativa de monopólio do nome da laranja, é um caso que coloca limites na privatização do patrimônio coletivo. Por outro lado, a presença do registro na Europa e nos Estados Unidos continua sendo uma agressão que vai exigir novos esforços. O ponto mais importante foi chamar a atenção para outros casos menos populares como o uso de conhecimentos tradicionais e indígenas, a apropriação de genes do sangue e outras formas de biopirataria para além do tráfico de animais e plantas", afirma José Arnaldo de Oliveira, coordenador de comunicação e campanhas da Rede GTA. A mesma avaliação tem o presidente da organização Amazonlink, Michael Schmidlehner. "Não estamos comemorando o cancelamento de uma marca, mas o poder que a sociedade civil teve e tem para reagir diante desse tipo de monopolização dos conhecimentos tradicionais e das riquezas amazônicas. Apesar de ter sido uma luta desgastante, esse processo e a campanha deram a possibilidade de difusão de informações, esclarecimentos e alertas para a sociedade sobre a biopirataria".
A Associação dos Produtores Alternativos (APA), de Rondônia, divulgou nota eletrônica parabenizando todos os colaboradores pelo resultado. "Venceu a proteção da biodiversidade brasileira e o respeito às populações que trabalham com o cupuaçu, venceu a soberania brasileira", resumiu a entidade que subscreveu a ação como representante dos produtores rurais entre as mais de 500 entidades filiadas da Rede GTA. A outra entidade subscritora, o Instituto de Comércio e Direito Internacional (CIITED), formada por advogados ligados ao Largo São Francisco, ainda não divulgou seu comunicado diante do horário tardio do resultado na noite de segunda.
Na Amazônia, pesquisadores e lideranças envolvidos com a construção da Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais celebram a notícia. "Todo o esforço dedicado por um grupo de pessoas e a torcida de quase todo um país não foram em vão. Temos muito a comemorar, mas temos também que nos esforçar ao máximo para estudar formas de proteger nossas riquezas para que isso jamais volte a acontecer. Precisamos ser proativos. Parabéns a todos que direta ou indiretamente contribuíram para que o cupuaçu voltasse a ser nosso", afirma Sônia Tapajós, da Fucapi, em Manaus. "Parabenizo todos, através do nosso colega Eugênio Pantoja, pela vitória no enfrentamento contra os piratas da nossa biodiversidade. Uma luta pontual, consistente e intransigente", afirma Francisco Pereira, da UFAC, em Rio Branco.
O Ministério de Relações Exteriores, particularmente através da Divisão de Novos Temas, tem acompanhado o processo que até mesmo mudou posturas menos agressivas do governo brasileiro: a missão diplomática em Bruxelas está entrando diretamente com pedido de anulação da marca na Comunidade Européia. Em outra frente, organizações socioambientais dos Estados Unidos promovem consultas para apoiar o mesmo objetivo em seu país. A campanha não termina com a anulação da marca no Japão - na verdade, pode estar apenas começando.
Em nome da verdade dos fatos seria impossível para todos os envolvidos enumerar o grande conjunto de colaboradores surgido ao longo desse quase ano de processo-campanha. Tanto a Rede GTA como a Amazonlink devem parte de seu potencial mobilizatório ao evento internacional "Cultivando a Diversidade", promovido em 2002 no Acre juntamente com a rede internacional liderada pela GRAIN, sediada em Barcelona. Os custos do processo, em torno de 25 mil reais, foram inicialmente cobertos com recursos do Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, gerenciados pelo Banco Mundial, e depois pelo apoio da Aliança Amazônica com o endosso da COIAB e CPT. A idéia do painel gigante foi cedida pela experiência do Greenpeace - Programa Amazônia, e sua repercussão em Brasília deve-se ao espaço criado pela Comissão da Amazônia da Câmara dos Deputados, em sugestão do deputado Henrique Afonso. A manifestação em Cancún teve o apoio do Fórum Brasileiro de ONGs e da Rede Brasileira de Integração dos Povos. Os protestos na Alemanha foram liderados por entidades locais como Regenwald Institute e Buko e a faixa levada voluntariamente por uma pesquisadora brasileira. A Rede Norte de Propriedade Intelectual e Conhecimentos Tradicionais é um espaço de diálogo proposto inicialmente por pesquisadoras do Museu Emílio Goeldi e Centro Universitário do Pará. E assim por diante.
Para a líder sindical e educadora da floresta Maria Araújo de Aquino, a Leide - atualmente coordenadora geral da Rede GTA na função de presidente - um ponto importante desse processo é a capilaridade com que o assunto chegou até os mais longínquos lugares da Amazônia. "Embora assustados com a idéia de alguém roubar um nome, a maioria das comunidades filiadas à rede passou a estar mais informada sobre a importância de sua cultura e os crimes da biopirataria". Uma das metas da campanha para 2004 é um amplo programa de informação popular em parceria com instituições civis, governamentais e de pesquisa. Outra demanda que começa a ser sentida pelas entidades espalhadas por nove estados amazônicos - e metade do território brasileiro - é a preocupação com a sabedoria construída ao longo dos anos e generosamente compartilhada. Entidades ligadas às quebradeiras de côco babaçu e aos povos indígenas buscam novos patamares de organização, pois ao longo deste ano também surgiram novidades como o reconhecimento do desenho do povo Waiapi (Amapá) como patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco.
Vale lembrar também que, antecipando o resultado, o Japão havia cancelado há poucos dias o pedido de registro do processo de fabricação do cupulate - pois o mesmo havia sido desenvolvido gradualmente no próprio Brasil pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) com a cooperação de outras instituições nacionais de pesquisa. No objetivo conquistado pelo movimento popular e ambiental da Amazônia também saiu ganhando a auto-estima de nossos cientistas e evidenciada a necessidade de novos e ampliados investimentos na própria região.
Essa conquista também concide com o início da exibição em tevês da vinheta da campanha "O Cupuaçu é Nosso", produzido pela entidade Trilha Ambiental e veiculada inicialmente desde domingo no canal por satélite Amazon Sat.
Para conhecer mais sobre os passos da campanha, visite www.biopirataria.org ou www.gta.org.br
Para comunicar-se com as entidades envolvidas neste processo:
GTA: rb.gro.atg@lanoicanatg- (61) 346 7048
Advocacia: adriana.r.vicentin@bakernet.com- (11) 5091 5824
Amazonlink: amazonlink@amazonlink.org- (68) 223 8085
APA: apa@ouronet.com.br
Museu Goeldi: carlabelas@museu-goeldi.br
INPA: cclement@inpa.gov.br
Rede Norte - moreiraeliane@uol.com.br
E mais:
www.amazonalliance.org
www.fboms.org.br
www.greenpeace.org.br
www.mma.gov.br/ppg7
www.ambiente.gov.br
www.mre.gov.br
www.rebrip.org.br
www.camara.gov.br
www.senado.gov.br
www.renctas.org.br

