Biopoder e técnica acirram vigilância sobre os corpos

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Escaneamento da íris do olho, registro da vibração vocal, geometria da mão, captação por satélite de cada movimento... em relação a estas técnicas biométricas o registro das impressões digitais parece até um procedimento arcaico. Segue a íntegra do artigo do filósofo italiano Roberto Esposito publicado no La Repubblica

Surpreende a surpresa que suscitou a intenção de estender o registro das impressões digitais a todos os ROM [Memória apenas de Leitura], também a crianças residentes na Itália. Surpreende, porque não faz senão levar às suas lógicas conseqüências um percurso de redução biopolítica da democracia, que tem no seu cerne a ruptura da fronteira entre o público e o privado e a assunção do corpo como elemento prioritário de identificação. Isto é, por sua vez, a conseqüência do progressivo deslocamento do agir político do plano do compartilhamento do poder ao do controle social e, depois, da vigilância generalizada.

Trata-se de uma dinâmica – originada bem antes do atentado do dia 11 de setembro de 2001, embora por ele acelerada – que contradiz o pressuposto fundamental da ordem política moderna, com base na qual o corpo dos cidadãos não pertence ao soberano, e sim ao sujeito que o habita. É verdade que já em fins do século XVIII Bentham havia imaginado um dispositivo de controle ao seu modo total – o Panóptico – no interior do qual cada indivíduo seria controlado em todos os seus movimentos por um olho que, por sua vez, não podia ver. Mas isso valia, precisamente, para prisioneiros e não para as pessoas livres, vinculadas ao soberano por um pacto de obediência que não passava pela cessão do próprio corpo, mas por uma opção da vontade racional.

É em conseqüência de tal pressuposto – expresso pela fórmula do habeas corpus – que se constituía uma civilização política secular, fundada na separação entre o público e o privado: nada do que é privado, como precisamente o corpo, devia entrar na esfera de disponibilidade do poder político. O mesmo princípio de igualdade, constitutivo da idéia de democracia, se baseia nesta separação funcional: somente se assumidos como puros centros de imputação jurídica que prescinde dos elementos corpóreos – ou seja, da idade, do gênero sexual, da proveniência étnica – os cidadãos acabam sendo iguais perante a lei e igualmente dotados de direitos políticos.

Há tempo esta complexa arquitetura jurídica e política mostra sinais de estar cedendo. A cindi-la, na sociedade global e multi-étnica, têm sido por vezes os próprios sujeitos – por exemplo, as mulheres, mas também grupos etnicamente definidos, que reivindicaram a própria diferença corpórea. Mas, é sobretudo o poder soberano que, ameaçado do interior e do exterior pela porosidade das fronteiras nacionais, se reestruturou potenciando sempre mais dispositivos de controle lesivos dos princípios de igualdade, porque dirigidos precisamente para o corpo como lugar de insuperável diversidade.

Isso se tornou possível pela inserção de um terceiro elemento, a técnica, no ponto de intersecção entre política e vida. Já o uso do DNA modificou radicalmente os termos do processo penal. A isto seguiu o armazenamento sistemático de outros dados extraíveis do corpo humano por parte do Estado ou também de agências de governo públicas ou privadas. Escaneamento da íris do olho, registro da vibração vocal, geometria da mão, acompanhamento via satélite de cada movimento, constituem formas de controle biométrico em relação aos quais a captação das impressões digitais parece um procedimento até mesmo arcaico. Já estão em estudo e mesmo em fase de avançada elaboração dispositivos de identificação – como a aplicação de microchip subcutâneos – que fazem do corpo vivo um simples apêndice orgânico de um aparelho de controle sempre mais invasivo e capilar.

Tudo isso, como se disse, é o produto do reposicionamento do poder soberano no interior dos atuais regimes biopolíticos. E, desta forma resulta o êxito do processo, por certos aspectos inevitável, que situou a vida no centro de todas as trajetórias da experiência contemporânea. Isto não tolhe que se esteja ultrapassando um limiar além do qual os próprios processos de vigilância e controle – simultaneamente exigidos e sofridos pela sociedade do medo – se transformem em novos fatores de risco individual e coletivo. E isto por um duplo motivo: em primeiro lugar, porque os dispositivos biométricos de controle – exercidos sobre as faixas mais expostas e marginalizadas da população, como precisamente os pequenos ROM – determinam novos e sempre mais potentes efeitos de exclusão. E depois, porque a consciência difusa de ser suspeitos e vigiados através de partes ou zonas do próprio corpo, ao invés de alentar, tende a ampliar a inquietude, provocando sempre novas e indefensáveis estratégias de proteção.

Instituto Humanista Unisinos, Internet, 8-7-08

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