Brasil: os perigos das transposições de bacias, por Aristides Soffiati

As capitanias, províncias e estados (dependendo do período da história do Brasil) de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais constituíram-se no âmbito da bacia do Paraíba do Sul

Ao contrário do que se costuma falar, não é o rio que banha estas unidades da Colônia, do Império e da República porque ele lhes preexiste. Em nenhum deles, a capital se situa às margens do rio principal da bacia. O Tietê não basta para abastecer São Paulo, o mesmo sucedendo com Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

Contando apenas com pequenos cursos d?água para atender a uma população crescente, a cidade do Rio de Janeiro concebeu, na década de 1950, um intrincado sistema de transposição de águas do Paraíba do Sul para um córrego de nome Guandu, mediante a represa de Santa Cecília. Na época, os engenheiros Edgard Teixeira Leite e Léo Ferraz Alves advertiram sobre o risco representando pelas transposições, mas poucos lhes deram ouvidos.

Além das barragens construídas ao longo do Paraíba do Sul e de seus afluentes, existem dois pontos principais de transposição. O primeiro situa-se em Barra do Piraí e transpõe água para o sistema Lajes-Guandu. O segundo localiza-se no baixo curso do rio, transpondo água, por meio de oito canais primários, para o sistema Lagoa Feia. Na altura de Santa Cecília, a vazão média do rio oscila em torno de 250 m3/s, dos quais 160 m3 são transpostos para o Guandu e 90 m3 restam para o Paraíba do Sul. Enquanto um rio magro engorda, um rio gordo emagrece.

Este sistema começou a manifestar problemas há cerca de uns trinta anos. A redução de vazão líquida e sólida no rio Paraíba do Sul, agravada por outros fatores, tais como barragens para geração de energia elétrica, desmatamento, erosão, assoreamento e poluição, roubou a competência do curso d?água em sua foz, principalmente, favorecendo o avanço do mar sobre o complexo deltaico. Cerca de sete ruas foram engolidas pelo mar na praia de Atafona e o avanço deste prossegue. Por outro lado, o volume da água transposta para o Guandu é excessivo, a fim de diluir a poluição antes da captação para tratamento. Além do desperdício, o aumento de vazão de um pequeno rio está provocando a erosão da restinga da Marambaia, na baía de Sepetiba.

O sistema foi concebido numa época em que nem se sonhava com estudos de impacto ambiental. Imperava uma visão dura de engenharia civil. Em favor da transposição de águas do rio São Francisco para amenizar a seca do Nordeste, as autoridades governamentais prometem rigorosos estudos de impacto sobre o meio ambiente. Não resta dúvida de que tais estudos, instituídos por lei, representam um avanço em relação ao Código de Águas, de 1934, principal diploma legal a regular então o uso dos recursos hídricos. Todavia, tanto o EIA como o processo de licenciamento estão sofrendo severas críticas. Exige-se uma revisão completa de ambos os instrumentos. O EIA, por exemplo, tornou-se uma rotina pobre que não contempla devidamente a dimensão histórica. Um estudo sobre a transposição de águas do São Francisco pode examinar o estado do sistema hídrico agora, mas é incapaz de fazer projeções a médio e a longo prazos.

Portanto, a prudência aconselha que não se proceda à transposição do São Francisco, e o rio Paraíba do Sul deve ser tomado como lição, nunca como exemplo.

Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, Brasil, 9-11-03

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