Brasil: transgênicos: Marina ainda não se dá por vencida, por Sandra Sato

Ministra vê aspectos positivos na MP da soja e luta por lei 'adequada' de biossegurança

BRASÍLIA - Ela não viu o presidente em exercício, José Alencar (PL), assinar a medida provisória autorizando o plantio da soja transgênica na safra 2003/04, mas foi a última a deixar o Palácio do Planalto na quinta-feira. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (PT), tentou até o último instante impedir a edição da MP, com a mesma insistência com que, na década de 80, ao lado do ambientalista Chico Mendes e de outros companheiros, participava no Acre do chamado "empate".

O termo era usado para definir o procedimento dos manifestantes para impedir a ação dos madeireiros: enfileirar-se na frente das árvores, criando uma barreira. A negociação que resultou na edição da MP 131 foi o "ensaio de um empate", diz Marina. "Acho que a gente precisa compreender que tem um processo em curso." Mas a ministra deixa claro que paciência tem limite: "É claro que também nem só de empate vivia o Chico Mendes, ele buscava também algumas vitórias." Agora sua meta é ajudar a aprovar no Congresso uma legislação "adequada" de biossegurança e trabalhar para que "os cidadãos brasileiros tenham a compreensão ética de que não se pode subordinar a lei de um País e o desejo democrático do País à vontade de uma empresa e de uma tecnologia".

A pressão das negociações somada à lembrança do mestre seringueiro fizeram Marina chorar na quarta-feira. Dois dias depois, ao receber o Estado para esta entrevista, seus olhos voltaram a ficar cheios d'água: "Para os que se incomodaram com as lágrimas, podem ter absoluta certeza de que foi impossível contê-las."

Estado - Quando senadora, a senhora apresentou projeto propondo moratória de cinco anos para os transgênicos e sempre defendeu o princípio da precaução. Como é ser ministra de um governo que libera a produção de transgênicos?

Marina Silva - Durante os oito anos do meu mandato, não tivemos moratória nem uma legislação que de fato estabelecesse um regramento adequado para os organismos geneticamente modificados. Com a primeira MP (a que permitiu a comercialização da safra passada), estávamos resolvendo um passivo. Deixei clara a minha divergência quanto à nova MP, mas em nenhum momento me omiti de contribuir com o governo. Participei deste processo dentro do governo mantendo todas as posições que historicamente sempre defendi.

Estado - Mas não é constrangedor estar em um governo que libera transgênicos no País?

Marina - Eu procuro neste momento fazer com que o Congresso Nacional e o próprio Executivo tornem executáveis as cláusulas da MP que proíbem o uso do grão como semente, impedem acesso ao crédito para produtor com soja sem certificação, proíbem plantio de soja transgênica próxima a área indígena, unidades de conservação ou estratégicas para a conservação da biodiversidade e de mananciais para abastecimento público. Se tudo for cumprido, combinando com um bom projeto de lei de biossegurança, ainda há tempo para se dar um basta a esta desobediência civil que vinha em curso. O projeto da biossegurança já está praticamente finalizado, faltando só a decisão presidencial em relação às questões polêmicas que envolvem, principalmente, as competências da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança.

Estado - A publicação da MP foi uma confusão, não incluiu os últimos acertos e exigiu uma edição extra do Diário Oficial.

Marina - O erro da publicação da MP até evidenciou a contribuição do (Ministério do) Meio Ambiente. Eu jamais sairia dizendo para as pessoas que a proposta era assim e porque o Meio Ambiente interferiu ficou assado. Até por uma questão de honestidade ética não posso dizer que a nova versão é só do Meio Ambiente; é uma contribuição do governo, já que foi assumida pelo presidente e demais ministros que estavam na mesa quando estávamos discutindo cada medida.

Estado - A MP 113, que liberou a soja ilegal da safra passada, também proibia o plantio destas sementes no ano seguinte, mandava incinerar o estoque e restringia o crédito. O que garante que agora será diferente?

Marina - A primeira MP não tinha o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) - que foi um grande avanço neste processo todo -, que condiciona o plantio e a comercialização. Uma vez descumprido o TAC, o produtor é passível de penalidades. Também foi criada uma comissão interministerial de implementação da medida. O nosso esforço é para não repetir a história no ano que vem. É um esforço não só do governo federal, mas dos governos estaduais, dos produtores e, principalmente, da sociedade brasileira, que espera que se tenham regras claras e transparentes e verdadeiramente implementadas não só em relação a organismos geneticamente modificados, mas em tudo.

Estado - A senhora acredita que ainda é possível reverter o quadro do fato consumado e de liberação total dos transgênicos?

Marina - A combinação do cumprimento das normas estabelecidas na atual MP e um projeto de lei que salvaguarde o licenciamento ambiental, o estudo de impacto ambiental, as competências dos Ministérios do Meio Ambiente, da Agricultura e da Saúde poderá criar um novo processo. Mas um novo processo mesmo será fruto de uma compreensão ética de todos os cidadãos brasileiros de que não se pode subordinar a lei de um País, o desejo democrático do País, à vontade de uma empresa e de uma tecnologia. Transferir só para legislação e para ação do Estado é perder a dimensão de que é preciso haver um esforço, principalmente dos produtores. Um pensamento de que o que a sociedade está buscando deve ser o melhor do ponto de vista ambiental, social e econômico.

Estado - Mas parte destes cidadãos defende os transgênicos e teme que o País perca competitividade no mercado internacional se não adotar já esta tecnologia.

Marina - O que preconiza a Convenção da Diversidade e o Protocolo de Cartagena é que na ausência da segurança o melhor é ser cauteloso. Acho que são muito apressados os que dizem que os organismos geneticamente modificados são inócuos para o ambiente e a saúde. Não sei de onde tiram esta segurança. Posso dizer que uma boa parcela de pesquisadores, cientistas e cidadãos diz que não tem esta segurança. A Monsanto é que judicializou a questão.
Estado - Hoje existem duas decisões contra o plantio de transgênico sem o estudo de impacto ambiental. A MP liberando esta safra não é inconstitucional?

Marina - Desta questão, eu não posso tratar.

Estado - Em algum momento a senhora chegou a pensar em pedir demissão?

Marina - O tempo todo eu participei com minha equipe no sentido de dar o melhor do melhor deste ministério para a solução do problema. Este tem sido o meu espírito desde que cheguei aqui e até sendo coerente com as expectativas que a população tem do meu trabalho. Estava brincando hoje pela manhã que este foi um ensaio de um empate. Acho que a gente precisa compreender que tem um processo em curso. Quando assumi o ministério, colocamos quatro diretrizes: a transversalidade - política integrada e não de ministério -, política que prime pelo controle social, pelo fortalecimento do Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente) e o desenvolvimento sustentável. É claro que estas coisas não acontecem de uma hora para outra, é preciso ter um processo. É claro que também nem só de empate vivia o Chico Mendes, ele buscava também algumas vitórias. E a gente tem de entender que estas vitórias se dão dentro de um processo.

Estado - Então não é o momento de deixar o ministério?

Marina - Eu não quero, neste momento, pôr esta questão em discussão. Não quero misturar as coisas.

Estado - É verdade que a senhora chegou a chorar esta semana?

Marina - Sou osso duro de roer. Foi um dia muito forte e eu estava muito emocionada. Veio um grupo de sem-terra e tinha uma jovem de 20 anos e, de repente, ela estava agradecendo por eu ter recebido o grupo. Eu olhei para aquela foto de empate em Xapuri em 86 (está na parede do gabinete, ao lado da foto da posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva) e, naquela época, tudo o que a gente queria era ser recebido ou ouvido por alguma autoridade. Então, ouvindo aquilo tudo, pensei que não poderia ser diferente. Alguém que começou em uma situação que não conseguia nem ser recebido pelo gerente do Ibama local em situações de muita tensão e que, em determinado momento, foi tão grave que levou à morte do Chico Mendes. É muito duro e foi neste contexto que eu chorei. Eu tenho muito cuidado com as lágrimas como o Chico Mendes também tinha. Eu lembro que uma vez ele caminhou comigo da casa dele para o sindicato, 15 dias antes de ele morrer, e me disse: "Companheira, não tem jeito, desta vez eles vão me pegar." Eu falei assim: "Por que a gente não denuncia para imprensa?" Ele falou: "Não adianta, porque quando faço isso eles dizem que eu quero me promover." Eu fui educada politicamente com estes cuidados que o Chico Mendes tinha de não fazer nada que parecesse autopromoção. Aquilo tudo veio na minha cabeça e eu não consegui segurar e olha eu de novo (emocionada e com lágrimas nos olhos). Mas para os que se incomodaram com as lágrimas podem ter absoluta certeza de que foi impossível contê-las.

Estado - A senhora conversou com o presidente Lula?

Marina - Falei com ele no dia 24 (quarta-feira). Conversei rapidamente. Como sempre, uma conversa respeitosa e afetuosa, mas tratando da gravidade do tema. Ele até me disse que o ministro José Dirceu (da Casa Civil) só viajaria no dia seguinte. Não entramos em detalhes da MP.

Estado - O jornal fez um editorial dizendo que o presidente Lula não deveria ter deixado para o "pobre coitado" do vice-presidente - como ele mesmo se definiu - assinar a MP. Lula poderia ter assinado a MP antes de viajar?

Marina - Tanto não era possível que o assunto se arrastou mesmo três dias depois do início da viagem. Havia a necessidade do debate, porque envolvia questões de variadas naturezas: legal, ambiental, social e econômica.

O Estado de S. Paulo, Brasil, 28-9-03

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