Conhecimento transgênico

Idioma Portugués
País Brasil

Não há neutralidade científica que resista aos disparos certeiros de Lacey

A semana que passou viu sair em português uma obra notável: "A Controvérsia dos Transgênicos", de Hugh Lacey (Idéias & Letras, 239 págs., R$ 36,60). Na impossibilidade de resenhá-la apropriadamente, segue neste curto espaço algo como um convite à leitura.

Para não desentortar a boca crítica, porém, ele vai acompanhado de uma questão. Como os convites de casamento, que costumam trazer preso com clipe minúsculo o salvo-conduto para aquilo que realmente importa (a festa depois da missa), este também traz anexado o que a mordacidade popular já apelidou de "vale-empada".

Não se iluda com o título de Lacey. Não se trata de mais uma obra de divulgação ou propaganda, contra ou a favor, sobre biotecnologia na agricultura. É peça de filosofia da ciência, mas também, caso raro, de intervenção. Uma análise rigorosa aplicada à interpretação de uma questão da hora, que por sua vez exemplifica e faz circular o sangue numa explicação da pesquisa científica contemporânea capaz de superar alguns becos sem saída da crítica de ciência.

Lacey retoma aqui, de modo mais substancial, o que havia exposto num livro curto de 1998 ("Valores e Atividade Científica") e com toda a formalidade filosófica em dois volumes lançados nos EUA ("Is Science Value Free?", de 1999, e "Values and Objectivity in Science", de 2005). Trata-se daquilo que a maioria dos cientistas naturais -os epistemologicamente ingênuos- se recusa a ver e ouvir: a ciência não é uma atividade isenta da interferência de valores sociais, como prefere se apresentar ao mundo.

É na escolha de suas estratégias de pesquisa (o que e como observar ou medir) que tais valores se insinuam. E isso só se torna pecado se for omitido, pois nada impede que qualquer estratégia restrita produza teorias e resultados aceitáveis segundo os mais altos valores cognitivos. Pode-se questionar uma estratégia, mas seus produtos só podem ser julgados por critérios do próprio conhecimento.

O valor social e não-cognitivo que a ciência utilitarista contemporânea promove é o que Lacey chama de "valorização moderna do controle". É com apoio nela que se estabelece a pesquisa experimental como modelo superior de cientificidade.

Diante disso, estratégias de pesquisa que valorizem outros objetivos humanos -harmonia ambiental, autonomia, participação comunitária- são rebaixadas como "ideológicas", como se apenas elas fossem tingidas por valores sociais.

Seu contra-exemplo é o da agroecologia. Sem dúvida é possível planejar a realizar muitas pesquisas empiricamente irretocáveis -e ambientalmente sustentáveis- sem envolver transgenia, mas a hegemonia conquistada pela biotecnologia agrícola na prática o impede. Lacey, além disso, identifica essa perspectiva menos obcecada com o controle da natureza aos movimentos de trabalhadores agrícolas contrários ao avanço dos organismos geneticamente modificados.

Seria o caso de questionar, então, se não haveria aí alguma idealização desses movimentos. É difícil conciliar tal visão mais abrangente de ciência com a auto-atribuída autoridade de um MST, por exemplo, para julgar o que seja pesquisa contra e a favor do povo.

Não há valores cognitivos que resistam a pauladas e chutes, assim como não há neutralidade científica que resista aos disparos certeiros de Lacey contra a metafísica envergonhada.

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