Soja, cocaína e miséria, por Sílvio Ribas

Atividades primárias, agricultura e mineração ainda garantem sobrevivência na América do Sul

A convulsão social que sacudiu a Bolívia recentemente tinha como pano de fundo uma poderosa atividade econômica do continente sul-americano. Negócio de bilhões de dólares e garantia de sobrevivência para a maioria da população do país vizinho, de sangue indígena e enfronhada nos seus sertões, o plantio de cocaína desafiou - e venceu - o Estado. Oficialmente, contratos de venda de gás boliviano para México, Brasil e Chile (com o qual se acumulam rivalidades centenárias) teriam sido o estopim do quebra-quebra geral, que culminou na renúncia do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada e na ascensão do vice Carlos Mesa.

Para não deixar dúvidas de que a repressão à matéria-prima do narcotráfico foi o combustível da quase ruptura da ordem institucional, basta lembra que os protestos eram capitaneados por Evo Morales, o líder do plantadores da região do Chapare. Os bloqueios de estradas que promoveu não cessaram nem após reuniões e garantias de recuo de Lozada, comprometido com os Estados Unidos (maior consumidor da coca boliviana) a erradicar a folha de coca em seu país. Com renda inferior a US$ 2 por dia, os chamados cocaleros dependem de sua agricultura artesanal para tirar sustento.

Após mortos e governantes de ocasião, deveria emergir a seguinte reflexão: os latino-americanos, sobretudo os deste continente, continuam vivendo às custas do que tiram do solo e do subsolo em escalas exportáveis. ?Deus é brasileiro e planta soja no Mato Grosso em parceria com São Pedro?, disse semana passada André Pessoa, professor de negócios internacionais da Universidade de Berkeley. Ele lembrou que a soja é ?uma das poucas atividades lícitas que prospera no mundo?.

Além das sojas brasileira e argentina, o petróleo da Venezuela e o daqui e o cobre chileno são provas claras de que atividades primárias impedem o subdesenvolvimento sul-americano agravar seu caos social. Em paralelo à repressão frustrada aos cocaleros, precisa-se lembrar outra pressão dos campos, muito menos grave do ponto de vista legal mas igualmente preocupante: o lobby dos produtores de soja geneticamente modificada do País, particularmente os gaúchos. Por fina ironia, o polêmico governador do Paraná, Roberto Requião, comparou a autorização emergencial para venda e plantio dos grãos transgênicos à liberação da maconha. Ele bloqueou caminhões transportadores da safra do Centro-Oeste sob esse argumento.

Na raiz de todos esses problemas está o quadro da economia regional, a mais prejudicada nas últimas duas décadas em todo o mundo. O empobrecimento da América Latina não representou retorno às ditaduras, mas deixou ainda mais exposto sua dependência por capitais externos e pelo generoso patrimônio natural. Ecologia e Justiça são as únicas forças externas capazes de balizar sistemas corrompidos de produção. Nem mesmo o nível razoável de industrialização já conquistado nos principais países da região conseguiu reverter mazelas e contradições seculares.

Agrolink, Internet, 26-10-03

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