Transgênicos, produção de alimentos e combate à fome

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"A atual produção mundial de alimentos é superior à capacidade de consumo dos seres humanos. Assim, podemos constatar que a fome não resulta de uma baixa produtividade ou de pouca produção de alimentos no mundo"

“A atual produção mundial de alimentos é superior à capacidade de consumo dos seres humanos. Assim, podemos constatar que a fome não resulta de uma baixa produtividade ou de pouca produção de alimentos no mundo”, constata Antônio Inácio Andrioli, professor do Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ - RS e da Universidade Johannes Kepler de Linz (Áustria). Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück (Alemanha), em artigo publicado na revista Espaço Acadêmico e reproduzida pela Agência Envolverde/Mercado Ético, 02-03-2009. Para ele, no entanto, “a questão é a seguinte: como os 860 milhões de seres humanos que passam fome podem ter acesso aos alimentos? Alternativas técnicas, como a transgenia, poderiam contribuir para combater a fome?”

Eis o artigo.

A atual produção mundial de alimentos é superior à capacidade de consumo dos seres humanos. Assim, podemos constatar que a fome não resulta de uma baixa produtividade ou de pouca produção de alimentos no mundo. A questão, entretanto, é a seguinte: como os 860 milhões de seres humanos que passam fome podem ter acesso aos alimentos? Alternativas técnicas, como a transgenia, poderiam contribuir para combater a fome?

As questões políticas fundamentais que se colocam no debate sobre a produção de alimentos giram em torno do que, porque, como, por quem e para quem algo é produzido. Nos últimos anos, se vislumbrou, de forma crescente, a possibilidade de lucrar com a produção de alimentos. Uma das formas é disponibilizar alimentos baratos sob tais condições que a produção local em outros países seja destruída e se gere uma dependência na importação. Por exemplo, o Brasil exporta frangos para a Europa, os europeus consomem as partes mais nobres e as que não desejam consumir são exportadas gratuitamente para a África, com o suposto propósito de combate à fome. Assim, o frango exportado para os países africanos destrói a produção local, pois estes não têm condições de competir com as doações de alimentos. Essa é uma forma de dependência acompanhada de um “espírito de solidariedade” e assistencialismo, pois os europeus argumentam que, assim, estariam ajudando os países pobres.

Mas, quais alimentos são produzidos? No caso do Brasil, é evidente que o país produz demasiadamente soja, que, em sua maior parte, se destina à alimentação de bovinos, suínos e aves dos europeus, estadunidenses e chineses. E, atualmente, também passa a contribuir para abastecer veículos na forma de agrodiesel. A monocultura da soja destrói o meio ambiente e a produção local de alimentos para servir de combustível para os países ricos.

O Brasil produz excessivamente soja, café, algodão, cacau, laranja, enfim, as monoculturas destinadas à exportação, produtos que, em sua maioria, não são consumidos pelos brasileiros. Por outro lado, o país produz pouco arroz, feijão e mandioca, produtos que constituem a base alimentar dos brasileiros e passaram a ser importados com dinheiro das assim chamadas divisas do superávit da balança comercial, resultante das exportações agrícolas. Essa é uma das formas de desigualdade que contribui para a concentração de renda nos países ricos e pobres e para o aumento da fome. Por exemplo, o Brasil é o maior produtor de café em grão do mundo. A Alemanha, país mais rico da Europa, é o maior exportador de café refinado do mundo sem produzir um único grão do produto. Isso não ocorre somente com o café. Trata-se de uma política de geração de dependência, que há mais de 500 anos vigora no Brasil. Por isso, a fome e a produção de alimentos constituem uma questão política e não técnica. Trata-se da soberania alimentar de uma população. Além disso, determinadas tecnologias, como a transgenia, proporcionam a algumas empresas o poder de se apropriarem de recursos naturais, que deveriam estar à disposição de todos, para o aumento de seus lucros. Essas mesmas empresas são beneficiadas com a fome (a assim chamada crise alimentar), que é muito mais resultado de uma especulação com alimentos do que da sua falta de disponibilidade ou do aumento do consumo em algumas regiões do mundo. Os chineses, por exemplo, estão consumindo mais alimentos importados exatamente em função do forçado processo de industrialização e urbanização em curso naquele país, diminuindo a produção de alimentos, aumentando o êxodo rural e, por consequência, o número de pessoas que deixam de produzir para consumo próprio.

Além dos fatores anteriormente citados, é principalmente a concentração no sistema alimentar mundial que tem contribuído para o aumento da fome. No Brasil, isso não significa apenas afirmar que determinadas empresas monopolizam diretamente a produção de alimentos, pois elas estão controlando o uso da terra. A terra continua concentrada como propriedade de empresas que passam a produzir soja, etanol, agrodiesel e celulose. É esse o futuro projetado para a agricultura brasileira pelo “agronegócio” e, com isso, se produz mais fome, pois estão sendo excluídos do acesso à alimentação aqueles que poderiam produzir para alimentarem a si mesmos e que estariam em condições de produzir um excedente para abastecer o mercado local e regional. Esse tipo de agricultura está sendo destruído, o qual é responsável pela alimentação da maior parte das pessoas no planeta: a agricultura familiar.

A agricultura familiar não recebe apoio público na forma como deveria receber, considerando sua importância para a soberania alimentar das nações. O debate sobre os subsídios agrícolas também é fundamental no que se refere à alimentação. Na Europa, por exemplo, é subsidiada a agricultura que não precisa do subsídio (os grandes produtores rurais e corporações agrícolas), em função da pressão política das suas organizações. O governo apoia, prioritariamente, quem expande sua capacidade produtiva, o que gera um problema de superprodução. Em seguida, para compensar os baixos preços decorrentes do excesso produzido, os governos subsidiam a exportação desses produtos, que entram no mercado internacional, destruindo a produção em outros países e gerando uma nova dependência.

Com referência aos transgênicos, que foram anunciados com a promessa de contribuir para o aumento da produção de alimentos, é evidente que empresas como a Monsanto, a Syngenta, a Bayer e a Basf não estão interessadas em combater a fome. Seu objetivo é aumentar o poder de controle sobre a produção de alimentos desde a gênese do alimento: a semente. Nunca na história da humanidade se obteve um domínio tão grande sobre a produção de alimentos, porque nunca era possível determinar a partir de uma técnica a apropriação dos resultados econômicos dessa tecnologia. Atualmente isso é possível. A transgenia e algumas outras biotecnologias que ainda estão por vir permitem que algumas empresas possam controlar onde e qual planta será cultivada, que tipo de insumos se vai utilizar (os insumos que essas empresas tem a oferecer) e para quem essa comida será produzida.

Há diversos problemas éticos envolvidos nesse debate. Existem pesquisadores (intelectuais liberais) que não conseguem entender porque as pessoas pobres não querem consumir o que os ricos rejeitam: os alimentos transgênicos, com altos riscos à saúde, enormes conseqüências ao meio ambiente e problemas sociais, que se tornaram conhecidos nos últimos dez anos, em que apenas duas formas de transgenia foram liberadas para cultivo. Trata-se de uma planta resistente a um herbicida e uma planta resistente a determinados insetos. Após 5 anos de cultivo essa tecnologia passa a perder a sua validade e precisam ser acrescentadas novas características para que ela possa continuar sendo eficiente, representando um alto custo econômico, ecológico e social.

Está comprovado que a transgenia é uma tecnologia que não deu certo, com a constatação de resistência de inços ao glifosato, no caso da planta resistente a herbicida, e a resistência dos insetos contra a toxina produzida pela bactéria bacilus turinguiensis, introduzida nas plantas Bt. Mas, apesar disso, existe um lobby enorme sobre parlamentos e governos, uma forte pressão da mídia e um aparato de propaganda para forçar a sociedade a consumir o que ela não está disposta a consumir e os agricultores estão sendo forçados a produzir de uma só forma. Se o agricultor não consegue mais produzir de outra forma, o consumidor não terá mais a possibilidade de escolher o tipo de alimento. Portanto, de uma só vez, estão sendo restringidos dois direitos históricos dos seres humanos: a) a liberdade dos agricultores de definirem sua forma de produzir; b) a liberdade dos consumidores em sua opção de consumirem alimentos melhores, mais saudáveis e que não contenham toxinas ou resíduos de agrotóxicos.

Com os transgênicos estão sendo produzidos alimentos de pior qualidade, com menor produtividade e com mais custos econômicos, ecológicos e sociais. Por detrás dessa temática está o debate sobre o tipo de agricultura que um país pretende priorizar, o acesso aos recursos naturais, a Reforma Agrária, enfim, a possibilidade de um povo se alimentar de uma forma mais saudável e de viver com mais qualidade. A silenciosa contaminação de solos e alimentos[1], através dos cultivos transgênicos, integra uma estratégia de dominação associada a uma perspectiva de aumento dos preços dos alimentos. Assim, é possível controlar populações inteiras que ficam subordinadas aos interesses de algumas corporações multinacionais, fazendo da produção de alimentos uma forma de enriquecimento privado e um poder político sem precedentes na história da humanidade.

[1] Cf. Andrioli, A./Fuchs, R. (2008): Transgênicos: as sementes do mal. A silenciosa contaminação de solos e alimentos. São Paulo: Expressão Popular.

IHU, Internet, 3-3-09

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