É tempo de fazer acontecer a justiça que brota da terra!

Idioma Portugués
País Brasil
Crédito: Ingrid Barros

Com esse lema, a Campanha em Defesa do Cerrado – uma articulação de 50 movimentos e organizações sociais – peticionou ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP) para a realização de uma Sessão Especial para julgar o crime de ecocídio contra o Cerrado.

A Campanha denuncia o processo em curso de ecocídio contra o Cerrado, que entendemos como os históricos e graves danos e a vasta destruição que resultaram da intensa expansão da fronteira agrícola sobre essa imensa região ecológica (cerca de 1 ⁄ 3 do território nacional) ao longo do último meio século. Esta ocupação predatória foi desenhada e dirigida pelo Estado brasileiro, em articulação com Estados estrangeiros e agentes privados nacionais e estrangeiros, com os quais compartilha a responsabilidade nesta acusação.

Além disso, denunciamos que se nada for feito para frear a devastação do Cerrado, estamos diante da ameaça de aprofundamento irreversível do ecocídio em curso, com a perda (extinção) do Cerrado nos próximos anos e junto com ele a base material da reprodução social dos povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais do Cerrado como povos culturalmente diferenciados, ou seja, seu genocídio cultural.

Falamos em “genocídio cultural”, porque propomos recuperar o sentido original na construção da categoria de “genocídio”, ao considerar que a cultura deveria ser uma das dimensões fundamentais das ações sistemáticas para a destruição de um grupo que constituem esse crime. Enfatizamos também a dupla importância de proteger os povos do Cerrado da ameaça de genocídio (cultural): para o seu próprio bem; e para o bem de proteger a diversidade cultural e biológica (que eles manejam por meio de seus conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade), que constituem um bem comum para toda a humanidade e para o equilíbrio ecológico do planeta.

No processo de formulação desta proposição jurídica da relação intrínseca entre ecocídio do Cerrado e genocídio cultural dos povos do Cerrado, os representantes dos casos sendo apresentados ao TPP trouxeram elementos que respaldam essa leitura. Nas palavras de uma ribeirinha que vive à beira de um rio contaminado por rejeitos minerários: “não poder pescar é a morte para o pescador”. Os povos e comunidades do Cerrado se autodefiniram/nomearam tradicionalmente/historicamente a partir dos elementos do Cerrado com os quais têm mais convivência e intimidade. E a morte do Cerrado é o fim daquilo que os define como povos culturalmente diferenciados: o que será das comunidades tradicionais veredeiras sem as veredas onde a água brota; o que será das comunidades geraizeiras sem os gerais – que são por essência as chapadas sem cercas, como área de uso comum; o que será das quebradeiras de coco-babaçu sem a “mãe-palmeira” e o “coco livre”; o que será das raizeiras sem as raízes e plantas medicinais que usam em seus ofícios de cura; o que será das comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas sem acesso aos campos de flores que ajudaram a conservar e a fazer florescer; o que será das comunidades retireiras do Araguaia diante do cercamento dos varjões, a planície alagada de onde se “retiram” ciclicamente para a água inundar e fertilizar; o que será das comunidades pantaneiras com a baixa do rio Paraguai que reduz o fluxo das águas que historicamente inunda e traz vida à planície alagada do Pantanal.

Da mesma forma, muitos mitos de criação de povos indígenas e elementos de sua espiritualidade têm interligação direta com o Cerrado. Quando se destroem esses elementos e lugares, o que é sagrado para esses povos está sendo perturbado. Além dos indígenas, as comunidades quilombolas e tradicionais também têm no Cerrado um espaço místico de crenças que abriga relações simbólicas com as águas e seus movimentos, os peixes, a terra, as matas, as serras e a lua. Os festejos, danças e cantos e outras manifestações artísticas, culturais e religiosas se conectam, celebram e reproduzem elementos e ciclos da natureza. Diversos personagens entram em cena e tomam conta das narrativas de proteção, com os encantados tendo sua morada em lugares da paisagem, que quando são destruídos, contaminados ou apropriados, quebram a própria proteção espiritual do povo ou comunidade, sua relação espiritual com o território. A dimensão espiritual da cultura dos povos do Cerrado, inscrita na sua co-constituição com o Cerrado, é, assim, também dimensão sob ataque no processo de ecocídio em curso.

Nos parece fundamental, no entanto, não adotar um entendimento essencializador da cultura, considerando a habilidade dos grupos de se reinventarem, tal como os povos do Cerrado têm feito ao “resistir para existir”, como eles dizem, continuamente inovando e reconstruindo suas práticas e territorialidades no enfrentamento da expansão da fronteira e nos interstícios desta.

Afinal, não haveria outra explicação para a r-existência indígena diante de cinco séculos de genocídio. Os trânsitos e autoisolamento (como os Avá Canoeiro), a co-habitação com outros povos e a camuflagem (como os Akroá-Gamella no Maranhão com povos da família Timbira e os Awá Guajá com os Guajajara, Tembé e Ka’apor) e o refúgio de um povo indígena em territórios dos parentes (como os Kinikinau, quase dizimados e hoje refugiados em território Terena), o resgate da memória indígena massacrada nos deslocamentos forçados da fronteira (como os Akroá-Gamella no Piauí) e os processos de retomadas de territórios roubados (como os Kinikinau e os Guarani e Kaiowá) estão entre as mais fortes expressões dessas estratégias.

Em outros tempos e caminhos, outra estratégia de adaptação e resistência para seguir existindo enquanto comunidades tradicionais é quando os geraizeiros da região de Correntina decidem, no processo de luta contra a expansão dos monocultivos sobre os gerais, cercar as áreas de uso comum remanescentes criando os fechos de pasto e passando a se autonomear comunidades de fecho de pasto. Vemos nesse movimento a criatividade para se reinventar que se forja na luta, no “resistir para existir”.

É essa capacidade de adaptar-se para (sobre)viver, essa resiliência, que faz com que os povos do Cerrado possam seguir – mesmo diante do contexto de mais fortes ataques a seus direitos desde a redemocratização – reivindicando a necessidade de:

  • deter o ecocídio em curso contra o Cerrado antes que este seja extinto;
  • de contar a verdade sobre a relevância e diversidade ecológica e cultural do Cerrado e seus povos;
  • de resgatar a memória, muitas vezes por meio de acontecimentos transmitidos pelos mais velhos das comunidades, sobre tantas violências, expulsões e cercamentos das áreas de uso comum;
  • de parar a impunidade da qual os grileiros e empresas têm desfrutado nas violações aos direitos dos povos, mas também no continuado assédio, manipulação, humilhação e divisão das comunidades utilizadas em suas estratégias para construir hegemonia social;
  • de obter justiça e reparação no marco dos conflitos que ainda enfrentam e no direito à posse de seus territórios;

de maneira a garantir sua reprodução social e que a sociobiodiversidade do Cerrado possa persistir como um legado vivo para as próximas gerações.

Neste sentido e finalmente, propomos mais um importante aprofundamento na leitura da ocorrência do crime de ecocídio a partir do caso do Cerrado como expressão do que pode ser encontrado em outras realidades: a dimensão da colonialidade e do racismo estrutural – expresso especialmente no racismo institucional, fundiário e ambiental – subjacente na própria operação do processo de ecocídio.

O processo de ecocídio do Cerrado só tem sido possível em razão da negação do outro. Esta negação guia o projeto colonial histórico e persistente, os sucessivos modos de desenvolvimento hegemônico e as formas de operar das relações de poder. Destacamos o papel do sistema de justiça do Brasil, que continua a identificar o sujeito de direito como homem, branco, proprietário; e, de forma correlata, o poder executivo e legislativo que consistentemente e em governos de diversos espectros políticos têm associado a monoculturação ou homogeneização da vida com a ideia de “desenvolvimento”. Nesse esquema, os povos do Cerrado – caracterizados por sua diversidade racial e sociocultural, por seus conhecimentos (saber-fazer) tradicionais associados à biodiversidade e por seus modos de vida entrelaçados com o Cerrado – tornam-se não-sujeitos, invisibilizados, tratados como objetos apropriáveis ou obstáculos ao “desenvolvimento”. 

A construção da ideia hegemônica dos cerrados como “vazio demográfico” busca legitimar esta apropriação monocultural do Cerrado por este tipo de sujeito (branco-homem-proprietário) em um ajuste colonial da ideia de “desenvolvimento”. Limpar a terra das matas e dos povos que vivem nas matas torna-se um imperativo. Atualiza-se, assim, uma das mais perversas práticas do colonialismo, a da “guerra justa”, contra quem quer que não se identifique com este sujeito de direitos e com o projeto hegemônico de “desenvolvimento”, o que denota que a colonialidade sobreviveu ao fim do colonialismo. Esses povos significados como “não ser” são, no processo, destituídos da titularidade de direitos, privados da garantia de posse de seus territórios e do direito de exercer seus modos de ser, fazer e criar.

Finalmente, ainda que não esteja positivado o crime de ecocídio-genocídio cultural tal como acusamos aqui, os direitos que por sua violação sistemática (no tempo e no espaço) geram esse crime sim estão reconhecidos e protegidos por diversos instrumentos legais nacionais e internacionais: o direito dos povos indígenas e comunidades quilombolas e tradicionais à autodeterminação e o direito desses povos e comunidades à posse e propriedade da terra/território.

A partir dessa leitura, nós, organizações e movimentos da sociedade civil que compõem a Campanha em Defesa do Cerrado, invocamos a competência do Tribunal Permanente dos Povos, nos termos do art.  12 do Estatuto, como ferramenta de acesso à justiça dos e para os povos do Cerrado, especialmente afetados por tais retrocessos socioambientais, para identificar e determinar as distintas responsabilidades dos agentes das violações denunciadas, de modo a preencher as lacunas institucionais nacionais e internacionais para conferir as medidas de justiça e reparação devidas.

Esta Acusação está sendo enunciada a partir do conjunto do Cerrado e será detalhada ao longo do processo das Audiências Temáticas da Sessão em Defesa dos Territórios do Cerrado do Tribunal Permanente dos Povos com base em  15 casos representativos de territórios em conflito em 8 estados do Cerrado. Estes casos foram selecionados a partir de um amplo processo, envolvendo lideranças comunitárias, movimentos sociais e organizações de assessoria popular.

Ainda que o Cerrado em seu conjunto tenha sido uma fronteira permanente de imposição dos marcos da modernidade (e de consequente “apagamento/encobrimento do outro”) em especial no último meio século, a expansão da fronteira agrícola e mineral sobre o Cerrado tem, em diferentes regiões da fronteira, variados tempos e histórias territoriais de conflito. Há, neste sentido, histórias territoriais tão diversas quanto os povos e paisagens do Cerrado.

Mas essa diversidade não anula sua comunalidade: estes povos culturalmente diferenciados da sociedade hegemônica, com seus modos de viver, fazer e criar forjados na convivência com o Cerrado, construíram territorialidades em diálogo com o manejo das paisagens e da biodiversidade, e viram seus direitos à autodeterminação e à posse e propriedade comunal de suas terras/territórios serem ameaçadas ou atacadas. É uma história comum de luta pela terra-território, de resistir para existir, diante do avanço da devastação do Cerrado. Assim, contar uma história do Cerrado a partir desses casos representativos demanda analisar os elementos específicos e comuns (padrões) dos conflitos históricos contra esses territórios, em conjugação com uma leitura dos efeitos que as rupturas democráticas têm tido no agravamento desses conflitos.

Não se trata de buscar o ecocídio em casos específicos – embora estes sejam sua expressão mais concreta -, mas de compreender, a partir dos casos representativos que serão apresentados ao longo das audiências e das análises para o conjunto do Cerrado, a sistematicidade geográfica (em todo o Cerrado) e temporal (no último meio século) do crime de ecocídio do Cerrado e da ameaça de genocídio cultural de seus povos.

Falar de Cerrado é falar da savana mais biodiversa do planeta, mas também é falar de diversidade cultural.  Os primeiros habitantes dessa imensa região ecológica remontam a entre 15.000 e 12.000 anos antes do presente e já transitavam e se adaptavam aos dois principais componentes da paisagem do Cerrado – as chapadas e os vales -, constituindo um processo de convivência e co-constituição entre Cerrado e seus povos.

As riquezas do Cerrado manejadas por esses povos (em especial, a água e a biodiversidade) são fundamentais não somente para as populações que vivem aqui, mas também para quem vive em outras regiões do Brasil banhadas pelas águas que transbordam do Cerrado. Além disso, como o Cerrado é dominante no Brasil Central, faz contato com várias outras regiões ecológicas do país e do continente, constituindo um espaço de conexão e trânsito entre diversos ecossistemas. Tudo isso, em um contexto de múltiplas crises ambientais e climáticas – quando a ampla erosão da biodiversidade em escala planetária tem gerado sucessivos surtos de doenças zoonóticas e o desmatamento tem provocado escassez hídrica e contribuído para o aumento de eventos climáticos extremos -, faz da devastação do Cerrado uma questão ambiental de gravidade para todo o planeta.

No entanto, historicamente, essas riquezas socioecológicas do Cerrado foram invisibilizadas e a região foi tratada como um espaço vazio, coisa de ninguém passível de apropriação e exploração sem limites. Essa construção social do Cerrado fundamentou as ações que detonaram o processo de ecocídio em curso, há cerca de meio século, quando a ocupação dos “sertões” foi colocada como um imperativo para o Estado brasileiro. A implementação da Revolução Verde pela Ditadura Empresarial-Militar foi justificada pela construção social do Cerrado como “infértil” e ecologicamente irrelevante e dos modos de vida dos povos do Cerrado como um obstáculo ao “desenvolvimento”. Desde então, vivemos uma história marcada por profundas transformações – a redemocratização e a constituinte, as reformas neoliberais e a financeirização, a ascensão de governos progressistas e o superciclo das commodities –, mas uma dinâmica seguiu aprofundando: a expansão da fronteira agrícola e mineral sobre os cerrados (e a exportação dessa experiência como modelo para outras savanas do mundo) provocando violência e devastação, ao ponto de mais da metade dos cerrados já ter sido desmatada.

Essa devastação intensificada no último meio século não tem desacelerado. Pelo contrário, nas fronteiras agrícolas mais recentes do Cerrado, nós estamos vivendo o auge desse processo: o Matopiba foi mais desmatado nos últimos 20 anos do que nos 500 anos anteriores. E esse desmatamento está intrinsecamente associado à grilagem de terras e aos conflitos no campo: na década entre 2011 e 2020, das 14.429 ocorrências de conflitos no campo no Brasil, cerca de 39,6% foram no Cerrado e suas áreas de transição (dados da CPT).

Diante de um histórico tão dramático de devastação, seria de se esperar que a problemática estivesse na ordem do dia da agenda ambiental brasileira. Mas ao contrário, há alguns “sinais de alerta” que nos levam a falar do agravamento do ecocídio em curso contra o Cerrado e da urgência de frear a devastação para conter sua iminente extinção, como a eclosão da pandemia de Covid-19, a condução desastrosa do governo Bolsonaro das respostas a esta, o aumento da fome, do desmatamento e dos incêndios florestais e os eventos ambientais extremos (inclusive a atual seca e a crise energética no país). Todos esses sinais de alerta se inserem em um contexto de imposição da monoculturação como projeto econômico e social, que tem no Cerrado um cenário central e representativo da grave situação atual do Brasil.

Além disso, em especial a partir das rupturas democráticas pós-2016 e da ascensão do fascismo, racismo e antiambientalismo bolsonaristas, tem se desenhado e implementado um projeto de destruição de direitos conquistados e de avanços institucionais desde o marco da Constituição de 1988, de modo a favorecer a captura dos bens públicos e comuns pelas corporações transnacionais e elites agrárias brasileiras, aprofundando a gravidade e a ameaça de irreversibilidade do ecocídio em curso.

A expansão da fronteira agrícola sobre o Cerrado tem contado com algumas “armas” concretas: o correntão, os incêndios criminosos, as cercas sobre terras de uso comum, os agrotóxicos, as sementes transgênicas, os pivôs centrais e grupos de segurança pública e privada. Estas armas nos chãos do Cerrado são fortalecidas pelo recurso dos grileiros a diversas armas jurídicas, aprofundadas no atual contexto: a fraude cartorial; as mudanças normativas que legalizam a grilagem, que dificultam a titulação dos territórios indígenas, quilombolas e tradicionais e de assentamentos de reforma agrária, que desmontam as políticas públicas de comercialização da produção camponesa, e que estabelecem novos marcos temporais sobre os direitos dos povos e sobre as obrigações dos grileiros-desmatadores; as arbitrárias e lenientes autorizações de supressão vegetal e outorgas hídricas, a liberação descontrolada de princípios ativos de agrotóxicos e as leis que favorecem o armamento das classes proprietárias rurais.

Nesse grave contexto, percebemos que o Cerrado tem sido uma espécie de laboratório onde se conjugam, por um lado, a justificação da desterritorialização em favor das necessidades empresariais por vezes em nome de um suposto “desenvolvimento” e, por outro lado, a construção de falsas soluções de mercado para a crise ambiental, uma nova vertente do agronegócio, o econegócio e suas soluções “desde que” deem lucro. Esses processos já vinham se dando, mas se acirram e ganham graves contornos na atual conjuntura.

Não temos dúvidas de que um freio a esta locomotiva precisa ser construído em uma articulação solidária entre os povos desde os territórios até o nível internacional. Dar respostas adequadas aos desafios impostos pela massiva privatização dos bens comuns e da terra passa necessariamente pelos modos de produção/reprodução da vida e estratégias de sobrevivência promovidas e implementadas pelos diversos povos, comunidades e movimentos que formam a diversidade sociocultural e promovem a biodiversidade do campo brasileiro.

Fuente: Tribunal do Cerrado

Temas: Agronegocio, Extractivismo

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