Inseguranca alimentar e COVID-19 no Brasil

Idioma Portugués
País Brasil

"O presente inquérito integra uma iniciativa da Rede PENSSAN com o objetivo de fornecer informações científicas adequadas e confiáveis para orientar a tomada de decisões relacionadas à SAN, englobando a elaboração e implementação de políticas públicas, ações efetivas e em tempo oportuno, e o monitoramento e avaliação da efetividade do que foi realizado. Busca-se, ainda, com essa iniciativa, alertar a sociedade civil organizada e fornecer subsídios e indicadores às instâncias de controle social".

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou a disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2) como uma pandemia, também conhecida como pandemia da Covid-19. A transmissão do vírus se espalhou rapidamente pelos continentes. É consenso, para quase a totalidade dos países, que a redução da transmissão do vírus SARS-CoV-2 e, consequentemente, os efeitos sociais, econômicos e sanitários, constituem emergência humanitária global. Entretanto, tem sido um desafio imenso, também global, a adoção de medidas preventivas, reconhecidas como eficazes, tais como o isolamento social, uso de máscaras e higiene das mãos, além de restrições coletivas de grande impacto nas atividades econômicas, sobretudo em países de média e baixa renda.

Nessas circunstâncias, as condições precárias de vida e trabalho de boa parte da população são agravadas por insuficiências pré-existentes nos sistemas de proteção social, especialmente no setor da saúde, e pela falta de respostas imediatas e efetivas do Estado às demandas sociais trazidas pela pandemia. No Brasil, a disseminação do novo coronavírus explicitou ainda mais as desigualdades entre diferentes realidades sociais, fortalecendo o debate sobre a situação de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) da população. Para o Coordenador da Rede PENSSAN, Renato S. Maluf: 

“Era previsível que a comida, tanto sua disponibilidade como o acesso a ela, viesse a ocupar o centro das preocupações e urgências no contexto de pandemia pela qual estamos passando, ao lado, e como complemento indispensável, dos cuidados com a saúde das pessoas infectadas, ou não, pelo vírus mais recente” (Maluf, 2020).

Embora seriamente impactado pelo alastramento da pandemia da Covid-19, o agravamento da Insegurança Alimentar (IA) no Brasil revelado no inquérito ora divulgado é parte de um processo que já estava em curso de deterioração das condições de vida de um significativo contingente populacional e do aumento das desigualdades sociais. Entre suas causas, encontram-se os potenciais impactos na SAN das políticas de austeridade adotadas pelo Brasil desde 2014, acarretando redução de investimentos relacionados às políticas sociais (Souza et al., 2019). Cabe destacar, ademais, que todas as condições econômicas, sociais e sanitárias ruins já enfrentadas no Brasil, em 2020, estão extremamente agravadas nesse início de 2021 pelo total descontrole da pandemia, com explosão do número de casos e mortes pelo SARS-CoV-2. O Brasil tornou-se o epicentro da pandemia mundial, com falência do sistema de saúde e sem política econômica e social de mitigação.

A insuficiência de renda associada à precarização das relações de trabalho e ao aumento do desemprego; a degradação das condições de moradia e de infraestrutura sanitária, entre outros, intensificaram a disseminação da pandemia nos grupos populacionais mais vulnerabilizados. Recursos elementares para sobreviver às restrições impostas pela pandemia não estão disponíveis para uma grande parcela da população brasileira.

O presente inquérito integra uma iniciativa da Rede PENSSAN com o objetivo de fornecer informações científicas adequadas e confiáveis para orientar a tomada de decisões relacionadas à SAN, englobando a elaboração e implementação de políticas públicas, ações efetivas e em tempo oportuno, e o monitoramento e avaliação da efetividade do que foi realizado. Busca-se, ainda, com essa iniciativa, alertar a sociedade civil organizada e fornecer subsídios e indicadores às instâncias de controle social.

O Brasil, desde 2004, tem experiência importante na avaliação da IA a partir da validação da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), baseada no modelo de Medida da Escala de Segurança Alimentar Domiciliar dos Estados Unidos (Household Food Security Survey Module - HHFSSM) (Bickel et al., 2000), posteriormente incluída nos inquéritos nacionais realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Pérez-Escamilla R. et al., 2004; SegallCorrêa, A. M. et al., 2014).

A experiência brasileira com a EBIA serviu de inspiração para o desenvolvimento de uma Escala Internacional de Medida da Experiência da Insegurança Alimentar (Food Insecurity Experience Scale – FIES) (Cafieiro, C. et al., 2016) pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), usada desde 2014 para o monitoramento mundial de um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (Indicador 2.1.2).

De acordo com a FAO, um pouco mais de um quarto da população mundial foi afetado pela IA moderada ou severa em 2019, representando um aumento de 3,5 pontos percentuais, desde 2015. Nos países da América Latina e do Caribe, esse aumento ocorreu mais rapidamente: de 25,1%, em 2015, para 31,7%, em 2019. Nessas regiões, a IA severa aumentou de 6,4% para 9,6% no mesmo período. Apesar de os pontos de corte usados pela FAO para classificar a severidade da IA serem diferentes daqueles do IBGE, no Brasil, dados coletados pela FAO com uso da FIES indicam um aumento da IA moderada ou grave de 18,3% para 20,6%, entre 2015 e 2019, devido, basicamente, ao aumento da IA moderada (FAO et al., 2020).

Entretanto, os dados da FAO não fornecem as informações desagregadas, que são necessárias para subsidiar as políticas públicas nas diferentes instâncias: nacional, estaduais e municipais. Os inquéritos periódicos nacionais são imprescindíveis para esse fim, sendo o Brasil pioneiro no uso da EBIA com esse intuito. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2004, forneceu o primeiro diagnóstico domiciliar da situação de Segurança Alimentar e Insegurança Alimentar no Brasil, seguida de outras avaliações nos anos de 2009 e 2013. Recentemente, a escala EBIA passou a ser utilizada na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018), com garantia de comparabilidade com as informações anteriores, portanto mantendo a série histórica (IBGEPOF 2020).

Os resultados das três edições das PNADs (2004, 2009 e 2013) revelaram importante redução do percentual de domicílios em IA em todo o país. Estes resultados, analisados juntamente com informações sociais e econômicas que conformam a PNAD, contribuíram muito para a compreensão do impacto de diferentes intervenções na situação de acesso aos alimentos por parte da população brasileira. Já os dados da POF 2017-2018 mostram o oposto, isto é, houve redução da Segurança Alimentar que voltou para os níveis de 2004 (cerca de 60% dos domicílios), com o aumento correspondente da IA, sobretudo, a IA grave, que indica ocorrência de fome. Vale dizer, a última pesquisa nacional já indicou o agravamento da situação de IA no Brasil, anterior ao período pandêmico da Covid-19. O UNICEF-Brasil realizou uma pesquisa nacional em 2020 intitulada “Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes” que incluiu apenas uma pergunta modificada da EBIA (“Desde o carnaval, você ou alguém que mora com você deixou de comer porque não havia dinheiro para comprar mais comida?”).

A resposta a essa pergunta revelou que, entre adultos(as) com 18 anos ou mais, 13% afirmaram ter passado por essa experiência, com percentuais significativamente mais altos entre aqueles(as) com renda familiar de até um salário-mínimo.

Entretanto, para mensurar a Segurança Alimentar e a Insegurança Alimentar de forma válida e assim, identificar os diferentes níveis de severidade e em diferentes grupos populacionais, é necessário usar todos os itens que compõem as escalas de aferição do fenômeno na população.

O projeto de VIGISAN, em desenvolvimento pela Rede PENSSAN, contempla duas estratégias de abordagem do problema da Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da Covid-19. Uma delas é a realização de inquéritos rápidos, com abrangência nacional e representatividade das macrorregiões e áreas urbanas e rurais, sendo o presente relatório a apresentação dos resultados do primeiro desses inquéritos realizado recentemente. A outra estratégia objetiva disponibilizar informações em tempo hábil sobre parcelas de mais alta vulnerabilidade, como são os povos indígenas e os povos e comunidades tradicionais, nem sempre abordados em suas especificidades nos inquéritos de abrangência nacional.

Para essa estratégia, está em curso o desenvolvimento de um aplicativo para uso por pesquisadores(as) da Rede PENSSAN e outros(as) interessados(as), que facilitará coleta de informações nesses territórios e com suas populações. Ambas as estratégias contam com parceria e apoio financeiro do Instituto Ibirapitanga, OXFAM Brasil, ActionAid Brasil e Fundação Friedrich Ebert Brasil.

Essas iniciativas da Rede PENSSAN e parceiros têm como prioridade prover aos/ às gestores(as) de todas as esferas de governo e a sociedade civil organizada informações e dados para que possam agir de forma objetiva no enfrentamento da fome e demais manifestações de insegurança alimentar presentes em muitos lares brasileiros, sobretudo neste momento de extremo sofrimento.

- Para descarregar o documento PDF, clique no link abaixo:

Fuente: Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN)

Temas: Salud

Comentarios